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Este
ensaio foi publicado no suplemento DNA do Diário
de Notícias. Nele se empreende uma viagem através
da "monumental" Antologia da Poesia Espanhola das Origens
ao Século XIX (Assírio & Alvim),
tendo como fio condutor a "experiência amorosa enquanto saber".
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OS QUE MORRERAM DE AMOR
Talvez por isso, a relação entre amor e conhecimento seja
fulcral no limite de uma total vulnerabilidade ou na sua condição
metafórica. Não que a vivência do sentimento em si
remeta para um qualquer saber teórico ou desague em conceitos abstractos
mais ou menos elaborados, mas na sua expressão, no seu passado-futuro,
acompanha o processo de significação de um rosto. É nesse fio, o da experiência amorosa enquanto saber, da
projecção para um (im)possível, que se detém
este texto em torno da bela «Antologia da Poesia Espanhola das Origens
ao Século XIX», que a Assírio & Alvim editou recentemente,
com selecção, organização, tradução,
posfácio e notas de José Bento, atentíssimo tradutor
de autores de língua castelhana de várias épocas
(destaque especial para «Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea»
[1985], «Siglo de Oro» e «Renascimento e Barroco»
[respectivamente, em 1993 e 1996], pela mão da mesma editora),
grande conhecedor e o maior responsável pela divulgação
da poesia espanhola em Portugal. Mais de 700 páginas percorrem,
neste denso volume, dez séculos, das carjas e a épica medieval
aos poetas que, no final do século XIX, princípios do século
XX, anunciam o modernismo. Seguindo a premissa do organizador de que não há, neste
livro, «um propósito erudito nem didáctico»,
e tendo sido a escolha do conteúdo da antologia condicionada pela
«capacidade de traduzir» de José Bento -- rigoroso
no processo de investigação que acompanha esta sua actividade
--, sugere-se um percurso não crítico (e muito menos cronológico)
por esta obra, mas influenciado por uma inspiração afectiva.
Seja na condescendência ou na ascendência, numa porta aberta
para a alegria ou para o dolorismo. É no tormento, como substância
necessária à existência, que Tristão reconhece
a evidência da destruição do amor no dia em que este
se concretizasse. E, no entanto, dir-se-ia na emoção de
uma ausência que se procura uma imagem una da fugaz comunicação. «Antes de ti eu morrerei: oculto/ no peito levo já/ o ferro
com que tuas mãos abriram/ larga ferida mortal./ Antes de ti eu
morrerei; meu espírito,/ num anseio tenaz,/ ante as portas da morte
irá sentar-se,/ a esperar-te lá». Gustavo Adolfo Bécquer
(1836-1870) -- cuja poesia marcou o modernismo hispânico e autores
como Machado, Jiménez, Unamuno ou Alberti --, move-se aqui no território
de um amorismo absoluto, de uma plenitude vazia aberta a uma eternidade.
Neste poema («Rimas»), já nem o tempo anima a memória,
nem regista duração concreta -- duração no
sentido bergsoniano --, tornando-se imóveis as lembranças
ao lançar-se toda a esperança num futuro intemporal: «ali
onde o sepulcro que se fecha/ abre uma eternidade/ tudo quanto nós
dois sempre calámos/ teremos de falar». O amor desinteressado ama sem medida. É moral amar (Kant não
entendeu assim), mesmo que o amado não mereça esse amor,
que, por ser sincero, possui um valor categórico. Fausto ou Dom
Juan não pertencem à categoria dos que amam: «Porque
voltais memória vazia,/ tristes lembranças do prazer perdido,/
a aumentar a ansiedade e a agonia/ deste deserto coração
ferido?/ Ai!, que daquelas horas de alegria/ restou ao coração
um só gemido,/ e o pranto que à dor os olhos negam/ são
lágrimas de fel que a alma anegam!». Neste «Canto a
Teresa», de José de Espronceda (1808-1842), com ecos da poesia
romântica, o amor desfalece pelo seu excesso, na vertigem ardente
de uma ficção passada. A manipulação desse
sentido da perda surge aqui como ausência de morte, como luto de
um absoluto agora desacreditado. E é nessa «sede de uma intimidade» que a paixão
afugenta uma qualquer «verdade», sabendo-se, contudo, na linha
de um Max Scheler, que existe uma «ordem do coração».
