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Com
prazo de validade
textos/ideias, ao ritmo do programa de Introd. à Filosofia |
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Aqui serão
divulgados textos de apoio à disciplina de Introdução
à Filosofia, prevendo-se particular relevo para o 10º ano.
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DEFENDER OS LIVROS
DOS SEUS AMADORES
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«O AMOR pelos livros é o bem mais partilhado do mundo. Em
nome dele, escritores e leitores, professores e críticos, revisores
e editores, livreiros e tipógrafos, comissários e divulgadores
sentem-se unidos ao serviço de uma grande causa; em nome dele, instituiu-se
a grande festa ecuménica do Dia Mundial do Livro, em que se celebra
este maravilhoso instrumento de socialização da cultura e
último reduto de fé na emancipação da Humanidade.
Quem ousaria estar contra? Timidamente, digamos apenas que um amor tão necessário e universal não está isento de riscos. Por exemplo, o de fazer da leitura uma moral, deixando que nela se venha incrustar um pietismo das boas intenções, como sugere a campanha da «Leitura Solidária», promovida pelo Ministério da Cultura, que decorreu ao longo de toda a semana passada nas bibliotecas públicas, ditas «lugar de amigos».
Reféns de um grande amor e garantia da grande significação
moral que o acto de ler comporta, os livros tornam-se assim objectos que
nos escolhem a nós, mais do que nós os escolhemos a eles.
Sejamos breves: com moral ou sem ela, o Ministério da Cultura cumpre
a sua obrigação ao promover a difusão dos livros e
contribuir para a divina expansão das Ciências, das Artes
e das Letras; nós, leitores, regozijamo-nos mas temos obrigação
de desconfiar de que este amor universal pelos livros, por mais bem intencionado,
é sufocante.
Dessa enorme massa de livros inúteis, muitos deveriam ser considerados nefastos. Se a televisão é tão frequentemente apontada como um meio de produção da imbecilidade, porque haveriam os livros (mesmo aqueles que têm a caução de um género respeitável: a poesia, o romance, o ensaio) de estar isentos desse efeito? A resposta a esta questão é a mesma que explica por que é que a leitura se pôde transformar numa moral: o livro está protegido pela autoridade da tradição. Poderosamente aspirado para o interior do espaço contínuo, homogéneo e sem falha da cultura, o livro em si é uma presa fácil do acordo humanista com o mundo dos valores. E digo «o livro em si» porque alguns livros, aqueles que interessam verdadeiramente, têm o poder de se excluir e de excluir as astúcias da cultura. Todas as campanhas filantrópicas a favor dos livros e da leitura trabalham no sentido de dizer que a cultura é tudo.
Esta proposição de conformidade, com o seu enorme poder redutor,
encerra os livros num eclectismo enganador e numa fictícia unidade,
sob a vigilância do humanismo.
Quando passamos para o estrito campo da literatura, as coisas são ainda mais perniciosas. Aí, a ideologia que reduz a leitura, em si, a um valor, e os livros, indistintamente, a respeitáveis elementos da vida da nação, transforma-se numa maquinaria colectiva sem hesitações. É assim que os escritores são cada vez mais solicitados a desempenhar o papel de figuras de representação (em feiras, festivais, sessões de homenagem, embaixadas culturais, etc.), os críticos são chamados a fazer divulgação cultural e a organizar acontecimentos deste tipo, e os professores empenham a autonomia científica a favor de um bom patrocínio. Este reino da felicidade prometido a todos rege-se pela lei da comensurabilidade — esse estranho poder de tornar tudo equivalente e comparável, de juntar tudo numa festa permanente. Desconheço se esta forma de amor pela literatura que prolonga o amor pelos livros é uma originalidade do nosso tempo. Mas sei como foram importantes aqueles que tiveram a coragem de renunciar (como Rimbaud), de queimar a sua obra (como Kleist), de mortificar-se nela (como Flaubert), de lançar gritos de ódio (como Bataille: «Creio que não houve nada que eu odiasse mais do que a poesia»), de desafiar tragicamente os inimigos (como Mandelstam), de manifestar o desejo de poupar a posteridade a uma responsabilidade demasiado pesada (como Kafka, que numa carta endereçada ao seu amigo Oskar Pollack, em Janeiro de 1904, escrevia: «Parece-me, aliás, que não deveríamos ler senão os livros que nos mordem e nos picam. Se um livro que lemos não nos desperta como um soco no crânio, para quê lê-lo? Para que ele nos torne feliz, como tu dizes? Meu Deus, seríamos igualmente felizes se não tivéssemos livros, e livros que nos tornam felizes, em rigor, podíamos nós próprios escrevê-los. Em contrapartida, precisamos de livros que agem sobre nós como uma infelicidade de que muito padecêssemos, como a morte de alguém que amássemos mais do que a nós próprios, como se fôssemos proscritos, condenados a viver em florestas, longe de todos os homens, como um suicídio — um livro deve ser o instrumento que quebra o mar gelado em nós. Eis aquilo em que acredito.» Estes exemplos respondem a um modelo heróico do escritor e a uma concepção da literatura que tiveram a sua época e não podem regressar. No seu tempo, eles também foram altamente minoritários, facto que nos faz acreditar que continua a haver algures umas simiescas criaturas que nem se aproximam das migalhas do festim e olham à distância o edifício que, em última instância, só se mantém graças a eles. Como dizia Robert Musil, «é por causa deles que a maior parte dos escritores recebe prémios que não merece; é por causa deles que se organizam homenagens a outros». A mais inocente das ocupações — a literatura — sobrevive muito bem ao amor pelos livros. |
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é um projecto
de António R. Gomes
a tratar graficamente por Eduardo Ferrão, disponibilizado graças a Terràvista. |
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