Nietzsche
e A Origem da Tragédia (2)


Revista "o professor"

Alfredo Reis, in revista O Professor, n.º 85, Abril/1986

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Selecção e adaptação de JCosta

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[Dada a sua extensão, este texto foi dividido em 2 partes; esta é a segunda -- leia a primeira]

 
O Canto tem outros recursos sobre/de Nietzsche (textos, composições musicais suas...). Encontra aqui um índice desses recursos.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

7 - A tragédia

Os deuses rivais não podem afinal existir um sem o outro, "a sua discórdia é também uma certa concórdia"(11). A tragédia é a expressão da tensão bipolar entre os dois instintos artísticos da natureza, mas na separação entre os dois pólos reside a sua unidade; a compenetração e a estimulação dos dois impulsos é a condição necessária do nascimento da tragédia. Nesta o "apolíneo acolhe em si a metafísica dionisíaca" (NT, 373) evitando a patologia da exclusividade, quer do sonho quer da embriaguez. A tragédia antiga era, para Nietzsche, "música e imagem, caos e figura, noite e luz, essência e fenómeno"(12), vontade e representação, desmesura e moderação.

Nietzsche, com toda a clareza, vincula a origem da tragédia à música: "a arte trágica, nos gregos, nasceu efectivamente do espírito da música" (NT, l 15/6). Para Nietzsche, a tragédia tem "raízes puramente religiosas" (NT, 66), excluindo qualquer influência da esfera político-social, por isso afirma que "a tragédia nasceu do coro trágico e na origem ela era apenas coro e nada mais do que ele" (NT, 66). Como o coro é a experiência dionisíaca mais elevada da natureza e como a música é o elemento primeiro e universal que testemunha as "concepções orgiásticas de um povo" (NT, 62), percebe-se a sequência da génese da tragédia: música --» coro --» tragédia.

Na acopulação do dionisíaco com o apolíneo o primeiro é a mola real que fecunda o segundo; Apolo não pode passar sem Diónisos, por isso, na tragédia, o herói primitivo é Diónisos: "o único ser que é verdadeiramente real, aparece numa pluralidade de figuras" (NT, 83) e as personagens da tragédia são as máscaras sob as quais Diónisos se desvela e vela simultaneamente.

[...] Enquanto existiu convergência e estimulação recíproca, o mito manteve-se vivo e os gregos, através da tragédia, souberam redimir artisticamente a sua vida, souberam vencer o pessimismo: "A tragédia é precisamente a prova de que os gregos não foram pessimistas"(13).

[...] A evolução da tragédia pode sintetizar-se do seguinte modo:

a) Ésquilo = melhor comunicação entre Apolo e Diónisos. A sua aspiração à justiça significa o equilíbrio criador das duas forças em luta. "Tudo o que existe é justo e injusto, em qualquer dos casos, igualmente justificado" (NT.83).

b) Sófocles = primeiro passo para a desaparição do coro. Ao restringir o domínio do coro enfraquece a força dionisíaca. Édipo é já uma espécie de prelúdio à santidade cristã, é uma atitude de demissão perante os deuses ou o destino. "Fazia o que era justo porque sabia o que é o justo" (NT.98).

c) Eurípides = agonia da tragédia; afundamento do dionisíaco. Com ele "o espectador sobe à cena" (NT, 87).

A tragédia transforma-se, com Eurípedes, numa cópia da cópia, dado que exclui da cena o elemento dionisíaco; com ele verifica-se o domínio do apolíneo com exclusão do efeito trágico. O húmus da sua obra já não é a música mas a vida quotidiana; com ele a mediocridade burguesa toma a palavra. No diálogo da tragédia já não falam as máscaras da Diónisos mas o homem comum, a voz sem música; do espaço cénico ausenta-se a dimensão vertical do simbólico com a "redução de toda a representação à simples horizontalidade do visível"(14). Os meios de que se serve para despertar a emoção são "frios e paradoxais pensamentos e a exacerbação dos afectos" (NT, 94).