Na poética amorosa, prolonga-se, por vezes, o princípio
de um sonho quase imaterial de «gozo e deleite», nele absorvendo-se
sombras e luz de uma convulsiva história exterior. No desabamento
do laço amoroso («Já dormem em seu túmulo as
paixões/ o sono do nada», Rosália de Castro, 1837-1885),
a morte toma-se, na dolorosa história de um caminho, não
só «o drama da hora fatal» a que se refere Bachelard,
mas a água que, em Poe, é um convite a morrer, a tal «melancolia
que chora». Dando testemunho de uma cristalização afectiva desmesurada,
dessa incompreensível contradição dos mortos de amor
-- que não admitem a ridícula comédia da não
partilha do sentimento --, existem, ao longo da história da poesia
de língua castelhana, páginas eficazes no uso da palavra,
registando a circularidade da relação intersubjectiva. Amar
é esse canto, mesmo quando se ama por dois: «Chorai meus
prantos, chorai,/ chorai a mágoa de mim,/ chorai a minha liberdade/
que por amores perdi; /chorai o tempo passado/ passado sem galardão,/
chorai a triste aflição/ de eu estar morto e não
finado» (Lope de Estúniga, 1414-1477/1480 [Cancionero de
Estuñiga], também autor de versos de preocupações
políticas e satíricas). Nesta «alta descida»
e neste «pouco subir», é-se forçado a admitir
a desafeição. Cada um deseja ser amado por si próprio, qualquer motivo de interesse
jamais suportará a continuidade virtuosa que logo resvalará
em desfiguração («Pois não confieis no amor/das
gentes, que são mortais/também nos bens temporais/que mais
breves que rosais/perdem fresco verdor; e não são seus crescimentos/mais
que jogo/menos durável que o fogo/de sarmentos» («Coplas
para o Senhor Diego Arias de Ávila, Contador-Mor do Rei Nosso Senhor
e do seu Conselho», Gómez Manrique, 1412-1490). A assunção
do passado de um relacionamento no presente dissolve, por isso, a representação
idealista que qualquer amor comporta. Ao considerar um Tu idêntico
ao meu próprio Eu, estou a ser -- explica Max Scheler --, em primeiro
lugar, vítima de uma ilusão sobre a realidade, e, em segundo,
de uma ilusão que atinge o modo de ser. Não sendo possível a fruição do amor como
«a sensação do Tudo» (Hegel), e ao instalar-se
o vazio, a memória passa a não registar a felicidade como
outrora foi desejada, servindo de possibilidade a um recomeço solitário
na articulação da separação. Quebrada a definição
«ingénua» de Espinosa -- como lhe chamou Schopenhauer
-- do sentimento amoroso como «alegria acompanhada da ideia de uma
causa externa», abre-se o tempo do desejo metafísico, da
«luz no rosto», como dele fala Emmanuel Levinas, que «só
pode produzir-se num ser separado», suportado pela vivência
de coisa tão árdua. Impossível nesse caminho não falar dos místicos
espanhóis -- aos quais José Bento tem dedicado tanto da
sua actividade -- e do seu percurso de «escura contemplação
e de secura»: «Vivo sem viver em mirn/ e tão alta vida
espero/ que morro por não morrer». Nesta união ou
ambiguidade entre o amor terrestre e o divino vivem muitos dos textos
de Santa Teresa de Ávila (1515-1582) que nos «duros desterros»,
nesta «prisão», nestes «ferros», revela
a humanidade de quem, ao não suportar a carga de uma vida que «não
se goza estando viva», encontra o secreto mistério de um
«castelo interior». Lágrimas virão no território da vida e do amor.
