Publicada em
de
de 21/9/97
Por Elena Pita / Fotografias de Antonio Sánchez
trad. de António R.
Gomes
Versão original (em espanhol)
Continua a trabalhar todos os dias à tarde, depois de merendar. Mas não escreve, dita -- e o resultado, diz, não é o mesmo. Di-lo com resignação, ou com a tranquilidade que dá o saber que "a obra" já está feita. Salamanquino por adopção, regressa à sua Galiza em "Os anos indecisos", um romance alicerçado em recordações que é uma homenagem ao seu pai marinheiro. Continua a escrever porque, confessa, não sabe fazer mais nada e porque tem que viver de algo. Do alto dos seus 86 anos, repousados, compridos e férteis, olha para trás e afirma com segurança que o grande erro da sua vida foi não se ter tornado rico.Só foi preciso apanhar a roupa estendida, no pátio da sua casa -- roupa ainda húmida do relento da noite, não fosse ficar na fotografia. Húmidos também os ossos do escritor, que por isso foi para Salamanca, cidade que o conserva, temperado e seco entre as pedras.
E aí está Torrente, acabado de levantar, ao meio-dia e meio. E começa o dia a contemplar: "Bom... sejamos sinceros: eu já não contemplo muito, passo o dia a dormitar, assim, a fazer de velho". Assim, até à hora da merenda. Como o incomodámos cedo, esforça-se por falar: que nada lhe custa ("pensas que me incomodas?"). Escuta com a cabeça inclinada, ao jeito de um breve exercício de sonho, levanta-a a seguir e conta "vou-te contar uma coisa", diz. Ouve rabugento, "porque tenho muito bom ouvido e quase não vejo"; além disso tem grandes orelhas. "Ao ouvido, dou-lhe o valor que tem, porque vivo no meio de surdos. A minha sogra (indica-a, impávida numa cadeira ao lado), a minha sogra é completamente surda. E a minha mulher vai a caminho de o ser". O humor sai-lhe em caudal, possivelmente sem que ele o queira. Escreveu um romance, um "romancezeco", diz o escritor, ditado e em ferrolano, a linguagem que ele mais bem escuta -- Os Anos Indecisos [tradução portuguesa: Difel], assim se chama, corrigido pela sua filha. "Tento acostumar-me ao gravador, mas escrever sem papel não é a mesma coisa". Falta a Torrente o tacto da folha, não apalpa a sua escrita. E, ainda que agora a vida o não espicace, pensa no futuro: "Há-de espicaçar". De maneira que passou todo o Verão, das sete às nove, depois da merenda, a ditar um conto para crianças: "Nunca tinha pensado nisso, pensei aqui. E agora estou aqui parado, porque não sei se hei-de deixar ou continuar o personagem, fazendo mais contos". O céu está abrasador em A Ramallosa, um lugarejo de Baiona onde os Torrente passam compridos verões, tempo de outros tempos, desde que nos anos sessenta trocaram as suas Rias Altas, de mar encrespado, pelo clima mais benigno desta fronteira com Portugal. Regressa às suas rias em Os Anos Indecisos, que rendem homenagem ao marinheiro que foi o pai do escritor. E assim o protagonista, que bem poderia ter sido ele, estudante de Direito transformado em escrivão de papéis públicos, crítico teatral, decide o futuro que Torrente Ballester (Ferrol, 1910) não escolheu, e de certeza ainda lhe dói: ser marinheiro, professar o atlantismo a bordo de barcaças rumo à Argentina.
Sudandico está o escritor, parafraseando o bom castelhano de Andaluzia, de que ele gosta. Mas para lá do sol, sobre as Ilhas Cíes, o leve cinzento do horizonte anuncia o vento suave das castanhas, que não tardará a chegar. Numa semana, a família Torrente, 11 filhos, netos e bisnetos, recolherão os apetrechos -- direcção: Salamanca.
Pergunta. De volta ao desterro, galego?
Resposta. Desterro... depende, porque eu gosto de Salamanca, sinto-me bem, mas não posso passar sem a Galiza: todos os anos venho dois ou três meses.P.-Então... transterrado.
R.-Boom... já não sou personagem galega em Salamanca, pois quase não saio de casa.P.-E ainda assobia, Torrente, por tradição familiar?
R.-Já não (e baixa a voz, como se quisesse contar um segredo). Já não (ainda em voz baixa). Não. Assobiava quando fazia a barba, mas agora, como faço a barba com máquina eléctrica, não dá jeito assobiar.P.-E ainda bebe whisky, por prescrição facultativa?