A tragédia de Eurípides já não é construída a partir do êxtase dionisíaco mas sim a partir de uma oposta concepção do mundo: o socratismo estético, cuja lei suprema é -- "Para ser belo, tudo deve ser racional" (NT, 94). A racionalidade venceu o trágico, o processo crítico anestesiou a força vital, perdeu-se o espírito da música superado pelo optimismo da "sede insaciável de conhecimento" (NT, 109).

Sócrates fala pela boca de Eurípedes, é ele o assassino da tragédia e o verdadeiro adversário de Diónisos: "Tal é o novo antagonismo: socratismo contra dionisismo" (NT, 93). E Nietzsche acrescenta: "O que perverteu a tragédia foi o impulso dialéctico para o saber e para o optimismo científico, poder-se-ia concluir que existe um eterno combate entre concepção teórica e concepção trágica do mundo" (NT, 117). A decadência terá então de ser analisada entre os filósofos.

8 - Socratismo

No Ensaio de Autocrítica, Nietzsche afirma que o livro levanta pela primeira vez o problema da própria ciência "apreendida como algo problemático e suspeito" (NT, 26). Para fazer a análise da ciência coloca-se noutra óptica porque o "problema da ciência é indiscernível no terreno da ciência" (NT, 27), essa óptica é a da arte. Só colocando-se numa perspectiva exterior à ciência se pode procurar a sua génese que lhe iluminará a essência; é isso que Nietzsche faz, inaugurando o processo genealógico de investigação.

[...]

Que significa Sócrates?

Em primeiro lugar o socratismo é um "sinal de declínio, de esgotamento, de doença, de dissolução anárquica dos instintos" (NT, 26). Sendo assim a sua acção terá de ser forçosamente negativa e dissolvente. Sócrates representa o tipo de homem em que o instinto, em vez de ser força afirmativa e criativa, se transforma em estímulo crítico e dissuasivo; nele a lógica desenvolve-se de maneira tão excessiva que abafou completamente a pulsão artística, nele "nunca brilhou a doce loucura da inspiração artística" (NT, 100).

A razão, a lógica, hiperdesenvolvida aniquilou completamente o sentido trágico da existência. É clara a crítica de Nietzsche à ciência: esta, na senda de Sócrates, cloroformiza a autêntica vida feita de prazer e de dor e de tal modo o faz que dela analogicamente se poderá dizer: "É um crime contra natura" (NT, 79). Sócrates inaugurou uma visão optimista oposta à visão trágica, sendo adversário dos mistérios conjurou o medo da morte com razões explicativas.

[...]

Sócrates, na sua exigência de uma explicação racional para a existência, assume-se como o percursor de uma cultura que odeia o trágico. A sua morte é exemplo de completa ausência de trágico: "A imagem de Sócrates moribundo, do homem que se libertou pelo saber e razões do medo da morte, é o brasão que encima a porta da ciência, para lembrar a cada um que o seu destino é o de tornar inteligível a existência e, por isso, de a justificar" (NT, 106/7). Está criado um novo ideal e modelo de vida que aponta o caminho à juventude helénica: o optimismo teórico guiado pela "crença inabalável de que o pensamento... pode penetrar até aos mais recônditos abismos do ser e tem o poder, não só de conhecer, mas também de corrigir a existência" (NT, 106).

A dialéctica, ao ser introduzida na tragédia por Eurípedes, será o elemento optimista que a levará à autodestruição e que conduzirá à renovação da arte numa direcção metafísica. A dialéctica optimista, expulsando a música, vai abrir a via para a universalização da ciência que é o "adversário mais ilustre da concepção trágica do mundo" (NT, 110).

Está criado um novo tipo de homem: o homem teórico que encontra satisfação "por ver arrancado o véu da verdade" (NT, 106); o erro é o mal em si, há que extirpá-lo da vida. O conhecimento verdadeiro é o objectivo da vida humana: "separar o conhecimento verdadeiro da aparência e do erro, tal era para o homem socrático a mais nobre das vocações, e mesmo a única que é verdadeiramente humana" (NT, 108). A ciência é a emissão do homem, há que prestar culto à nova deusa: "a ciência não existiria se ela não tivesse por única deusa a verdade nua e nada mais" (NT, 106). O homem teórico tem uma só deusa, mas à custa de quê? Do desejo, por isso ele é o homem do recalcamento.