Mas «não pensemos que está tudo feito em chorando
muito, mas deitemos mão ao trabalhar muito, e adquirir virtudes
(...), e venham as lágrimas quando Deus as enviar, não fazendo
diligências para as ter». Diz a autora de «Moradas»,
porque estas, as lágrimas, irão deixar «regada esta
terra seca e são de grande ajuda para ela dar fruto; e tanto mais,
quanto menos caso delas fizermos, porque é água que cai
do céu». As palavras e a vivência de Teresa de Jesus são um eventual
contraponto à ideia lapidar de Vladimir Jankélévitch
quando refere ser possível ao ego amar Deus com um amor egoísta,
porque os eus se sucedem uns aos outros como uma colónia de células
formando um Eu universal. Transportando a ideia para o domínio
do humano, o amor nada mais seria, no sentido que lhe atribuíram
Hegel e Eduard von Hartmann, do que egoísmo. O sentimento autêntico
poder-se-ia, desse modo, definir como compreensão de uma outra
individualidade, passando também, e sobretudo, na acepção
de Max Scheler, pela abdicação e restituição
de liberdade. Essa dir-se-ia a essência do amor espiritual e físico,
que difere, segundo o filósofo, daquilo a que o poeta chama fascínio. Santa Teresa fala, no entanto, do amor como sacramento de eternidade,
o da prevalência da pureza sobre o cálculo ou o mero instinto.
Remontando à Idade Média, não foi Heloísa
quem, na dicotomia carne/espírito, se viu crucificada por um conflito
que lhe parecia quase insuperável, conservando, no entanto, o amor
sem o Outro? Não ficou Abelardo ferido de morte? O obstáculo
tornou-se, nesse caso, absoluto sacrifício, também ele aqui
ligado às teias do divino. Nessa pureza do amor a que se refere Teresa de Ávila, o proveito
está em distinguir: «uma coisa branca parece muito mais branca
ao pé de uma negra e ao contrário, a negra ao pé
da branca», residindo a sabedoria na saída de um «lodo
de misérias». Saída, segundo a autora de «Livro
da Vida», só possível pela aspiração
às coisas celestes e pedindo paciência nas adversidades:
«Nada te inquiete,/ nada te assuste,/ pois tudo passa;/ Deus nunca
muda;/ a paciência/ alcança tudo./ Quem Deus possui/ nada
lhe falta:/ só Deus nos basta» (A tradução
de José Bento deste poema é bem mais feliz do que a inserida
nas Edições Carmelo, Aveiro, das «Obras Completas»). Também o «Cântico Espiritual», de São
João da Cruz (1542-1591), descreve os diversos estados ou vias
de exercício espiritual pelos quais passa a alma, sob um amor ardente
que busca uma fecunda união com Deus ao lado dos homens. A invocação
do amado deixa o amante soluçando, canta as suas grandezas, o amor
ferido, deseja morrer até alcançar o matrimónio místico:
«Que bem sei a fonte que mana e corre,/ mesmo se é noite!/
Aquela eterna fonte está escondida./ Que bem sei onde sempre ela
é nascida,/ mesmo se é noite!/ Sua origem não a sei,
pois não a tem,/ mas sei que toda a origem dela vem,/ mesmo se
é noite» («Cantar da Alma que Rejubila por Conhecer
a Deus por Fé»). O amor a Deus é então entendido
como valor moral, como participação efectiva no seu amor
pelo mundo. «Amare in Deo» (Santo Agostinho). Não será inusitado dizer-se que o mecanismo do amor projecta
a imagem do que nos falta sobre um outro ser -- e aqui a teoria sensualista
de Schopenhauer é mais do que restritiva --, e se o retorno não
se produz do mesmo modo, o sentimento torna-se numa condenação
à dor: «Nem contigo, nem sem ti» -- diz Ovídio,
traduzindo a inversão de um excesso, a repetição
melancólica: «Amado, amar-te-ei tanto,/ amar-te-ei, tanto,
tanto!/ Os cuidados adoeceram meus olhos./ Causam-me tanta dor!»
