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Verdi
Com este texto recordámos, a 27/01/01, a morte de Verdi, 100 anos depois.

Giuseppe Verdi (1813-1901)

     

Verdi popular

Verdi, músico popular... Obras como Rigoletto, Trovatore, Traviata sempre foram eloquentes para o grande público. O mesmo não se pode dizer da crítica, que segue mais facilmente as modas. Durante muitas décadas, os adeptos da música erudita torceram o nariz perante essas obras, que consideravam demasiado simples, elementares, ou melhor, banais. Sustentavam, pelo contrário, que o "verdadeiro" Verdi era o de Otello e Falstaff. Depois, a moda passou, ou antes, a partir dos anos 30, passou a ser moda a redescoberta do Verdi popular.

A nós interessa-nos saber porque é que Verdi sempre foi e continua a ser popular. Propomos, pois, abordar o drama verdiano como um terreno ideal onde podemos tomar consciência dos nossos processos de comunicação musical mais difundidos e enraizados, de tal modo difundidos e enraizados que são subterrâneos e, por isso, imperceptíveis a uma observação superficial. É certo que, por esta via, não chegamos imediatamente a uma síntese mais brilhante sobre o Trovatore ou a Aida nem poderemos indicar de imediato as diferenças entre Verdi e Donizetti. Mas, se é verdade que as obras e o estilo de um autor pressupõem estratos de linguagem anteriores à intervenção criativa desse mesmo autor, a investigação desses estratos é uma condição necessária para se compreender verdadeiramente a originalidade dessas obras e desse estilo.

Vamos examinar dois fragmentos líricos que representam duas situações típicas -- e certamente não as únicas -- do melodrama: um coro {Va, pensiero) e uma ária (Tacea la notte placida) [descarregue Va pensiero, em formato mp3 -- cerca de 4 MB].
 
 

"Va, Pensiero"

O tempo é lentíssimo; a melodia sobe e desce, em declives e cumes, com grandes pausas; o acompanhamento é típico da Ária, mas também da Serenata; o tom é solene e vagamente eclesiástico, como o de uma liturgia ao ar livre. E o ritmo, que tranquilidade! O verso seria o decassílabo, verso marcial (lembrem-se "S'ode a destra uno squillo di tromba") ("Ouve-se à direita um toque de trompa"); e em Verdi: "Guerra! Guerra! S'impugni la spada" ("Guerra! Guerra! Empunhem a espada"); ("Si ridesti il Leon de Castiglia)" (Desperta o Leão de Castela). Mas aqui desapareceu a marca do ritmo e nem sequer é reconhecível na audição.

Em suma, este canto nacional é diferente de um hino de marcha e de luta. Quem tivesse ainda dúvidas, bastava que pensasse no passo curto, rápido, ritmado, de Bandiera rossa, da Internacional, de El pueblo unido, da Marselhesa. Neste caso, estamos perante uma meditação de pessoas paradas, mais, de pessoas sentadas. Como os antigos hebreus nas margens do Eufrates, como os italianos na margem estéril do Ticino, antes de 48 (Nabucco é de 1842) e como os escravos negros dos Estados do Sul, na mesma época, projectados em espírito para as margens do bíblico Jordão, no limite da terra prometida, ou seja, da libertação, física e moral, da escravidão. A meditação que precede e prepara a acção; virá depois o momento do "avanti popolo" ("avante, povo"). Como os Espirituais Negros, antes de We shall overcome. Foi assim que os nossos compatriotas do tempo de Nabucco "fizeram política" com esse hino.

Com certeza, a manipulação ideológica; a classe dirigente e literata projectava, sobre a península analfabeta, ou quase, as imagens míticas do "elmo de Cipião", da "harpa de ouro dos fatídicos vates", expressões herméticas como o verso "O simile di Solima ai fati" e ambíguas como a conclusão "al partire virtù" (tendo em conta as suas conotações religiosas naquela época). Mas o milagre da música, no canto, é poder exaltar ou anular as palavras. Dos feitos de Solima talvez já ninguém se recorde e o sentido perde-se; enquanto os "irmãos de Itália", que ouviram e cantaram aquela ária, se sentiram arrebatados pelo voo inicial do "pensamento", por essa libertação da voz que desce e sobe, em amplas espirais, sobre vogais abertas, em grandes espaços intervalares. De novo, o arrebatamento, com o regresso da frase melódica "O mia patria, si bella e perduta" ("Ó minha pátria, tão bela e perdida"). A repetição é a técnica retórica elementar da ênfase; aqui, por conseguinte, a ênfase reforça-se porque a frase exclamativa é, já de si, enfática. E a curva melódica realça e amplia a curva que a voz humana faria, se declamasse aquela frase.

Graças a Verdi, reflictamos sobre os nossos cantos corais, os nossos hinos sociais, políticos e religiosos. Até que ponto se prestam à expressão de comportamentos autênticos e, por outro lado, até que ponto servem para a manipulação ideológica?
 
