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Por ter adoptado a Teoria de Copérnico,
segundo a qual a Terra e os outros planetas giram à volta do Sol,
e admitido a infinitude do Universo, além de uma infinidade de mundos,
Giordano Bruno foi queimado vivo pela Inquisição. O episódio
ocorreu a 17 de Fevereiro de 1600, em Roma
Completaram-se na quinta-feira, dia 17, 400 anos sobre a
morte de Giordano Bruno, queimado vivo pela Inquisição devido
às suas teses filosóficas e científicas. A fogueira
foi acesa pelas 18 horas na Praça das Flores, em Roma, exactamente
no local onde desde 1884 está um monumento em sua memória.
As chamas que lhe devoraram o corpo não lhe consumiram as ideias,
as quais permaneceram e se disseminaram através dos tempos, vindo
a influenciar filósofos tais como Schelling, Hegel, Krause e Leibniz,
entre outros.
Mais do que as suas ideias filosóficas ou científicas,
os inquisidores quiseram sobretudo destruir o perigoso exemplo que representava
a audácia e a coragem de um homem, antigo padre dominicano, que
desafiou os poderes instituídos e que, mesmo diante da fogueira,
recusou retractar-se, preferindo morrer a abjurar a verdade em que acreditava,
ou seja, «uma verdade cuja defesa lhe pareceu mais preciosa do que
salvar a própria vida», como diz Eugen Drewermann, no seu
livro «Giordano Bruno ou o Espelho do Infinito».
Nascido em Itália, na localidade de Nola (Campânia),
em 1548, Giordano Bruno era sobretudo um inconformado e um insatisfeito
que percorreu a Europa do seu tempo ensinando em algumas das mais famosas
universidades de então, tais como Toulouse, Paris, Oxford, Witemberg
e Zurique.
Retrato de Giordano Bruno publicado
numa edição da Gulbenkian, em Janeiro de 1978 |
Ao Nolano, como ficou conhecido por muitos contemporâneos,
faltou o «pragmatismo» de Galileu Galilei, que anos mais tarde,
envolvido também ele na teia da Inquisição, viria
a abjurar as verdades científicas que comprovara, a fim de escapar
à fogueira. Bruno não era dos que se contentavam em murmurar
as suas teses para sossegar a própria consciência. Convencido
da sua veracidade, proclamou-as em tom desafiador por toda a Europa e na
própria Itália, aonde imprudentemente regressara em 1591
para ensinar um abastado cidadão de Veneza, Giovani Mocenigo, o
mesmo que acabaria por denunciá-lo ao Santo Ofício.
A sua personalidade e as suas doutrinas estiveram sempre
envolvidas por uma controvérsia que perdura até aos nossos
dias. A polémica atravessou a própria Igreja Católica,
que nunca efectuou a revisão do seu processo. O seu nome foi retirado
dos registos da Ordem de São Domingos, a que pertenceu, e das universidades
em que tinha ensinado. Já neste século, no ano de 1942, um
alto dignitário do Vaticano, Angelo Mercati, publicou um «Resumo
do Processo de Giordano Bruno», em que legitima a sentença
do Santo Ofício, na medida em que se recusa a julgar «os métodos
processuais, prisionais e penitenciários de uma época em
que na culpa ou delito se via justamente (...), o pecado perante Deus e
a Igreja e, nas penas, não só o castigo, mas um salutar e
benéfico meio de reparação e de elevação
sobrenatural».
Segundo Vítor Matos, autor do prefácio à
edição portuguesa do livro «Acerca do Infinito, do
Universo e dos Mundos», publicado em 1978 pela Fundação
Calouste Gulbenkian, a própria morte de Giordano Bruno foi, «com
unânime cumplicidade», silenciada pelos escritores da «história
eclesiástica» e da «história profana» do
seu tempo, mesmo dos que, «em vida, o protegeram, lhe deram hospitalidade
e partilharam da sua amizade».
E talvez porque os detentores do saber e do conhecimento,
incluindo o próprio Galileu, preferissem omitir as referências
a Giordano Bruno é que nasceram os mitos. Primeiro, logo no século
XVI, nasceu a lenda que o execrava como «ateu» e «materialista
abominável», a qual se prolonga até ao século
XX. Depois, já em pleno Século das Luzes, Bruno é
reabilitado e exaltado por sectores laicos da sociedade, mas não
pela Igreja Católica. E com tanta intensidade e paixão é
redescoberto que surge então um novo mito - o do mártir,
morto devido ao seu pensamento filosófico e científico. Essa
exaltação culmina com a inauguração, em 1884,
de um monumento no mesmo local onde fora queimado vivo, quase trezentos
anos antes.
