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QUANDO O SAGRADO 
SE MANIFESTA


de O Sagrado e o Profano, p. 25-27

O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o acto da manifestação do sagrado propusemos o termo hierofania. Este termo é cómodo, porque não implica qualquer precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos mostra (1). Poderia dizer-se que a história das religiões — desde as mais primitivas às mais elaboradas — é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania — por exemplo, a manifestação do sagrado num objecto qualquer, uma pedra ou uma árvore — e até à hierofania suprema que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo acto misterioso: a manifestação de algo «de ordem diferente» — de uma realidade que não pertence ao nosso mundo — em objectos que fazem parte integrante do nosso mundo «natural», «profano».

O ocidental moderno experimenta um certo mal-estar  diante de inúmeras formas de manifestação do sagrado: é-lhe difícil aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou em árvores, por exemplo. Mas, (...)não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas como pedra ou como árvore, são-no justamente porque são hierofanias. porque «mostram» qualquer coisa que já não é pedra nem árvore, mas o sagrado, o «ganz andere».

Nunca será de mais insistir no paradoxo que toda a hierofania constitui, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objecto qualquer torna-se outra coisa, e contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do seu meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (com maior exactidão: de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, a sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Por outros termos, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é susceptível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania.

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível em o sagrado ou muito perto dos objectos consagrados. Esta tendência é de resto compreensível, porque para os «primitivos» como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder, e, no fim de contas, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou pseudo-real. (Bem entendido, é escusado esperar reencontrar-se nas línguas arcaicas esta terminologia dos filósofos: real-irreal, etc. — mas encontra-se a coisa). É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder.

É deste assunto, sobretudo, que nos ocuparemos nas páginas que seguem: como é que o homem religioso se esforça por manter-se o máximo de tempo possível num Universo sagrado, e, por conseguinte, como é que se apresenta a sua experiência total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo des-sacralizado. Digamos imediatamente que o mundo profano na sua totalidade, o Cosmos totalmente des-sacralizado, é uma descoberta recente na história do espírito humano. Não nos incumbe mostrar por que processos históricos e em consequência de que modificações do comportamento espiritual, o homem moderno des-sacralizou o seu mundo e assumiu uma existência profana. Para o nosso propósito basta constatar que a des-sacralização caracteriza a experiência total do homem não-religioso das sociedades modernas, e que, por consequência, este último sente uma dificuldade cada vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das sociedades arcaicas.
 
 

(1) Veja-se o nosso Die Religionen und das Heilige (Salzburg, 1954), p. p. 27 et passim. (Voltar ao texto)


 
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