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O número 28 (Fev/01) da revista espanhola Historia inclui um dossier sobre o Carnaval. Dele se retirou este texto. Trad., para o Canto, de A. Gomes |
Um sopro de vida-- o significado das ventosidades carnavalescasNo Carnaval as papelarias e os quiosques especializados expõem um sem fim de jogos e brincadeiras para crianças, cada vez mais sofisticados. Mas os mais vendidos, sem contar com as máscaras, continuam a ser os brinquedos clássicos: as ruidosas línguas-de-sogra que se desenrolam aparatosamente a cada sopro, e os inócuos balões de borracha que, apertados pela vítima quando se senta, emitem um ruído pouco edificante e bastante embaraçoso. Já para não falar desse líquido fétido, contido em cápsulas, que empesta indecorosamente escolas e casas. São as brincadeiras de sempre -- nalgumas ocasiões, incómodas, mas toleradas e que, no fundo, são quase obrigatórias, talvez por serem um reflexo da história milenar do carnaval, em que os antigos ritos e crenças não perderam totalmente o seu significado mais profundo. O eufórico senhor Carnaval continua a estar inconscientemente ligado àqueles ruidosos sopros, a essa malcheirosa ventosidade que nos transporta a tempos longínquos, a um mundo medieval reflectido nas festas das praças, nos ruídos obscenos e na loucura colectiva. Ventosidades pestilentasEra uma época na qual uma simples ventosidade podia estar impregnada de concepções genéticas ou escatológicas. Era um mundo no qual os camponeses podiam nascer de um peido, possivelmente do de um burro, como conta no século XIII Matazone de Caligano no Detto del villani (Dito dos Vilões): "A história do seu nascimento quero que seja do vosso conhecimento, ali numa hospedaria uma besta de carga havia, dela saiu um explosão, tão grande como um trovão: daquele malcheiroso vento nasce o vilão pestilento". A própria morte podia depender de um "descuido" intestinal, como temia o camponês descrito pelo poeta francês Retebeuf no século XIII (Pet au vilain) que, durante toda a sua fantástica viagem ao inferno, levou preso ao traseiro um pequeno saco de couro, para deste modo evitar "que a alma lhe saísse pelo cu". As ventosidades carnavalescas e a mítica circulação das almas chegam inclusive a contaminar a Comédia de Dante, trivializando o infernal e perfeito mecanismo de castigo. No canto XXI do Inferno (137-9) respira-se um "ar carnavalesco", quando cada um dos diabos "tinha mordido a língua em sinal de sintonia com o seu chefe"[1], todos dispostos a peidar-se. Ao vulgar gesto responderá o sonoro contraponto do "seu chefe", que "se serviu do seu traseiro à guisa de trombeta". Uma trombeta que Dante devia ter visto, ou melhor, ouvido, na sua Florença natal, na ponte de La Carraia, onde no século XIV ainda se representava o cortejo infernal no qual, segundo uma descrição de Antonio Pucci (1309-1388), "as almas que eram postas a tormento / Eram camisas cheias de palha / E bexigas de boi cheias de ar". Os diabos de Dante representam o mundo carnavalesco, sobretudo aquela fantasia "do cagão e peidorrento senhor Carnaval", como ainda se lhe chamava em finais da Idade Média. Comer até rebentar
Seguindo uma tradição gastronómica não interrompida, até há poucos anos em Biella (no Piamonte), na segunda-feira de carnaval, um nutrido grupo de cozinheiros, com os seus adereços de trabalho, cozinhava em enegrecidos caldeirões até dez quintais de feijões. E ainda hoje, em França, na festa dos Reis Magos a 6 de Janeiro, é costume esconder uma fava no bolo; quem comer o pedaço que a contém converter-se-á no rei dos tronos carnavalescos. Se, como pretende uma antiga crença pitagórica, a fava-alma que se come pode transformar-se em 40 dias num embrião, então, basta contar no calendário, também o nosso rei parirá "algo" no carnaval. É como se se repetisse ritualmente aquela passagem do Génesis (2,7) em que "JHWH [Javé] Elohim formou o homem com o pó da terra, e nas suas narinas inspirou o sopro da vida...". Numa irreverente paródia, os "estúpidos" e os "loucos" medievais percorriam as ruas fazendo soar uns artefactos com os quais multiplicavam magicamente as almas, provocando sons semelhantes aos realizados pelos diabos do inferno, ou os modernos mascarados do carnaval de Sassari (Sardenha), que apertam ritmicamente debaixo das axilas as mencionadas bexigas de boi cheias de ar. O testamento do burroMas Carnaval, antes de morrer, faz testamento, como faziam, antes dele, as figuras análogas do burro e do porco, que eram levadas em