Sócrates é o professor de uma nova forma do ideal da serenidade grega e de felicidade existencial em que as virtudes mais sublimes, "os movimentos da piedade, do sacrifício, do heroísmo, a calma absoluta da alma" (NT, 108), são dedutíveis do saber. Todavia este ideal não é mais do que um sinal de esterilidade e de senilidade e teve no homem alexandrino a sua expressão mais acabada: o modelo do homem culto e erudito mas sem vigor e alegria que, no fundo, não passa de um "bibliotecário e corrector de provas" (NT, 125) carecido da autêntica chama criadora.

A filosofia, apesar de toda a clareza do conceito, nunca percebeu o significado do mito trágico e por isso só é possível esperar o renascimento da tragédia no dia em que o espírito científico tiver atingido os seus limites e quando a sua "pretensão à validade universal tiver sido destruída" (NT, 117).

Neste ponto detecta-se um certo optimismo em Nietzsche; para ele o tipo de civilização científica que teve Sócrates como patrono e arquétipo estava a chegar ao fim na sua época. A civilização socrático-alexandrina no seu prazer satisfeito do conhecimento já tinha sido abalada nos seus fundamentos pela filosofia alemã: "Por um prodígio de coragem e de sabedoria, Kant e Schopenhauer obtiveram a mais difícil das vitórias, a vitória sobre o optimismo na essência da lógica que constitui a base da nossa civilização" (NT, 123). Esta descoberta, para Nietzsche, inaugura uma nova civilização trágica, pois agora a civilização socrático-científica já não está "absolutamente convencida da eterna validade dos seus fundamentos" (NT, 124).

Pode, assim, surgir uma nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico que reclama, para ser suportável, o remédio e a protecção da arte. O tempo do homem socrático passou, "a lógica enrola-se sobre si mesma e acaba por morder a cauda" (NT, 108), isto é, o homem teórico e a civilização correspondente chegaram ao ponto limite.

Deve esclarecer-se que, apesar da flutuação terminológica de Nietzsche ao considerar nalguns passos que esta obra exprime uma concepção pessimista, de facto a Origem da Tragédia não é uma obra pessimista. Há que distinguir entre concepção trágica e pessimismo, a primeira não implica necessariamente o segundo. A visão trágica caracteriza-se não só pela aceitação da dor como constituinte essencial da vida e pela aceitação da necessidade da morte para que se processe a renovação da vida, mas também pela esperança da reunificação, pela alegria do renascimento, pelo prazer da criação. Nietzsche, nesta fase da sua existência, perscruta os sinais da renovação da sociedade e da cultura ocidentais; parece acreditar que se está no limiar de uma nova e esperançosa fase da Europa.

Poder-se-á "celebrar num novo mundo da arte a festa da reconciliação dos combatentes de um modo análogo à reconciliação dos dois impulsos na tragédia ática" (NT, 541)? Nietzsche confia na renovação do mito trágico, para isso conta com a "renovação e purificação do espírito alemão pelo jogo mágico da música" (NT, 134).

Existe uma nova arte, uma nova música, onde o mito reviva? Onde tal reconciliação seja viável? Existe e tem um nome: WAGNER, cujo drama musical seria a obra de arte total correspondente à tragédia antiga. Nietzsche, apesar da sua ruptura com Wagner, manterá essa crença pois tarde ainda afirma: "Falta-me todo e qualquer motivo para renunciar à esperança de um futuro dionisíaco da música"(15).

9 -Vida e existência

Heidegger, referindo-se à O.T., afirma que, nesta obra, a "vida não é apenas entendida no sentido estrito da vida humana, é identificada com o universo"(16).

O passo seguinte confirma esta afirmação: "Por breves instantes nós somos o próprio ser original, sentimos o seu incoercível desejo e prazer de existir, as lutas, os tormentos, a morte dos fenómenos, tudo isso nos parece necessário, dada a super abundância das inumeráveis formas de existência que se... precipitam para a vida, para a fecundidade transbordante da vontade universal" (NT, 115).

