Não
Matarás
Por
ANDRÉ BARATA
Sábado,
5 de Fevereiro de 2000
Voltaire faz da tolerância
um projecto universal: "O turco, meu irmão? O chinês, meu
irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida."
A 10 de Março de 1762, na cidade de Toulose, um homem é
torturado, supliciado na roda até à morte para, finalmente,
o seu cadáver ser lançado ao fogo. Assim se cumpria a condenação
sentenciada, no dia anterior, pelo Parlamenlo local. Supostamente, fazia-se
justiça contra um monstro que enforcara o próprio filho,
jovem mártir que apenas pretendera converter-se ao catolicismo numa
terra de católicos, contra a vontade de um pai calvinista. O assassínio,
a ter de facto ocorrido, revelava-se ainda mais hediondo, pois não
poderia ter sucedido sem o conluio da mãe, de um dos irmãos
e de um amigo da vítima.
Infelizmente, este caso não difere de muitos outros, nem sequer
pelo facto de três anos mais tarde a França inteira ter reconhecido
a inocência do condenado, de nome Jean Calas, homem trabalhador,
negociante, respeitado pela comunidade, pai de seis filhos, um dos quais
aliás já era católico antes da morte do irmão.
O que se tornou digno de registo não foi tanto o erro da justiça,
nem sequer o horror da prática da tortura, mas aquilo que realmente
motivou a condenação de um homem inocente: a intolerância
religiosa. Doutro modo, sem que a obstinação e o fanatismo
de alguns não traduzisse, sob a capa do fazer-se justiça,
a mais bárbara perseguição religiosa, o "affaire"
Jean Calas não representaria, ainda hoje, um marco na História
de França. E para isso contribuiu decisivamente Voltaire, tomando
a seu cargo a defesa da família Calas e batalhando por ela numa
instância não judicial: a opinião pública.
Transformando este caso numa autêntica causa pública, Voltaire
escreve em Dezembro de 1763, um ano após a morte de Jean Calas,
o "Tratado sobre a Tolerância". Expõe aí as inconsistências
do processo judicial e a brutalidade com que se chegou ao fatídico
dia do suplício. Segundo Voltaire, ninguém ficaria indiferente
"quando o velho, agonizando na roda, tomou Deus por testemunha da sua inocência
e lhe pediu perdão para os juízes." Nem sequer os próprios
juízes, que, perante morte tão pungente, foram incapazes
de aplicá-la aos restantes autores do crime. Contraditoriamente,
ilibaram Madame Calas e o seu filho Pierre, como se assim não devolvessem,
à luz da consciência, a inocência ao pai. Para que não
restassem dúvidas sob a real natureza do crime de Jean Calas e da
sua família, os três filhos protestantes foram retirados à
mãe e enclausurados em conventos católicos, Pierre foi mesmo
ameaçado com a mesma morte que coubera ao pai se não abjurasse.
O erro de justiça era óbvio, mas igualmente óbvio
era reconhecer que o erro não resultara de negligência ou
de precipitação, mas sim de praticar, agora que havia uma
oportunidade, a intolerância religiosa. Mesmo o calendário
convinha - aproximava-se o dia, escreve Voltaire, "desses singulares festejos
que as gentes de Toulouse celebram todos os anos em memória de um
massacre de quatro mil huguenotes; e 1762 era o ano de mais um centenário."
Neste quadro, o insurgimento do "philosophe" vai muito além das
circunstâncias que envolveram o caso Calas. Lendo o Tratado assiste-se
ao julgamento das instituições cristãs, mas em especial
da Igreja Católica, pelo lado da acusação. O crime
reside na intolerância e a prova percorre toda a História
da Cristandade.
No seu "Dicionário Filosófico", Voltaire escreverá
palavras duras como as que se seguem: "De todas as religiões, a
cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância,
embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes
de todos os homens." Que seja "sem dúvida" uma coisa ou outra é
discutível, mas importa esclarecer que o anticlericalismo de Voltaire
em momento algum visa o texto bíblico. Pelo contrário, não
são poucas as vezes que versículos de ambos os Testamentos
são citados em prol da tolerância. Todo o empenho vai no sentido
de que haja tolerância religiosa no seio da Cristandade, que "os
diferentes cristãos devam tolerar-se uns aos outros", apenas isso.
Voltaire chega a dirigir-se directamente a Deus - "faz com que aqueles
que cobrem as vestes com uma tela branca, para assim dizerem que é
preciso amar-te, não detestem os que dizem a mesma coisa debaixo
de um manto de lã branca."
Por estas razões, só podem resultar equívocas afirmações
como a de Evangelista Vilanova na sua monumental "História das Teologias
Cristãs". Dizer que "Voltaire tende a reduzir todo o sentimento
religioso à superstição ou ao fanatismo" induz o leitor
a identificar o que é essencial distinguir: aquilo a que todos têm
direito - as superstições - e aquilo a que ninguém
tem o direito - o fanatismo. Como é sabido, Voltaire praticamente
só vê superstição e convenção
no Cristianismo, ele próprio milita do lado do deísmo e da
"religião natural", mas quando o que está em causa é
a criminalização do fanatismo se há algo que tem de
ser tolerado isso é o credo de cada um e a superstição.
"Não saltará aos olhos que ainda seria mais razoável
adorar o santo umbigo, o santo prepúcio, ou o leite e as vestes
da virgem Maria, do que execrar e perseguir o nosso irmão?" Este
é um dos maiores méritos do Tratado e, seguramente, aquele
que deve ser sublinhado várias vezes se se quiser compreender o
anticlericalismo de Voltaire. Por muito feroz que seja a sua intervenção
contra a Igreja, contra as suas instituições e a sua história,
Voltaire, longe de pretender a sua destruição, exige-lhe
a tolerância e a liberdade religiosas. E exige-o em nome do Estado
laico e da lei pública.
Assim, se a tolerância deve dar lugar à intolerância
deve podê-lo somente contra os fanáticos, precisamente aqueles
que cometem o crime de perturbarem a sociedade. Segundo Voltaire, é
o caso dos jesuítas, quando perseguem jansenistas e "vão
lançar fogo a uma casa dos Pais do Oratório porque Quesnel,
director da ordem, era jansenista." Tornam-se intoleráveis por serem
intolerantes. O raciocínio é translúcido: se a Companhia
de Jesus não respeita as leis do Reino, então que seja dissolvida.
A intolerância não será muita para os jesuítas,
far-se-ão cidadãos entre cidadãos obrigados à
mesma lei e providos dos mesmos direitos. Na verdade, a intolerância
não é nada que não se aplique a todos os cidadãos:
o respeito pela lei. E este é o "único caso em que a intolerância
é de direito humano."
No fim, quando "a discórdia é o grande mal do género
humano e a tolerância o seu único remédio", quando
este realismo pode mesmo assim ser animado pelo desejo utópico da
fraternidade, Voltaire faz da tolerância um projecto universal. Diz
então que: "não é preciso grande arte, eloquência
muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se
uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos
para todos os homens como irmãos. O quê? O turco, meu irmão?
O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida."
Esse deve ser o apanágio da humanidade.
Título: Tratado sobre a Tolerância
Autor: Voltaire
Trad.: José M. Justo
Edição: Antígona
222 págs., 2940$00 |
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