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Aqui serão divulgados textos de apoio à disciplina de Introdução à Filosofia, prevendo-se particular relevo para o 10º ano.

 


"Contos do Barrocal" oferece-nos 15 contos de Rogério Silva. Uns e outro são apresentados em prefácio de Fernando Paulo Custódio. Ficamos a saber que o autor nasceu e viveu até à idade adulta no concelho de Tavira, tendo-se depois mudado para Olhão, onde vive há mais de 20 anos e é brilhante advogado. 

Quanto aos contos, o prefaciador agrupa-os em 2 núcleos temáticos: os primeiros nove têm como pano de fundo a serra envolvente de Tavira (um universo, digo eu, que muito poucos portugueses conhecem -- um outro Algarve!); os últimos cinco têm Olhão como referência. A separar/unir os dois conjuntos, um conto simbolicamente intitulado "A Ponte", que reforça a ideia da transição com a presença de um rio. 

O conto aqui transcrito merece de Fernando Paulo uma referência especial, pelo seu tom ideológico e porque emblemático do profundo sentimento de ternura do autor pelas crianças desvalidas. 

     
CARTA PARA DEUS, 
DE UMA CRIANÇA DA RUA

Escrevo-te contra a vontade da minha avó Gabriela. Não sei se a conheces. É uma velhinha terna, que anda sempre de preto, olhos fundos como as noites, a cara semeada de rugas e a alma de tristezas. Não conheces? Ela anda sempre por aí, de xaile ao ombro e lenço na cabeça, atado atrás na nuca e com as pontas pendidas. Bom. Não te sei dizer mais nada. Ah! Espera. Trabalhou toda a vida e vive agora da caridade. Como isto é coisa de Igreja, talvez dela ao menos tenhas ouvido falar. Ela é mesmo muito tua amiga, anda sempre a falar de ti, a louvar-te e a pedir-te perdão por ela e pelos outros. Alma boa como a da avó Gabriela não há debaixo do teu Céu. 

Como te comecei por dizer, é contra a sua vontade que te escrevo esta carta. Eu tenho a impressão que a amizade que ela tem por ti não é bem amizade. É, mais, um medo. Vê tu: eu queria falar-te com toda a liberdade, daquela maneira pela qual conversamos com os amigos, usando só as palavras que nada escondem. Pois sabes o que a avó Gabriela me disse? Que tivesse respeito, que te temesse, que não te tratasse como a um igual. Caso contrário poderia ser castigado. Confesso-te que fiquei confuso com aquelas advertências. E pensei, cá para comigo, pensamentos de crianças, as mais das vezes tão complicados que os adultos os não alcançam. Como explicar a um adulto, por exemplo, que não gosto de ir à missa porque a Igreja é escura e triste? Ou que gosto dos pombos da praça porque são alegres e meio malucos e nem sequer sei onde dormem? Os adultos gostam ou não gostam por outras razões. Mas não são tão fortes como as minhas. Tu, sei que entendes tudo isto. Mas a avó Gabriela quando assim falo, pede-te logo perdão por mim. Deixa-a lá, coitada! É quase analfabeta e como é já muito velhinha não tem sonhos ou desejos. Tem, apenas, medos. 

Mas esta carta, Deus, é para te falar de mim, para te fazer um desabafo. Conheces-me bem, pela certa, como todos me conhecem. Nem preciso de pronunciar o meu nome. Dir-se-ia que nasci para afrontar deuses e leis. Sou vadio, não me lavo, deambulo por aí descalço e desgrenhado, ponho em guarda as ruas da cidade. Aí vem o Machadinha é uma espécie de alerta, grito de aviso, intimação para que se fechem portas e almas. Nos mais dos casos nem me deixam pedir – vai-te já daqui para fora, gatuno! É verdade, Deus. Eles não sabem como doem todas as fomes que passo, os roubos que não desejo, as lágrimas que bem disfarço, a simples falta de um beijo. E vou por aí mordendo a minha amargura, e cheirando cola, e roubando o que puder a um incauto qualquer que menospreze o aviso. Nem sempre assim acontece. Dias há em que senhoras falam comigo sem medo, e posso entrar num restaurante, e até me dão dinheiro, sem que me perguntem para que o quero. E sabes? Acho que nesses dias sou feliz. Eu nunca quis empurrar o Mundo, forçar os dias. Eles nascem sempre, serenos ou tempestuosos, à hora que tu fixaste. Eu é que talvez não devesse ter nascido menino. Desculpa lá dizer-te estas coisas duras, mas, ao contrário da avó Gabriela, acho que por vezes cometes erros imperdoáveis... 
 
 



(SILVA, Rogério - Contos do Barrocal. Olhão : [Edição do autor?], 1998, p.131-133)
 

 

 
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