procissão. É exactamente numa destas redacções do Testamentum Asini (por volta de 1470) onde aparece um legado de especial interesse. O animal oferece as diferentes partes do seu corpo aos assistentes, especificando culum do sufflantibus: o seu "dulcíssimo" era destinado aos sopradores rituais (sufflantibus), que se ocupavam com repor a diminuta reserva de almas no mundo. Uma vez que as almas, não o esqueçamos, são muito poucas, tal como assinalam os mitos e os rituais de todos os povos que vivem da caça, da pesca ou da cria de animais, os ossos, o crânio e, às vezes, também a pele dos animais devem ser conservados, à espera de uma alma, de um sopro vital, que consiga revitalizá-los. A alma-sopro acompanha os seres vivos durante toda a sua viagem terrena até, como escreve François Rabelais, morrer: "os homens expulsando ventosidades, as mulheres soltando-se como foles, de tal modo que a alma, tanto num caso como no outro, sai pelo cu". A vital e vertiginosa circulação das almas tem que se protegida a todo o custo, inclusive por heróis cristãos, como São Brás, protector de outro sítio que também gera sopros: a garganta. Por temor de que o delicado mecanismo possa ser interrompido, no dia que lhe é dedicado - que por analogia entre Blasius e blasen (soprar) na Alemanha era chamado "dia do sopro" - é tradicionalmente proibido tecer, porque os fios utilizados poderiam atar magicamente os ventos que transportam as almas. Entre os testamentos das máscaras-animais, já no século IV aparece, nos escritos de São Jerónimo (340-420), o Testamentum Grunni Corocottae porcelli (o testamento do porco), entoado entre gracejos e piadas por jovens escolares. Mas o porco e o burro não são não são os únicos animais que reinaram neste tipo de festas. Existe um carnívoro que, desde a Idade Média até à actualidade, parece ter desempenhado um papel destacado nos ritos de carnaval e na circulação dos ventos de que vimos falando: o urso. A ressurreição do ursoNestas datas, na Sardenha, têm lugar várias representações em que Carnaval vai disfarçado de urso. São especialmente fascinantes as de Samugheo (Oristano) e Fonni (Nuoro). Nesta última, S'Urthu - o urso, em dialecto local - está preso com cadeias por dois indivíduos - em Samugheo subjuga-o o domador -, enquanto tenta, no meio da hilaridade geral, sujar as moças com fuligem feita de cortiça queimada. Numa aprazível farsa de carnaval, que não é fácil de reconstruir, S'Urthu morre ritualmente, para depois ressuscitar, entre a alegria dos espectadores e as pancadas de cironia - uma espécie de chicote com clara conotação fálica - dadas pelos jovens da associação S'Urthu, vestidos de preto e com a cara manchada de fuligem. Estão aqui presentes elementos rituais que não conseguiram ser ocultados ao longo dos séculos, relativos à morte, ressurreição e fecundidade, presentes desde a Idade Média. Segundo uma crença muito difundida, o urso sairia da cova na véspera de São Brás, 2 de Fevereiro, festa das Candeias. Durante a sua hibernação na cova subterrânea, teria estado em contacto com as almas dos defuntos, com as quais encheria a pança, para depois as expulsar ruidosamente no momento de acordar, com a ajuda de algumas plantas laxantes, de que já Plínio falava, "voltando a pô-las em circulação", para benefício da humanidade. Com uma ambiência diferente, encontramo-nos face ao mesmo tema que aparece nas miniaturas que ilustram o Romance de Fauvel, de princípios do século XIV. Este mostra algumas personagens "carnavalescas" - trata-se de uma chocalhada, que por norma geral era um ritual de desaprovação de um matrimónio considerado ilícito -, entre as quais estão os ursos. Entre os disfarces destaca-se, como sublinha o texto, um homem "de cu para o ar", e aos "sopros" carnavalescos referem-se outros versos do romance. Mais uma vez, como defende o historiador J. C. Schmitt, "o vento é uma metáfora explícita do peido, evocada também pelas tontas canções obscenas recolhidas mais adiante no manuscrito". Seis séculos depois, os mesmos rituais sobrevivem nas ruas e praças de Itália, num inconsciente culto ao urso que continua, de certo modo, a transportar as almas do mundo inferior ao nosso, com um rumor cíclico.
[1] Nota do Canto: Tradução de Vasco Graça Moura (Bertrand, 3ª ed., 1997) da passagem a que aqui se alude: "(...) voltam no dique à esquerda do local; / mas não sem que cada um a língua meta / entre os dentes, ao chefe por sinal: / e ele tinha do cu feito trombeta." [voltar ao texto]
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