A leitura silenciosa tornou-se usual
no Ocidente apenas no século X. Antes a leitura normal realizava-se
em voz alta. Nas suas Confissões(1)
Santo Agostinho (um filósofo
que viveu entre 354 e 430) refere-se ao bispo de Milão, Ambrósio
(que também viria a ser canonizado), observando que era um
leitor cuja voz se mantinha "'em silêncio e a sua língua
não se movia"; e acrescenta que "muitas vezes, quando
o vínhamos visitar, encontrávamo-lo a ler assim, em
silêncio, pois nunca lia em voz alta". Tal forma de ler
era suficientemente estranha para merecer um registo nas suas Confissões.
Os olhos esquadrinhando a página, a língua imóvel:
é exactamente assim que se pode descrever um leitor hoje, sentado
com um livro num café em frente à Igreja de Santo Ambrósio,
em Milão, lendo talvez as Confissões de Santo
Agostinho. À semelhança de Ambrósio, o leitor
tornou-se cego e surdo ao mundo, aos transeuntes, às fachadas
dos edifícios caiadas de cor de carne. Ninguém parece
dar atenção especial a um leitor concentrado: recolhido,
embrenhado na leitura, o leitor torna-se um lugar-comum.
Se a leitura em voz alta era a norma desde os primórdios da
palavra escrita, como seria a experiência de ler nas grandes
bibliotecas da Antiguidade? O erudito assírio a consultar uma
das trinta mil placas na biblioteca do Rei Assurbanípal, no
século VIl a. C., os desenroladores de pergaminho nas bibliotecas
de Alexandria e Pérgamo, o próprio Agostinho à
procura de determinado texto nas bibliotecas de Cartago e de Roma
devem ter trabalhado num ambiente de ruído constante. No entanto,
mesmo hoje em dia, nem todas as bibliotecas respeitam o proverbial
silêncio. Nos anos 70, na bela Biblioteca Ambrosiana, em Milão,
não reinava o silêncio cerimonioso que eu notara na Biblioteca
Britânica, em Londres, ou na Biblioteca Nacional de Paris. Os
leitores na Biblioteca Ambrosiana falavam uns com outros a partir
dos seus lugares; de quando em quando, alguém gritava uma pergunta
ou um nome, um tomo pesado fechava-se com estrondo, um carrinho com
livros passava a chocalhar. Hoje em dia, nem a Biblioteca Britânica,
nem a Biblioteca Nacional de Paris são totalmente silenciosas;
a leitura em silêncio é pontuada pelos estalidos e martelar
dos teclados de computadores portáteis, como se vivessem bandos
de picapaus dentro destes edifícios forrados a livros.
Datam do século IX as primeiras ordenações a
requererem o silêncio dos escribas no scriptorium monástico;
até então, os textos que copiavam eram-lhe ditados ou
liam-nos eles próprios em voz alta. Alguns dogmáticos
suspeitavam da nova tendência; na sua opinião, a leitura
em silêncio propiciava o sonhar acordado, o perigo de acídia
-- o pecado do ócio, "a destruição que devasta
ao meio-dia". Mas a leitura em silêncio acarretava também
um outro perigo: um livro que pode ser lido em privado já não
é susceptível de clarificação imediata
ou de leitura guiada, condenação ou censura por um ouvinte.
Leitores assim independentes tornavam-se obviamente... perigosos --
como viria a provar o movimento protestante que, no século
XVI, defendeu que toda a gente tinha o direito de ler a palavra de
Deus directamente, sem testemunhas nem intermediários.
(Texto construído a partir de Alberto Manguel
- Uma História da Leitura. Lisboa: Editorial Presença.
1998,
capítulo Os Leitores Silenciosos).
[1] Santo AGOSTINHO - Confissões.
Porto: Livr. Apostolado da Imprensa, 9.a ed., 1977.
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