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Aqui serão divulgados textos de apoio à disciplina de Introdução à Filosofia, prevendo-se particular relevo para o 10º ano.

 


 
 
 

 

ISTO E AQUILO


Um asno nem sempre é um asno, especialmente se tiver carta. Um corpo nem sempre é um corpo, e o sangue nem sempre é sangue, especialmente num contexto de celebração cristã. Então, como é que podemos interpretar as descrições do mundo que os outros nos dão?

Eram treze companheiros, um deles o líder, homem com carisma e na força da idade. Chegara a altura da Páscoa e eles tinham de celebrá-la dentro do costume. Dirigiram-se, então, a uma determinada casa, estava já tudo tratado pelo que se compreende, e tomaram lugar, numa sala ampla, em torno da mesa com os alimentos rituais: pão ázimo e vinho. Estavam já a comer quando o homem do carisma pegou um pão, abençoou-o e partiu-o. Deu um pedaço a cada um dos amigos e disse uma coisa porventura surpreendente: “Peguem e comam, isto é o meu corpo.” Já eles obedeciam quando ele abençoa o vinho: “Peguem e bebam, isto é o meu sangue." 

A cena que relatei é contada nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (são os chamados Evangelhos Sinópticos) e nela vêem os Cristãos a instituição da Eucaristia. Mas não foi por isso que falei na refeição pascal do Cristo com seus amigos. Foi porque, quando o Cristo diz “isto [o pão] é o meu corpo” e “isto [o vinho] é o meu sangue”, ele está usando o mesmo recurso de comunicação que encontramos quando lemos, em Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver/ é ferida que dói e não se sente." Esse recurso chama-se metáfora. 

Não é precisos sermos evangelistas ou poetas, não é preciso termos grandes estudos – aliás nem faz falta escolarização nenhuma – para criarmos metáforas sempre que nos sejam necessárias para a boa expressão do que sentimos ou pensamos. Isso, aliás, você já sabe, se viu aquele lindíssimo filme chamado O Carteiro de Pablo Neruda. A metáfora faz parte da linguagem quotidiana de todos nós e sai-nos da boca sem darmos por ela. É um recurso bastante curioso, mesmo interessantíssimo, porque, se pensarmos bem, quando metaforizamos é como se propuséssemos um absoluto contra-senso, porque dizemos que uma coisa é outra. Contudo, em vez de ficar absurdo, ilógico, incompreensível, o mais natural é que a metáfora expresse na perfeição o que queremos. 

Imagine-se a conduzir numa estrada estreita e cheia de curvas. Vem um carro e ultrapassa o seu, pisando o risco contínuo e mesmo em cima de curva fechadíssima. Você olha, e enquanto acode com uma manobra que eu não calculo qual seja, indigna-se: “Mas que grande asno!” 

Evidentemente, o carro vai conduzido por uma pessoa, não por um animal. Mas também é evidente que o seu companheiro de viagem sabe que você não pensou nem por um segundo que ao volante do outro carro estivesse instalado um representante dos asininos. O seu companheiro compreendeu "asno” como o jeito muitíssimo expressivo que você encontrou para chamar “estúpido” ou “irresponsável” ao motorista prevaricador. 

Quando você disse "asno" em lugar de “irresponsável” e o seu companheiro descodificou correctamente o que ouviu, ambos realizaram uma operação linguística ligada ao que se chama “salto de campo conceptual” ou de “campo semântico”.
É assim: uma pessoa (o motorista da ultrapassagem, no caso) está ligada à ideia, ao campo semântico, ao conceito, de razão, de capacidade de pensar e, ainda, de capacidade de falar. Um asno está ligado ao campo semântico, ao conceito, de irracionalidade: ele não pensa como nós, tal como também não dispõe de fala, de linguagem articulada. 

Com esse traços que configuram modos de ser substancialmente diferentes, é claro que, chamando a uma pessoa “asno”, estou a dizer que ela não é o que é (um ser humano), sendo antes o que não é (um animal irracional). Este contra-senso, contudo, redundou numa informação ultra-precisa sobre o modo como você avaliou a actuação do outro motorista. Nem todas as metáforas são tão facilmente descodificáveis: há as que são obscuras e, ainda, as chamadas metáforas abertas. Mas como umas e outras pertencem mais ao discurso criativo (literário), não as abordo aqui. 

A clarificação do sentido da metáfora faz-se por uma espécie de duplo esquecimento. É este que permite o trânsito entre dois campos semânticos, e então chamamos “asno’ ao motorista ou “santa ’ à nossa sofredora amiga. No primeiro caso, eu tenho de esquecer todas as diferenças entre o motorista e o asno, lembrando-me apenas do ponto comum que encontro entre eles; a estupidez (do asno porque não pode pensar e do motorista que, dotado de pensamento, não o acciona como deve ser, quando ao volante). O mesmo se passa quando chamo “santa” à minha sofredora amiga – também só posso lembrar-me daquilo que a aproxima das santas encartadas, com direito a altar e a dia festivo no calendário. Mudo, então, de campo semântico, tendo em conta, na amiga e na santa, um traço de carácter ou de comportamento: a paciência, por exemplo. 

Trabalhando sobre a ideia de que uma coisa é outra, vinho é sangue, pão é corpo, amor é fogo, a metáfora enquadra-se no pensamento mágico, de onde chega aos pensamentos poético e religioso. Presente em áreas tão importantes da relação do homem com o mundo (e, de resto, não apenas nessas), a metáfora é estudada em termos linguísticos e literários, e, ainda, em Epistemologia e Antropologia. Neste último campo de estudos apercebemo-nos da existência de metáforas não-verbais: metáforas-objectos ou metáforas-situações que inundam o nosso quotidiano sob as mais variadas formas, nos mais inesperados instantes, e de tal maneira que a certa altura nada é o que é, sendo tudo outra coisa qualquer, porventura inapreensível. Quando nos damos conta disso podemos, parafraseando Woody Allen, pensar: “A vida é uma grande metáfora, só nos resta saber de quê." 
 

(Maria Lúcia Lepecki, in Super Interessante de Novembro de 1998. Maria Lúcia Lepecki é professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)

 

O canto da Filosofia
Ditos e ditotes Ele há cada um... Filósofo... em PESSOA Maledicências...  O canto da Filosofia é um projecto de António R. Gomes
a tratar graficamente por Eduardo Ferrão, 
disponibilizado graças a Terràvista.
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