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«Pessoalmente, entendo assim a mensagem do Papa: se a razão abdicar da arrogância fatal que a levou ao racionalismo dogmático e, a seguir, ao desespero niilista, ela pode e deve retomar a legítima ambição da busca, sempre inacabada, do bem e da verdade.»

Fé e Razão

NA PASSAGEM do 20º ano do seu Pontificado, João Paulo II acaba de publicar uma nova Carta Encíclica, intitulada «A Fé e a Razão». Como agnóstico, sinto-me particularmente à vontade para dizer que vejo esta Encíclica como uma lufada de ar fresco num panorama intelectual dominado por trivialidades relativistas e pós-modernas.

No centro das atenções do Papa está o relativismo contemporâneo e a sua versão radical, o niilismo, de que são expressão certas «leituras pós-modernas» (p. 122). «Já não se trata», escreve João Paulo II, «de questões que interessam apenas a indivíduos ou grupos, mas de convicções tão generalizadas no ambiente que se tornam, em certa medida, mentalidade comum. Tal é, por exemplo, a desconfiança radical na razão que invade as conclusões mais recentes de muitos estudos filosóficos» (p. 76).

A Encíclica afirma que «um dos dados mais salientes da nossa situação actual consiste na 'crise de sentido'... (gerada por) esta dúvida radical que facilmente leva a um estado de cepticismo ou indiferença ou às diversas expressões de niilismo» (pp. 108-109). O niilismo caracteriza-se por uma «rejeição de qualquer fundamento e, simultaneamente, a negação de toda a verdade objectiva» (p. 120).

Quais são as consequências do niilismo? «Antes mesmo de estar em contraste com as exigências e os conteúdos próprios da palavra de Deus (o niilismo) é a negação de toda a verdade objectiva... Deste modo, abre-se espaço à possibilidade de apagar, da face do homem, os traços que revelam a sua semelhança com Deus, conduzindo-o progressivamente a uma destrutiva ambição de poder ou ao desespero da solidão» (p.120). Este foi, em meu entender, precisamente o destino do niilismo germânico na viragem do século: nas ruínas da razão e do sentido deixadas pelas investidas de Nietzsche e seus seguidores, cresceu o irracionalismo nacional-socialista, ou a ambição crua do poder nu.

Mas donde surgiu, por sua vez, a investida niilista? Karl Popper pensava que ela surgira das debilidades próprias do racionalismo dogmático, do racionalismo excessivo - que Nietzsche detectara, caindo na filosofia do desespero. E Popper antecipara que, quando o racionalismo dogmático do marxismo caísse por terra, uma espécie de simbiose niilista entre Marx e Nietzsche passaria a ser o novo «ópio dos intelectuais», ou a nova «religião secular». Da confiança cega na certeza da Razão, passar-se-ia à certeza cega na impotência da razão.

João Paulo II não poupa «o espírito excessivamente racionalista de alguns pensadores». E recorda que «diversas formas de humanismo ateu... não tiveram medo de se apresentar como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no plano político e social, em sistemas totalitários que foram traumáticos para a humanidade» (pp. 64-65).

«Como consequência da crise do racionalismo», prossegue o Papa, «apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo fascínio sobre os nossos contemporâneos... Na interpretação niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações e experiências onde o efémero detém o primado» (pp. 65-66).

João Paulo II sabe, no entanto, que «a necessidade de um alicerce para construir a existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se é obrigado a verificar o carácter fragmentário de propostas que elevam o efémero ao nível do valor, anulando assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da existência. Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à beira do precipício, sem saber o que os espera» (pp. 13-14).

O Papa sublinha que a Igreja «não propõe uma filosofia própria nem canoniza uma das correntes filosóficas em detrimento de outras... mas é sua obrigação reagir, de forma clara e vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam a recta compreensão do dado revelado e quando se difundem teorias falsas e sectárias» (pp. 69-70).

Por isso, considera «muito importante que, no contexto actual, alguns filósofos se façam promotores da descoberta do papel determinante da tradição para uma forma correcta de conhecimento. De facto, o recurso à tradição não é mera evocação do passado; constitui, sobretudo, o reconhecimento de um património cultural que pertence a toda a humanidade. Poder-se-ia mesmo dizer que somos nós que pertencemos à tradição, e por isso não podemos dispor dela a nosso bel-prazer. É precisamente este enraizamento na tradição que hoje nos permite poder exprimir um pensamento original, novo e aberto ao futuro» (p. 116).

No centro da mensagem papal parece estar precisamente o apelo a «recuperar quer a profunda tradição teológica... quer a tradição perene daquela filosofia que, pela sua real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espaço e do tempo» (p. 116).

Pessoalmente, entendo assim a mensagem do Papa: se a razão abdicar da arrogância fatal que a levou ao racionalismo dogmático e, a seguir, ao desespero niilista, ela pode e deve retomar a legítima ambição da busca, sempre inacabada, do bem e da verdade. Uma razão crítica como esta só pode trabalhar em diálogo com as tradições, designadamente com a tradição teológica e metafísica, e com as propostas da Fé, reconhecendo a autonomia mútua. Daqui renascerá «o ponto de encontro (ou o terreno comum de entendimento e diálogo, p. 136) entre as culturas e a fé cristã, o espaço de entendimento entre crentes e não crentes» (p. 106). Mas, para que esse diálogo possa ter lugar, é indispensável que a filosofia se liberte do subjectivismo e relativismo desenfreados para onde é empurrada pelo niilismo, produto do fracasso merecido do racionalismo dogmático.

 

 

(Opiniões, sugestões, críticas,... a A.R.Gomes)
 

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