 

"Tacea la Notte Placida"

No melodrama, as personagens começam muitas vezes a cantar em alturas em que tudo parecia adequado, menos o canto. Por exemplo, quando o herói ou a protagonista do drama está a morrer, ou quando alguns conjurados estão na eminência de ser descobertos e têm de apressar-se para fugir, para não se falar dos habituais exércitos em pé de guerra que, antes de partirem para o assalto, continuam a repetir a plenos pulmões, e com todos os artifícios do contraponto, "partiam, partiam". Por outras palavras, aqui a convenção (ou a invenção) lírica revela-se autónoma em relação às convenções teatrais do libreto ou a certo modo verístico de entender as histórias contadas pelos libretistas. O que é legítimo, dado que, entre a palavra, a música e a acção, todas as combinações são autorizadas, inclusive, naturalmente, as que eram consideradas impossíveis até à véspera.

O caso oposto dá-se quando uma personagem de ópera se acha no dever de exclamar: "aqui, fulano de tal cantou uma canção", e imediatamente começa a cantar, como faz Desdémona com a canção do salgueiro; ou quando a narração determina que uma personagem faça qualquer coisa como, por exemplo, cantar ou tocar (e o exemplo dá-o também Desdémona quando reza, cantando, a sua "Ave Maria"). Perante estes casos, a impressão do espectador é a de um realismo perfeito, embora certamente excessivo.

A ária de Leonora "Tacea la notte placida", no Trovatore, aproxima-se deste segundo tipo. A jovem princesa deve contar à fiel Inês que, numa noite inesquecível, um trovador lhe cantou uma serenata que lhe arrebatou o coração. A narração podia desenrolar-se em linguagem corrente, ou seja, num simples recitativo em estilo narrativo; no entanto, a nossa cantora toma fôlego, estica as cordas do seu instrumento vocal e dispara a poesia seguinte (que o leitor faria bem em ouvir antes de continuar).

"Tacea la notte...": para este ambiente de natureza, tranquilo, e para o estado de espírito (então) sereno da personagem, mas também para referir a serenata do cantor desconhecido, um arco melódico amplo, de longo alcance, um ritmo ternário embalador, de serenata, e o tom inicialmente narrativo.

"Quando...": a narração anima-se, o silêncio nocturno e o estado de espírito de Leonora agitam-se; a progressão musical regista, discreta mas pontualmente, as modificações da situação, até ao ligeiro suspense.

"Dolci s'udiro...": "com expansão", determina Verdi nesta passagem; expansão que é dada pela relação entre o mi bemol do baixo e o movimento, ascendente por meios tons, da melodia; nos "tons" do alaúde, a donzela sentiu e volta a sentir o "tom" do amor.

"E versi...": na repetição, em expansão destruidora (pelo ritmo, os intervalos, o movimento em espiral ascendente, a harmonia agitada e premente) explode a paixão. Uma explosão exagerada, para falar verdade, pelo exíguo conteúdo do texto que continua tranquilamente a dizer que "versi melanconici / un trovator cantó" ("Versos melancólicos / um trovador cantou").

O movimento narrativo do texto e o correspondente diagrama musical repetem-se na segunda estrofe com as mesmas quatro frases: a tranquilidade narrativa ("Versi di prece") ("Versos de prece"); animação emotiva pela participação pessoal da protagonista ("Corsi al verono sollecita") ("Corre ao balcão solícita); também a música "corre" com o "animando um pouco" recomendando pelo autor; expansão, "tom" de amor ("Gioia provai") ("Alegria senti"); êxtase, arrebatamento ("Al core") ("No coração"). Desta vez, o conteúdo do texto, nos dois versos finais, é adequado à explosão musical. Verdi foi de imediato ao ponto central, unindo os primeiros versos da primeira estrofe aos últimos versos da segunda. Assim, o compositor reuniu, num único arco progressivo, o movimento desde o silêncio até à sonoridade plena, desde a tranquilidade até ao êxtase que, no libreto, a convenção da ária estrófica tinha diluído em dois episódios. Por outro lado, temos de agradecer a essa mesma convenção o facto de, repetindo-se a melodia em estrofes diversas, podermos memorizá-la e interiorizá-la mais profundamente, sondando-lhe a ambiguidade e os vários recursos no confronto com as diversas situações do texto. É isto o que significa "dizer qualquer coisa por música", cantando. Narrando, narramo-nos; e a narração assume o tom e o calor da música e da voz, vai prosseguindo mas o seu sentido é dado pela música desde a primeira estrofe. E vice-versa: o sentido da música vai-se revelando, a pouco e pouco, à medida que se carrega dos múltiplos sentidos do texto. É esta a experiência da canção, que gosta de ter uma parte que vai avançando e outra que se mantém e se repete, o estribilho. E é também a experiência dos motivos verdianos mais populares, desde La donna è mobile a Libiamo nei lieti calici ou a Stride la vampa: ir exprimindo, numa fórmula límpida e breve, uma experiência que nunca mais se acabaria de contar.

(STEFANI, Gino - Compreender a Música. Lisboa: Editorial Presença, 1987. p 66-70)

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