Sexta-feira, 18 de Janeiro de 2002
   
 
     
 
Sociedade   18-01-2002 - 07h49
Maia continuará a ser palco de manifestações
Megajulgamento sobre aborto conhece hoje sentença
O julgamento de 17 mulheres acusadas da prática do crime de aborto termina hoje com a leitura da sentença. O processo envolve 43 arguidos, alguns dos quais médicos, enfermeiros e farmacêuticos, além de muito debate e queixas por parte da plataforma Direito de Optar - Plataforma pela Despenalização do Aborto, que hoje marca presença à porta do julgamento, na Maia.

A sentença do julgamento, que começou há quatro meses, é lida no Complexo Polidesportivo da Maia a partir das 09h00, tendo como principal arguida Maria do Céu Ribeiro, enfermeira-parteira detida em Fevereiro de 2000 por alegadamente ter montado nas traseiras da sua casa, situada próximo do Hospital S. João, uma "clínica" para a prática de abortos e ter criado uma rede de angariadores de clientes da região Norte.
Durante as várias sessões do julgamento da Maia, as atenções estiveram quase sempre centradas na figura da enfermeira-parteira, que é também acusada de ter subtraído fármacos e material cirúrgico do Hospital de S. João, no Porto, onde trabalhava, quando foi detida preventivamente, em Fevereiro de 2000.
Os restante arguidos - um médico, vários ajudantes de farmácia e enfermeiros, um taxista e um assistente social, todos acusados de terem angariado clientes para a enfermeira, a troco de comissões - passaram quase despercebidos, até porque optaram pelo silêncio, à semelhança da maior parte das 17 mulheres. O facto de duas delas terem admitido o crime para o qual a lei portuguesa prevê até três anos de prisão abalou a defesa, que teria preferido um silêncio generalizado.
Nas alegações finais, o procurador do Ministério Público pediu a condenação da parteira a 12 anos de prisão, mas admitiu a absolvição das 17 mulheres acusadas de ter abortado, recorda a Lusa.
No dia em que se lê a sentença, à entrada do Complexo Desportivo da Maia, para além das empenhadas militantes da plataforma (que agrega um grande número de oganizações sindicais e partidárias), vão estar a eurodeputada comunista Ilda Figueiredo e o líder do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã. Em Lisboa, à porta do Tribunal da Boa Hora, três horas mais tarde idêntica manifestação terá lugar, com a presença da deputada socialista Helena Roseta, escrevia ontem o PÚBLICO.
O Bloco de Esquerda organizou ainda uma "caravana", que saiu de Lisboa hoje de madrugada e conta com a participação de Francisco Louçã. O Bloco de Esquerda realiza depois uma conferência de imprensa, às 17h30, em Braga, na sua sede local, com comentários de Francisco Louça à sentença.
Os movimentos de apoio às mulheres entregam, na Assembleia da República, uma petição para se alterar a lei e pedir uma audiência ao Presidente da República.
Segundo as estatísticas oficiais, foram registados 491 abortos em Portugal em 1999, mas a plataforma estima que o número real possa chegar aos 30 mil por ano.

Cronologia

1982
Em 1982, a despenalização do aborto era debatida pela primeira vez na Assembleia da República, por iniciativa do PCP. O país político e interventor dividiu-se e o clima aqueceu. Encabeçando a causa do "direito à vida" e do "não à despenalização" surgiram personalidades como Nuno Krus Abecasis, do CDS e então presidente da Câmara de Lisboa, e Marcelo Rebelo de Sousa, fundador do PSD. Do lado da despenalização, ficaram na memória mediática actos políticos como o poema do "Truca-truca" lido por Natália Correia, então eleita pelo PSD, nos corredores da AR. Ou a então jovem Zita Seabra vestida de branco falando da tribuna de São Bento. A 12 de Novembro, em votação nominal, o projecto do PCP é rejeitado por 127 votos contra. Ao lado do PCP votou Natália Correia.

1984
A 11 de Maio de 1984, a Assembleia da República debate a despenalização do aborto pela segunda vez. É aprovado o diploma do PS de Mário Soares, com o apoio do PCP, que aborda também a protecção à maternidade, o planeamento familiar e educação sexual. O aborto passa a ser permitido até às 12 semanas, quando seja medicamente provado o risco de vida da mãe, a sua saúde psíquica ou haja violação. Dez anos mais tarde, o Código Penal contempla o aborto até às 16 semanas por malformação do feto.

1997
Mais uma vez pela mão do PCP e do PS, a despenalização volta à AR. E mais uma vez a despenalização até às 12 semanas de gestação é chumbada, assim como a possibilidade de as mães toxicodependentes abortarem até às 16 semanas e as portadoras de HIV até às 22 semanas. A Assembleia volta a aquecer e a luta pró-despenalização projecta para a ribalta mediática o jovem socialista Sérgio Sousa Pinto e a comunista Odete Santos. Em votação nominal mais uma vez, o projecto da JS acaba chumbado ao segundo empate - 112 contra, 112 a favor e 3 abstenções -, depois do episódio protagonizado pelo (até então anónimo) deputado Matos Leitão, que voltou ao hemiciclo para afirmar que o seu voto tinha sido mal registado e que estava contra. O projecto do PCP chumba com 115 votos contra, 99 a favor e 12 abstenções. Passa o projecto apresentado pelo médico e deputado do PS Strecht Monteiro, que alarga o prazo dos abortos por malformação para as 24 semanas.

1998
Em 4 de Fevereiro de 1998, os defensores da despenalização quase acreditam que é desta que o aborto é despenalizado. A luta contra a despenalização foi protagonizada em São Bento por Maria José Nogueira Pinto, líder parlamentar do PP, que apresentou um projecto consagrando o "direito à identidade jurídica" do embrião. O texto chumba, mas o debate passa a ser deslocado para o plano do "direito à vida do feto". Em votação nominal, o projecto do PS, mais uma vez protagonizado por Sérgio Sousa Pinto, é aprovado na generalidade pela AR e permite o aborto por vontade da mulher até às dez semanas. O diploma socialista obtém 116 votos a favor, 107 contra e 13 abstenções. Já o diploma do PCP, que avançava com a despenalização até às 12 semanas, chumba com 107 votos a favor, 110 votos contra e nove abstenções. A "festa" dos pró-despenalização durou algumas horas. Fora da AR, num típico pacto de Bloco Central feito pelos líderes do PS e do PSD, António Guterres e e Marcelo Rebelo de Sousa - ambos com posições pessoais assumidas contra a despenalização - acordam submeter a lei a referendo, antes que a AR possa passar à votação final. Em 28 de Julho de 1998, em referendo e com uma abstenção de 68,06 por cento, o "não" obtém 50,91 por cento e o "sim" 49,09 por cento. A decisão não é vinculativa, mas os deputados deixam cair a lei por notória falta de espaço político.

São José Almeida
 
DR
Julga-se que em Portugal o número real de abortos possa chegar aos 30 mil por ano
 
 
 
mocho, símbolo da Filosofia

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