R.-Sim, isso sim. Isso ninguém mo tira. De tarde, depois de merendar, sempre um whiskizito avantajado.P.-E ainda escreve, depois das seis?
R.-Dito, às vezes. Mas escrever, já não escrevo, porque não vejo nada, desde há uns três anos. O que acontece é que é diferente de quando se escreve directamente, há uma diferença grande que depois se nota na escrita. Os livros ditados são diferentes..
"para a glória estou-me marimbando. Já para o tempo, não."
P.-O escritor é um animal de costumes empedernidos?
R.-Mas mutáveis. Eu, o único costume que não mudei, foi o de trabalhar depois de merendar.P.-E o pior de todos -- esse de seguir em frente?
R.-E o que é que um homem vai fazer, se não sabe fazer mais nada senão escrever?! Qualquer outra coisa que me mandem fazer, faço-a mal. De modo que enquanto durar...P.-Quer dizer que escreve porque tem que viver.
R.-Bom... olha, eu cometi um erro muito grande que foi não me tornar rico. E é claro, tenho que escrever todos os dias um pouco, porque se não, não vivo.P.-Mas o senhor não é um sobrevivente da escrita.
R.-Não, ainda não. Um sobrevivente não faz nada, e eu tenho que fazer.P.-Há uns anos disse da sua obra: "tenho-a feita". O que é então isto que continuou a publicar?
R.-E continuo a dizer o mesmo, só que há que viver. Agora, por exemplo, vou publicar um romanceco, porque como um homem tem umas recordações e experiências...P.-Torrente, viveu 86 anos a desconhecer-se, como também disse -- o que é que inventa sobre si mesmo, para ir empurrando?
R.-Pois... olha, umas vezes invento que sou inteligente, mas outras não, porque não me convém. Quando estou de pé sou doido completo, quando me sento sou meio doido.P.-E quando é que é inteligente?
R.-Quando escrevo, não tenho outro remédio: por isso é que escrevo poucas vezes.P.-Seria mais cómodo ser meio doido sempre?
R.-Tem muitas vantagens. Eu, por exemplo, quando acordo digo: hoje não me funciona tal dedo ou tal coisa ou nada. Se fosse doido, não daria conta. Tem que se ser doido para não dar conta, e enquanto dura, booom, vida e doçura.P.-O bem que a memória tem, Torrente, é que permite inventar lembranças?
R.-Eu invento lembranças, ou antes inventei-as, mas a capacidade inventiva vai-se: a imaginação perde-se.P.-Mas a memória continua aí, não inventa?
R.-A memória não serve para nada, dá muito pouco, não inventa: inventa-se sobre a memória, e isso é o que desaparece com os anos.P.-E essa memória inventada é o mais sublime da literatura?
R.-A imaginação, que é um trabalho sobre a experiência, dá as grandes obras da literatura. É necessária a experiência, o material sobre o qual trabalhe a imaginação.P.-O senhor lembra-se da passagem da escolta real quando tinha apenas dois anos, lembra-se ou inventa?
R.-É a recordação mais antiga que tenho. Era no dia em que se tinha lançado ao mar o Espanha e se inaugurava o caminho de ferro Betanzos-Ferrol. Foi em Maio de 1912, eu nasci em 13 de Junho de 1910. Lembro-me de que estava nos braços de uma mulher, e lembro-me do avião do aviador Piñeiro, que voava a dois ou três metros do mar, e caiu.P.-Ou seja, sobre uma pequena lembrança pode-se inventar algo grande.
R.-Pois então, claro que se pode inventar, pode-se inventar tudo: o importante é ter capacidade de invenção.P.-É assim que a gente do Norte emigrante lembra Havana antes de a visitar, e desembarca num porto da memória colectiva?
R.-É isso que acontece aos galegos do Norte. Eu estive em Cuba há quatro anos, e, efectivamente, aconteceu-me isso: tive a impressão de já ter estado ali. Eu soube que existia Havana antes de Madrid. O meu padrinho, os meus tios, o meu irmão viúvo, estavam em Havana. (É aqui que canta "Cuando salí de La Habana, válgame Dios". Cantava-o já com apenas quatro anos).P.-Cuba é um estado sentimental?
