O
julgamento de 17 mulheres acusadas da prática do crime
de aborto termina hoje com a leitura da sentença. O processo
envolve 43 arguidos, alguns dos quais médicos, enfermeiros
e farmacêuticos, além de muito debate e queixas por parte
da plataforma Direito de Optar - Plataforma pela Despenalização
do Aborto, que hoje marca presença à porta do julgamento,
na Maia.
A sentença do julgamento, que começou há quatro
meses, é lida no Complexo Polidesportivo da Maia a partir
das 09h00, tendo como principal arguida Maria do Céu Ribeiro,
enfermeira-parteira detida em Fevereiro de 2000 por alegadamente
ter montado nas traseiras da sua casa, situada próximo
do Hospital S. João, uma "clínica" para a prática de abortos
e ter criado uma rede de angariadores de clientes da região
Norte.
Durante as várias sessões do julgamento da Maia, as atenções
estiveram quase sempre centradas na figura da enfermeira-parteira,
que é também acusada de ter subtraído fármacos e material
cirúrgico do Hospital de S. João, no Porto, onde trabalhava,
quando foi detida preventivamente, em Fevereiro de 2000.
Os restante arguidos - um médico, vários ajudantes de
farmácia e enfermeiros, um taxista e um assistente social,
todos acusados de terem angariado clientes para a enfermeira,
a troco de comissões - passaram quase despercebidos, até
porque optaram pelo silêncio, à semelhança da maior parte
das 17 mulheres. O facto de duas delas terem admitido
o crime para o qual a lei portuguesa prevê até três anos
de prisão abalou a defesa, que teria preferido um silêncio
generalizado.
Nas alegações finais, o procurador do Ministério Público
pediu a condenação da parteira a 12 anos de prisão, mas
admitiu a absolvição das 17 mulheres acusadas de ter abortado,
recorda a Lusa.
No dia em que se lê a sentença, à entrada do Complexo
Desportivo da Maia, para além das empenhadas militantes
da plataforma (que agrega um grande número de oganizações
sindicais e partidárias), vão estar a eurodeputada comunista
Ilda Figueiredo e o líder do Bloco de Esquerda, Francisco
Louçã. Em Lisboa, à porta do Tribunal da Boa Hora, três
horas mais tarde idêntica manifestação terá lugar, com
a presença da deputada socialista Helena Roseta, escrevia
ontem o PÚBLICO.
O Bloco de Esquerda organizou ainda uma "caravana", que
saiu de Lisboa hoje de madrugada e conta com a participação
de Francisco Louçã. O Bloco de Esquerda realiza depois
uma conferência de imprensa, às 17h30, em Braga, na sua
sede local, com comentários de Francisco Louça à sentença.
Os movimentos de apoio às mulheres entregam, na Assembleia
da República, uma petição para se alterar a lei e pedir
uma audiência ao Presidente da República.
Segundo as estatísticas oficiais, foram registados 491
abortos em Portugal em 1999, mas a plataforma estima que
o número real possa chegar aos 30 mil por ano.
Cronologia
1982
Em 1982, a despenalização do aborto era debatida pela
primeira vez na Assembleia da República, por iniciativa
do PCP. O país político e interventor dividiu-se e o clima
aqueceu. Encabeçando a causa do "direito à vida" e do
"não à despenalização" surgiram personalidades como Nuno
Krus Abecasis, do CDS e então presidente da Câmara de
Lisboa, e Marcelo Rebelo de Sousa, fundador do PSD. Do
lado da despenalização, ficaram na memória mediática actos
políticos como o poema do "Truca-truca" lido por Natália
Correia, então eleita pelo PSD, nos corredores da AR.
Ou a então jovem Zita Seabra vestida de branco falando
da tribuna de São Bento. A 12 de Novembro, em votação
nominal, o projecto do PCP é rejeitado por 127 votos contra.
Ao lado do PCP votou Natália Correia.
1984
A 11 de Maio de 1984, a Assembleia da República debate
a despenalização do aborto pela segunda vez. É aprovado
o diploma do PS de Mário Soares, com o apoio do PCP, que
aborda também a protecção à maternidade, o planeamento
familiar e educação sexual. O aborto passa a ser permitido
até às 12 semanas, quando seja medicamente provado o risco
de vida da mãe, a sua saúde psíquica ou haja violação.
Dez anos mais tarde, o Código Penal contempla o aborto
até às 16 semanas por malformação do feto.
1997
Mais uma vez pela mão do PCP e do PS, a despenalização
volta à AR. E mais uma vez a despenalização até às 12
semanas de gestação é chumbada, assim como a possibilidade
de as mães toxicodependentes abortarem até às 16 semanas
e as portadoras de HIV até às 22 semanas. A Assembleia
volta a aquecer e a luta pró-despenalização projecta para
a ribalta mediática o jovem socialista Sérgio Sousa Pinto
e a comunista Odete Santos. Em votação nominal mais uma
vez, o projecto da JS acaba chumbado ao segundo empate
- 112 contra, 112 a favor e 3 abstenções -, depois do
episódio protagonizado pelo (até então anónimo) deputado
Matos Leitão, que voltou ao hemiciclo para afirmar que
o seu voto tinha sido mal registado e que estava contra.
O projecto do PCP chumba com 115 votos contra, 99 a favor
e 12 abstenções. Passa o projecto apresentado pelo médico
e deputado do PS Strecht Monteiro, que alarga o prazo
dos abortos por malformação para as 24 semanas.
1998
Em 4 de Fevereiro de 1998, os defensores da despenalização
quase acreditam que é desta que o aborto é despenalizado.
A luta contra a despenalização foi protagonizada em São
Bento por Maria José Nogueira Pinto, líder parlamentar
do PP, que apresentou um projecto consagrando o "direito
à identidade jurídica" do embrião. O texto chumba, mas
o debate passa a ser deslocado para o plano do "direito
à vida do feto". Em votação nominal, o projecto do PS,
mais uma vez protagonizado por Sérgio Sousa Pinto, é aprovado
na generalidade pela AR e permite o aborto por vontade
da mulher até às dez semanas. O diploma socialista obtém
116 votos a favor, 107 contra e 13 abstenções. Já o diploma
do PCP, que avançava com a despenalização até às 12 semanas,
chumba com 107 votos a favor, 110 votos contra e nove
abstenções. A "festa" dos pró-despenalização durou algumas
horas. Fora da AR, num típico pacto de Bloco Central feito
pelos líderes do PS e do PSD, António Guterres e e Marcelo
Rebelo de Sousa - ambos com posições pessoais assumidas
contra a despenalização - acordam submeter a lei a referendo,
antes que a AR possa passar à votação final. Em 28 de
Julho de 1998, em referendo e com uma abstenção de 68,06
por cento, o "não" obtém 50,91 por cento e o "sim" 49,09
por cento. A decisão não é vinculativa, mas os deputados
deixam cair a lei por notória falta de espaço político.
São José Almeida  |
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Julga-se
que em Portugal o número real de abortos
possa chegar aos 30 mil por ano |
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