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Pretexto para a publicação deste texto: a comemoração do Dia Mundial do Livro de 2002 (a 23 de Abril).

LEITURA
SILENCIOSA / EM VOZ ALTA


A leitura silenciosa tornou-se usual no Ocidente apenas no século X. Antes a leitura normal realizava-se em voz alta. Nas suas Confissões(1) Santo Agostinho (um filósofo que viveu entre 354 e 430) refere-se ao bispo de Milão, Ambrósio (que também viria a ser canonizado), observando que era um leitor cuja voz se mantinha "'em silêncio e a sua língua não se movia"; e acrescenta que "muitas vezes, quando o vínhamos visitar, encontrávamo-lo a ler assim, em silêncio, pois nunca lia em voz alta". Tal forma de ler era suficientemente estranha para merecer um registo nas suas Confissões.

Os olhos esquadrinhando a página, a língua imóvel: é exactamente assim que se pode descrever um leitor hoje, sentado com um livro num café em frente à Igreja de Santo Ambrósio, em Milão, lendo talvez as Confissões de Santo Agostinho. À semelhança de Ambrósio, o leitor tornou-se cego e surdo ao mundo, aos transeuntes, às fachadas dos edifícios caiadas de cor de carne. Ninguém parece dar atenção especial a um leitor concentrado: recolhido, embrenhado na leitura, o leitor torna-se um lugar-comum.

Se a leitura em voz alta era a norma desde os primórdios da palavra escrita, como seria a experiência de ler nas grandes bibliotecas da Antiguidade? O erudito assírio a consultar uma das trinta mil placas na biblioteca do Rei Assurbanípal, no século VIl a. C., os desenroladores de pergaminho nas bibliotecas de Alexandria e Pérgamo, o próprio Agostinho à procura de determinado texto nas bibliotecas de Cartago e de Roma devem ter trabalhado num ambiente de ruído constante. No entanto, mesmo hoje em dia, nem todas as bibliotecas respeitam o proverbial silêncio. Nos anos 70, na bela Biblioteca Ambrosiana, em Milão, não reinava o silêncio cerimonioso que eu notara na Biblioteca Britânica, em Londres, ou na Biblioteca Nacional de Paris. Os leitores na Biblioteca Ambrosiana falavam uns com outros a partir dos seus lugares; de quando em quando, alguém gritava uma pergunta ou um nome, um tomo pesado fechava-se com estrondo, um carrinho com livros passava a chocalhar. Hoje em dia, nem a Biblioteca Britânica, nem a Biblioteca Nacional de Paris são totalmente silenciosas; a leitura em silêncio é pontuada pelos estalidos e martelar dos teclados de computadores portáteis, como se vivessem bandos de picapaus dentro destes edifícios forrados a livros.

Datam do século IX as primeiras ordenações a requererem o silêncio dos escribas no scriptorium monástico; até então, os textos que copiavam eram-lhe ditados ou liam-nos eles próprios em voz alta. Alguns dogmáticos suspeitavam da nova tendência; na sua opinião, a leitura em silêncio propiciava o sonhar acordado, o perigo de acídia -- o pecado do ócio, "a destruição que devasta ao meio-dia". Mas a leitura em silêncio acarretava também um outro perigo: um livro que pode ser lido em privado já não é susceptível de clarificação imediata ou de leitura guiada, condenação ou censura por um ouvinte. Leitores assim independentes tornavam-se obviamente... perigosos -- como viria a provar o movimento protestante que, no século XVI, defendeu que toda a gente tinha o direito de ler a palavra de Deus directamente, sem testemunhas nem intermediários.

(Texto construído a partir de Alberto Manguel
- Uma História da Leitura. Lisboa: Editorial Presença. 1998,
capítulo Os Leitores Silenciosos).

notas

[1] Santo AGOSTINHO - Confissões. Porto: Livr. Apostolado da Imprensa, 9.a ed., 1977. [voltar ao texto]

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