Fotocópia reduzida da
primeira página de uma edição francesa da colecção
Filósofos de Todos os Tempos |
O próprio Papa Leão XIII, um dos pontífices
mais progressistas de sempre e um dos poucos pacifistas que ocuparam a
cadeira de Pedro, conhecedor e admirador de Galileu, fez publicar uma circular
para ser lida obrigatoriamente em todas as igrejas, em que condenava a
«vida desordenada» de Giordano Bruno, a sua «animosidade
contra a Igreja», a sua «heresia» e sua «dupla
apostasia da fé».
Por ocasião da polémica inauguração
do monumento a Bruno, Leão XIII referiu-se-lhe como um materialista
e um ateu, sem especiais qualidades humanas e intelectuais, sem qualquer
mérito científico. «A sua forma de trabalhar foi pouco
sincera, enganosa e totalmente egoísta, intolerante com qualquer
opinião contrária, marcadamente maliciosa e repleta de uma
adulação que desfigura a verdade» - afirmava, na referida
circular o mesmo papa que um dia dissera que queria levar a Igreja tão
para diante que o seu sucessor já não pudesse fazê-la
voltar para trás.
Mas qual foi então o tenebroso crime desse agitador
do conhecimento e do saber?
Capa da primeira edição
dos diálogos de «O Infinito, o Universo e o Mundo»,
de Giordano Bruno |
Embora o seu processo se tivesse perdido, foi possível
fazer uma reconstituição do seu conteúdo, nomeadamente,
identificar as oito proposições heréticas que a Inquisição
retirou dos seus livros. Dois deles assumiram particular importância
na convicção dos inquisidores: «Acerca do Infinito,
do Universo e dos Mundos» e «A Expulsão da Besta Triunfante».
Na primeira daquelas obras, Bruno critica a cosmologia
de Aristóteles e rompe com o mundo das esferas, adoptando a teoria
de Copérnico, segundo a qual a Terra e os outros planetas giram
à volta do Sol. Giordano Bruno não se fica por aí
e ultrapassa o próprio Copérnico, ao admitir a infinitude
do Universo e uma infinidade de mundos.
O seu raciocínio é mais ou menos este: Deus
é infinito, e o Cosmos, que é a manifestação
da essência divina, deve ser também infinito. A perfeição
divina oferece-se numa inumerável série de mundos. Em sua
opinião, seria absurdo pensar que um Deus infinito tivesse gerado
um efeito finito e imperfeito. «Por que quereis que esta Divindade
que pode estender-se infinitamente numa esfera infinita, se reconcentre
com parcimónia em si mesma e prefira permanecer estéril a
comunicar-se com uma mãe fecunda e cheia de formosura?... Por que
privar da existência os mundos possíveis e alterar na sua
perfeição a imagem divina?», interrogava.
Estampa do livro do português
Francisco Sanches, com dedicatória a Giordano Bruno, seu contemporâneo
na Universidade de Toulouse |
Simplesmente, o modelo de Copérnico era para a Igreja
da época intolerável, na medida em que entrava em contradição
com a Bíblia, nomeadamente com um episódio segundo o qual
Josué, durante uma batalha, levantara o braço e mandara parar
o Sol. Ora, se o Sol parou, é porque era ele que se movia e não
a Terra.
Já na obra «A Expulsão da Besta Triunfante»,
Bruno concebe uma alegoria onde os deuses da mitologia clássica
se reúnem no céu, instituem a virtude e decidem expulsar
o vício. Só que houve quem identificasse «A Besta»
com o Papa Clemente VIII. Não podia haver contemplações
com tamanha ousadia.
O processo, que se prolongou durante oito anos, foi instruído
por um jesuíta, Roberto Belarmino, e no final os inquisidores acusaram
Giordano Bruno de oito heresias (encontradas principalmente no livro «A
Expulsão da Besta Triunfante»), cuja reconstituição
foi possível a partir de vários depoimentos de contemporâneos,
nomeadamente, Kaspar Schopp (da congregação de S. João
Decapitado), um dos que identificaram «A Besta Triunfante»
com o papa Clemente VIII.
Cópia do retrato de Francisco
Sanches, pintado por Jean Chalette (séc. XVI), Faculdade de Medicina
de Toulouse |
De acordo com Emile Namer (no seu livro «Giordano Bruno
ou o Universo Infinito como Fundamento da Filosofia Moderna»), a
primeira heresia que Giordano Bruno deveria abjurar era a afirmação
da existência de «dois princípios reais e eternos da
existência: a alma do mundo e a matéria original de que derivam
os seres».