R.-Sim, entre outras coisas, Havana e Santiago sobretudo. Eu nasci a dez, e a Guerra de Cuba tinha sido dois dias antes. Era um catraio de cinco anos e todos os senhores contavam lembranças. Juanciño, por exemplo, que era analfabeto mas tinha salvado uns quantos, era o que trazia ao lanterna: "Juanciño! Já vou". E um instante depois vinha a lanterna, descendo pelo monte na noite escura.P.-Galiza esqueceu o atlantismo a favor de um galeguismo oficial?
R.-Não sei, eu sou atlantista, sem dúvida, sempre o fui. O que acontece é que agora o atlantismo quer reduzir-se a Portugal e Galiza, e o atlantismo é muito hispânico, inclui América do Sul. Eu sou mais galego e menos nacionalista.P.-Acha que este país acabará por perder as províncias, com tanta televisão uniformizante?
R.-Booom, basta ver as pessoas, as pessoas permanecem, a televisão é superficial.P.-E perderemos o Norte e o Sul em literatura?
R.-Não, o Sul continuará a ser mais lírico e o Norte, mais prosaico. Agora apareceram grandes prosadores andaluzes que conhecem muito bem o castelhano. Eu escrevo em ferrolano.P.-Os editores não o chateavam?
R.-Booom, eu era catedrático. Como catedrático ensinava bem o espanhol, mas como escritor escrevo na língua que aprendi: o ferrolano. Metiam-se comigo em Valladolid porque eu usava expressões como "fregar de vertedero".P.-A literatura deve recolher o que ouve, deve escutar-se, ou deve atender à academia?
R.-Eu penso que cada qual deve escrever conforme escuta. As bases, não há ninguém que tas tire. Nós os galegos falsificamos o castelhano e tornamo-lo sonoro, coisa que ele não é.P.-Então defende a libertação da língua que García Márquez ironizou no seu discurso no México.
R.-Eu não tive conhecimento disso, mas a resposta está na prática. Nas aulas ensinei o castelhano espartilhado, depois escrevi o outro e, não há dúvidas, foi o que deu resultado.
"nós os galegos falsificamos o castelhano e tornamo-lo sonoro, coisa que ele não é."
P.-No seu romance há muita ironia relativamente ao jornalista que se mete em literatura; estão picados?
R.-No meu tempo, quando eu era jornalista, era de muito mal visto publicar um livro ou ter um automóvel. As coisas mudaram totalmente.P.-Agora é o romancista metido nos jornais o encarregado de julgar: a nova censura.
R.-Booom, veremos como é que é dentro de 100 anos.P.-Considera-se um incompreendido, por saber utilizar a fantasia?
R.-Bem, repara, no centro está mal visto, mas na Galiza, não, porque não vivemos outra coisa.P.-E hoje que tanto se valoriza a filigrana, valoriza-se a fábula?
R.-Ainda não. Esta gente é demasiado moralista. E, claro, não apreciam um texto em que não haja moral.P.-O senhor é corajoso! com 11 filhos permitir-se a literatura...
R.-Primeiro tive quatro e depois esta senhora (aponta a Fernanda) deu-me outros sete -- que culpa é que eu tenho?P.-Bolas, pelo menos metade.
R.-É que antes conseguia-se (Também não é bem assim, atalha Fernanda do seu canto).P.-Escritor, pai, jornalista, catedrático de quantas matérias?
R.-Só de História da Literatura; o que acontece é que lançavam-me a mão para o que quer que fosse, psicologia, língua...P.-E diz que só tem dupla personalidade, que é só dois, Gonzalo Torrente Ballester e quem é o outro?
R.-Nem eu sei (bolas, estive quase a dizer). Se o soubesse já estaria desfeito. Há que o manter aí. Felizmente, é outro.P.-E esta voz que fala, de quem é?
R.-Booom, às vezes Torrente, outras vezes sai o outro. Quando escrevo predomina o outro. Este é o que sabe mais gramática, o científico, o letrado. E o outro é o que cria, o que tem a fantasia e a imaginação.P.-Às vezes sente rancor por as coisas lhe terem chegado tarde na vida?
R.-Não, o rancor é uma mesquinhez. O reconhecimento, a glória, tudo chega no seu momento próprio, porque quando chega muito cedo acaba-se logo a seguir.P.-Tarde também lhe chegará o tempo, para que o disfrute.
R.-Bom, claro, é um bocado assim. Para a glória estou-me marimbando. Já para o tempo, não.
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Dossier Torrente Ballester