Existe uma vida cósmica, um único ser vivo que gera e procria. Esta vida do universo é um "espasmo contínuo, projectando fenómenos e fazendo-o com prazer" (NT, 321).

Por detrás da aparência, "sob o turbilhão dos fenómenos a vida continua a fluir, indestrutível" (NT, 121), a eternidade da vida persiste a despeito de todas as destruições. Só que a vida original não é espírito nem razão, é vontade e instinto: "Esta vida [instintual] é o eterno, a aparência é o que passa. A vontade é o universal" (NT, 394).

A vida cósmica, a intimidade do ser, é a insaciável vontade que encontra sempre um meio para manter na vida as suas criaturas e de as obrigar continuamente a viver no meio do sofrimento e da alegria: "Apresentar a vida como um sofrimento inaudito que produz, incessantemente, a cada instante, uma forte sensação de prazer" (NT.321).

Em resumo: o ser é vida e esta é vontade. Vontade eterna, ainda não vontade de potência, mas tão só vontade de viver marcada pelo prazer e pela dor. Apolo e Diónisos são os poderes básicos da realidade da vida que se caracteriza pelo nascimento e morte, pela criação e destruição; por isso podemos dizer com FINK que o trágico é elevado a princípio cósmico(17).

Desta concepção da vida cósmica é que devemos partir, para a compreensão da vida humana. Por um lado, a existência humana é o lugar onde o fundo primordial se manifesta como consciência de si, ou, dito em termos estéticos, "somos imagens e projecções artísticas do verdadeiro criador do mundo e a nossa significação mais alta reside na nossa significação de obra de arte" (NT, 61).

[...] O homem é transgressor porque quer que se lhe revele o que é irrevelável (exemplo Édipo), simultaneamente procede à espoliação do divino instalando-se assim "entre o homem e o deus uma insolúvel e dolorosa contradição" (NT.81).

A espoliação dos segredos divinos é um sacrilégio; o homem é, por essência, um ser sacrílego que quer ultrapassar os seus limites e que, por isso, tem de sofrer as consequências (exemplo: Prometeu). "No seu elan heróico para o universal, nas suas tentativas para transgredir as fronteiras da individuação e para se querer como única essência do mundo, o indivíduo deve suportar em si mesmo a contradição originária" (NT, 81/2). O homem, qual Prometeu, comete o pecado activo pelo qual dignifica o sacrilégio.

O homem só conta consigo próprio, quer afirmar a sua individualidade mas vive a contradição íntima de querer ser o próprio ser original, de se fazer "UM com o incomensurável e original prazer de existir" (NT, 115).

Para JASPERS, o esquema fundamental da concepção nietzscheana da condição humana é: "O homem perdeu-se mas a sua salvação continua possível."(18).

Onde encontrar a salvação? Na arte; "a arte é o carácter fundamental do ente"(19) e o valor da existência consiste na capacidade para, através da arte, imprimir na vida a marca da eternidade. A suprema avaliação da existência individual reside, segundo as próprias palavras de Nietzsche, no facto de "o Uno originário ter necessidade dela para atingir o fim último do seu prazer, de tal modo que a desaparição aparece tão digna e venerável como o nascimento, e o que nasceu deve resolver na desaparição a tarefa que lhe incumbe enquanto individualidade" (NT, 303).

A sabedoria trágica consiste na aceitação da vida tal como ela é, aceitar que a "existência não é mais do que a sucessão ininterrupta de momentos passados, uma coisa que vive de negar-se a si mesma, de destruir-se a si mesma, de contradizer-se perpetuamente"(20); aceitar que, no devir, o homem tem a obrigação de assumir um destino com o qual está comprometido.

Mas que visa o devir? Nele, a vontade visa o aparecimento do génio que é o "objectivo último da natureza" (NT, 411), porque é no génio que a "vontade chega à sua redenção" (NT, 310).

10 - Conclusão

l - Novidade da Origem da Tragédia

O próprio Nietzsche considera como inovadores os seguintes aspectos:

- "a compreensão do fenómeno dionisíaco entre os gregos";

- "a interpretação do socratismo como decadência; da racionalidade como força perigosa que mina";

- "a afirmação da vontade de viver comprazendo-se em sacrificar os seus mais elevados tipos à sua própria estabilidade";

- "colocar o homem na eterna alegria do devir, que em si mesmo também engloba o gozo do aniquilamento"(21).