A segunda era a teoria do universo infinito e da multiplicidade
dos mundos, que se opunha à ideia da criação no tempo.
A proposição seguinte referia-se à teoria de Bruno
segundo a qual a alma humana, enquanto proveniente da alma do mundo, não
seria mais do que um fenómeno transitório. Toda a sua realidade
estaria no mundo eterno e infinito.
A quarta asserção exprime-se da seguinte
forma: uma vez que a matéria é eterna, então nada
se engendra e nada se corrompe, tudo se transforma. A vida e a morte individuais
mais não são do que meras aparências. «Não
existe uma mutação da matéria», mas tão-só
das formas particulares que ela assume.
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A quinta tinha a ver com o movimento da Terra. Giordano Bruno
achava que conseguira demonstrar a causa do movimento terrestre e da imobilidade
do firmamento, devido a razões que não punham em causa a
autoridade das Sagradas Escrituras. Aliás, ele entendia que os livros
divinos só se referiam a questões morais e não à
verdade das coisas da natureza. Segundo João André, professor
de filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Giordano
Bruno «reivindicava uma espécie de dupla moral: uma para os
sábios, porque têm acesso à verdade através
do conhecimento e da razão; outra para o povo, que é a que
se encontra na religião». E sublinha: «Isso resolve-lhe
o problema do conflito entre a verdade biblioteológica e a filosófica,
na medida em que aquela mais não é do que a fundamentação
do comportamento moral, sendo esta, a filosofia, o único caminho
para a autêntica verdade.» Confrontado com os versículos
do Eclesiastes, segundo o qual «...a terra subsiste sempre. O sol
nasce e põe-se e apressa-se a voltar ao seu lugar, donde volta a
nascer», Bruno objectava que tais palavras podiam ser interpretadas
com sentidos diversos e que, além disso, as Escrituras utilizavam
uma linguagem acessível ao comum dos fiéis e, por isso, não
se dirigiam aos sábios enquanto tal.
A sexta proposição herética consistia
em designar os astros como os verdadeiros «mensageiros e intérpretes
da voz divina (...) os anjos sensíveis e visíveis»,
e a sétima atribuía à Terra uma alma, «não
apenas sensitiva (...) mas também intelectiva».
Por fim, os inquisidores acusavam Bruno de ir contra a
doutrina de São Tomás de Aquino, segundo a qual a alma intelectiva
é a forma do corpo humano. Ora, para Giordano Bruno, a alma nunca
seria forma, mas antes «(...) uma realidade espiritual actualmente
presente no corpo (...) cativa em qualquer caso, numa prisão (...)»,
como um piloto no seu barco.
Foram, pois, estas as oito asserções heréticas
que foram formuladas pelos inquisidores ao fim dos cerca de oito anos que
durou o processo. Havia agora que convencer Bruno a abjurá-las,
para bem de todos, mas ele recusou-se a fazê-lo, «manteve até
à hora decisiva a audácia de proclamar uma esperança
transbordante de segurança sobre o sorte da sua alma, quando as
severas ameaças da Igreja colocavam diante dos seus olhos uma certeza
tenebrosa», como salienta Drewermann.
Segundo o relato de Kaspar Schopp, testemunha presencial
dos últimos momentos de Giordano Bruno, o «frade apóstata»
e «herege obstinado», foi exortado com toda a caridade a reconhecer
o seu erro. «Mas ele perseverou até ao fim na sua condenada
rebeldia e a sua mente e a sua inteligência transtornaram-se com
mil erros; nem sequer cedeu na sua contumácia quando os guardas
o conduziram à Praça das Flores. Aí foi despojado
das suas roupas, atado a um mastro e queimado vivo. Durante todo esse tempo
esteve acompanhado pela nossa congregação, que constantemente
entoaram litanias, enquanto que os consoladores tentavam até ao
último momento quebrar a sua tenaz resistência, até
que, por fim, acabou a sua vida miserável e desgraçada».
Ao lançarmos hoje um olhar sobre a coragem e resistência
de Giordano Bruno, não podemos deixar de o comparar com o «realismo»
de Galileu Galilei e sobretudo não podemos deixar de recordar os
versos de um antigo poeta jónico, que viveu no século VII,
a.C., Arquíloco, quando escreveu: «De um Trácio é
agora o meu tão belo escudo./ Que havia eu de fazer? Perdi-o na
floresta./ Mas salvei a minha pele, no aceso da luta./ Sei bem onde comprar
um escudo novo.»
Texto de ANTÓNIO MARINHO
400 anos de polémica
O pensamento de Bruno 
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