(«Carjas», «José o Escriba», Idade Média).
E não escreve Ernst Jünger, no seu diário, que uma
forma de morrer pior que a morte é ver o ser amado matar lentamente
em si próprio a imagem daquele que amava, o que transporta o relacionamento
para o território da injustiça na comunicação? Aí «a língua do amor a quem não sabe/ o que
é o amor, que bárbara parece!,/ pois, como por instantes
emudece,/ possui pausas de música suave», Lope de Vega (1562-1635)
-- com obra nos domínios da poesia, da prosa lírica e da
dramaturgia -- é, neste seu poema, cirúrgico na abordagem
do valor táctico da corte, dando razão a Madame de Merteuil
quando, em «Liaisons Dangereuses», aconselha; «Bem vedes
que, quando escreveis a alguém, é para ele e não
para vós: deveis, pois, preocupar-vos menos em dizer o que pensais
do que em dizer o que mais lhe agrada». O amor vale aqui não
como amor, mas empreendimento estratégico, o que transforma em
doce a pena que vem do inimigo, comparada com a causada pelo amado. Muito mais numerosas na história da poesia amorosa são
as páginas de lamento do que as de júbilo, embora o mito
do amor triunfante possua textos decisivos, do «Cântico dos
Cânticos» a Petrarca, de Tourguéniev a Verlaine. E
nessa imobilidade móvel da escrita, abordam-se a dinâmica
e o paradoxo amorosos, a perenidade dos instantes, o movimento do encontro,
os diálogos de solidão, a ruína dos espaços
de exaltação, a ascensão e a queda do amor: «Amor
me ocupa o cérebro e os sentidos;/ absorto estou em êxtase
amoroso;/ não me concede tréguas nem repouso/ esta guerra
civil para os nascidos», Francisco de Quevedo (1580-1645) -- notável
na mestria poética e tão interventivo e satírico
como lírico -- escreve sobre as limitações do espírito
que o sujeito apaixonado sofre na «mutabilidade perpétua»
do amor. Não são os apaixonados, por vezes, suicidas do amor, seres
em pânico, vítimas do seu imaginário, ansiosos, porém,
em daí retirarem o saber? «Todo sou ruínas, todo sou
destroços,/ escândalo funesto pròs amantes,/ que de
lamentos fabricam seus gozos./ Os que virão e os que existiram
antes/ em meu soluço estudem ser ditosos/ e invejem minha dor,
se são constantes», escreve Quevedo em «Prossegue no
Mesmo Estado de Seus Afectos». Serve o amor o conhecimento, transporta consigo a distância, necessitando
da morte para se cumprir -- salienta Maria Zambrano (também traduzida
por José Bento). E Werther pára o tempo com a sua morte,
para si próprio e para Carlota, imobilizando, dessa forma, o extraordinário
e tornando, assim, eterno o presente de um «prazer em que há
dores/ dor em que existe alegria» («Quintilhas sobre que Coisa
é Amor», de Jorge Manrique, 1440-1479). O amante ama, nesse
sentido, em qualquer circunstância, e na inquietude, o completo
destino do amado. Talvez por isso, e porque a impossibilidade convive com a irrealidade, a noção do absolutamente único tenha transportado, desde tempos imemoráveis, para a história da literatura as maiores tragédias amorosas: paraísos e infernos no extremo da realidade, dentro dos quais a memória do sujeito se dissolve no poema numa relação quase última com a sua substância essencial. Frui-se, então, o mundo, ainda que em pura perda na vertigem de uma ficção. Porque, «tudo sendo lua», «sonho que se esfuma», «debaixo do céu homem nenhum alcança/ uma certeza, ninguém há tão perfeito/ que me esclareça o assunto secreto/ dos que morreram, se há neles lembrança» (Ferrán Sánchez Calavera, primeira metade do séc. XV, Cancioneiro de Baena). E muitos são os que morreram de amor... |
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