Acrescenta ainda outra novidade: à da concepção da mentira como algo necessário à vida, "considerar a metafísica, a moral, a religião, a ciência como formas diversas de mentira com a ajuda das quais se acredita na vida"(22). A mentira faz necessariamente parte do carácter enigmático da existência, ela é um modo de o homem escamotear o trágico da existência, o que significa que Apolo é a máscara necessária de Diónisos. Dado o carácter terrífico da vida, e para que ela possa inspirar confiança, é preciso algo que ajude a acreditar na vida; esse algo é a mentira da arte: "é a arte que torna a vida possível, a grande sedutora da vida, o grande estimulante da vida"(23). O homem é, por natureza, embusteiro, ou seja, antes de mais é artista e pela arte consegue a redenção do medo à verdade.

A arte surge assim como a verdadeira missão da vida pois ela é a única força susceptível de se opor à vontade de aniquilação da vida. A face luminosa de Apolo é o véu ou mentira indispensável que torna a vida aceitável pela auréola de beleza com que a reveste.

A estes aspectos há ainda que acrescentar: a noção de verdade como desvelamento/ocultação, a concepção de que os valores estéticos são redentores e renovadores da civilização, o uso do método genealógico como processo de crítica a civilização ocidental.

As intuições do jovem Nietzsche da O.T. são com efeito o ubero fecundo de que se alimenta toda a sua filosofia posterior.

2 - Origem da Tragédia como esboço da filosofia de Nietzsche

[...] FINK, com toda a clareza, afirma que a O.T. contém "quase todos os elementos da filosofia de Nietzsche. Desenvolve pela primeira vez ... a antítese do apolíneo e do dionisíaco, elabora a óptica da arte e a óptica da vida, encontrada a partir daquela; utiliza o homem como a chave que abre caminho para todo o ser, traça uma metafísica antropomórfica... e introduz já o conceito fundamental de jogo"(24).

De igual modo C. ROSSET vê na essência comum do trágico e do dionisíaco "elaborada na O.T. o fio condutor de toda a filosofia de Nietzsche(25).

Penso que algumas características fundamentais da filosofia de Nietzsche estão já presentes nesta sua obra inicial. Por exemplo: o passo seguinte à ideia da vontade como força originária será o da vontade de potência; o regresso à unidade original indicia o eterno retorno; o primado do instintivo sobre a racionalidade é a chave da crítica à metafísica; a visão prometeica do homem bem como a do génio são já uma prefiguração do super-homem; a concepção trágica da existência dirige a crítica à ciência; a valorização do homem trágico conduz à oposição Diónisos/Crucificado; a importância atribuída ao inconsciente irá remeter para o recalcamento como base da filosofia.

3 - A oposição Diónisos-Sócrates

A verdadeira oposição de que se trata nesta obra é entre concepção trágica do mundo (Diónisos) e concepção teórica do mundo (Sócrates) e não tanto entre Apolo e Diónisos.

[...] Apolo representa, face à atitude mais profunda do dionisíaco, uma "atitude mais ligeira, mais brilhante, sensível às aparências"(26); mas não é o verdadeiro inimigo de Diónisos. A prova é que, posteriormente, Nietzsche acaba por absorver o apolíneo no dionisíaco chegando até a atribuir o estado de embriaguez -- inicialmente exclusivo do dionisíaco -- ao apolíneo: "Que significa o conceito do contraste apolíneo e dionisíaco introduzido por mim na estética, ambos entendidos como géneros de embriaguez? A embriaguez apolínea, antes de mais, mantém o olho excitado..."(27)

Acresce que se acentua progressivamente a crítica a Sócrates e ao ascetismo formalista de que ele é o modelo.

Se para Nietzsche o auge da civilização helénica coincide com o auge da tragédia e nesta os dois impulsos artísticos conseguiram uma simbiose harmónica, não era logicamente possível considerar que a sua tensão conflituosa fosse uma oposição contraditória e aniquilante. Basta pensar que o início da decadência grega se deve, na perspectiva nietzscheana, à substituição do trágico pelo optimismo racionalista para se concluir que Apolo não podia ser o destruidor de Diónisos.

A agonia verificou-se quando se perdeu a dimensão artística da vida, ou seja, quando a tendência apolínea se "mumificou em esquematismo lógico" (NT, 102). A oposição insanável reside entre: trágico e optimismo; arte e ciência; instinto e dialéctica; Diónisos e Sócrates.

4 - A cultura grega e o renascimento da tragédia

[...]

a) [...] Debaixo desse germe destruidor da civilização, que é o optimismo, está a despertar o homem angustiado; já se sentem os presságios -- filosofia alemã e música de Wagner -- do acordar progressivo do espírito dionisíaco que virá derrubar esse delicado e frágil rendilhado que é a cultura ocidental actual.

Trata-se de descobrir, sob o aparato da cultura e da civilização, a "força primordial, soberana e profundamente sã" (NT, 148) que é a depositária de todas as esperanças quanto ao futuro.

Que força é essa? E qual a origem, qual a génese, deste espírito científico-crítico que só sabe pensar abstractamente?

b) A origem é Sócrates, é com ele que nasce a ciência endeusadora da razão, castradora do instinto e expulsora da arte.

E antes dele? Antes era a arte. Que arte? A tragédia.

Que significa, que revela, a tragédia? Duas forças antitéticas que se conciliaram para a produzirem.

Que forças são essas? Apolo e Diónisos? Onde se manifestaram antes da tragédia?

c) Antes da tragédia era o mito. Que é o mito? A projecção inconsciente da vida de um povo.

Então é nele que podemos descobrir as forças vitais que originaram a cultura.

Que mostra o mito? A revolta e derrota dos Titãs, o juramento de regressarem. E regressam? Sim, mas sob a forma de Diónisos, não já com a fúria inicial mas comedida por um pacto com Apolo.

Então a força originária da cultura está nos Titãs, está em Diónisos.

Que força? A vontade, a desmesura, a embriaguez, o frenesim sexual, a dor e o prazer -- numa palavra: a vida.

Como se projectou essa vida? Sob a manifestação de sonho, de imagem, de comedimento, de beleza.

[...]

E agora? Se queremos salvar o futuro teremos de regressar à arte. Dê-se então, de novo, o lugar a Diónisos, juiz infalível e impiedoso da civilização cristã-ocidental que, pela repressão, o quis esquecer e silenciar. [...]


notas

[11] E. Fink. ob. cit., 29. [Voltar ao texto]
[12] Idem, ob. cit., 31. [Voltar ao texto]

[13] Ecce Homo, O.C IV, 685. [Voltar ao texto]

[14] J.-M. Rey, A genealogia Nietzscheana. In: F. Châtelet, A Filosofa do Mundo Cientifico e Industrial, Pub. D. Quixote, Lisboa. 1976, 146. [Voltar ao texto]

[15] Ecce Homo, O.C. IV, 687. [Voltar ao texto]

[16] Heidegger, Nietzsche I, 72. [Voltar ao texto]

[17] E. Fink. ob. cit., 25. [Voltar ao texto]

[18] K. Jaspers, ob. cit., 73-4. [Voltar ao texto]

[19] Heidegger, Nietzsche l, 71. [Voltar ao texto]

[20] Consideraciones intempestivas, O.C. I, 55.
[Voltar ao texto]
[21] Ecce Homo, O.C. IV, 685 a 687.
[Voltar ao texto]
[22]
La Voluntad de domínio, O.C. IV, 329. [Voltar ao texto]
[23]
Idem, ibid.,330. [Voltar ao texto]
[24] Ibid., p. 172 [Voltar ao texto]

[25] E. Fink, ob. cit., 38. [Voltar ao texto]

[26] C. Rosset, La Force Majeur, Minuit, Paris, 1983, 46. [Voltar ao texto]

[27] El Ocaso de los ídolos, O.C. IV, 431. [Voltar ao texto]

 



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