Nietzsche
e A Origem da Tragédia (1)


Revista "o professor"

Alfredo Reis, in revista O Professor, n.º 85, Abril/1986

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Selecção e adaptação de JCosta

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[Dada a sua extensão, este texto foi dividido em 2 partes; esta é a primeira -- leia a segunda]

 
O Canto tem outros recursos sobre/de Nietzsche (textos, composições musicais suas...). Encontra aqui um índice desses recursos.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

1 - Modelo sexual

Na Origem da Tragédia(1), Nietzsche apresenta ou esboça algumas ideias que virão a ser centrais na sua filosofia. Nesta obra, ainda escrita sob o influxo do romantismo -- e a visão antropomórfica da natureza concebida à semelhança do artista, pois Apolo e Diónisos são considerados como "forças artísticas que brotam da própria natureza e através das quais ela procura satisfazer primitiva e directamente as suas pulsões artísticas" (NT, 46), é suficiente para o recordar -- Nietzsche coloca-se na perspectiva da metafísica da arte dado que a existência e o mundo só têm justificação enquanto fenómenos estéticos.

A arte é posta como a "actividade propriamente metafísica do homem" (NT, 30) e a partir dela procura decifrar o sentido do mundo e a atitude última do homem. Nietzsche atribui ao seu livro o objectivo de "examinar a ciência na óptica da arte, mas a arte na óptica da vida" (NT, 27).

Arte e vida são conceitos-chave para a compreensão da obra. O modelo explicativo, subjacente à sua estrutura, que esclarece os conceitos nietzscheanos de arte e vida é de tipo sexual: "O progresso da arte está ligado à dualidade do apolíneo e do dionisíaco, tal como analogicamente a geração -- nesse combate perpétuo em que a reconciliação só acontece de modo periódico -- depende da diferença dos sexos" (NT.41). Tal como a vida nasce da dualidade dos sexos, assim também a natureza ligou a "mais alta procriação, a da obra de arte, à individuação em geral" (NT.271).

A vida e a obra de arte são o produto de um "combate perpétuo", de uma tensão entre forças em interacção que só de "modo periódico", provisório e instável, se conciliam e unificam para gerar algo de novo: "O segredo comum é que dos dois princípios inimigos possa nascer algo novo, e nesse novo os instintos divididos apareçam como unidade" (NT, 293).

[...]

O modelo sexual parece-me ser uma das possíveis chaves não só para a compreensão da obra mas também de outras, visto que o reafirma na Vontade de Domínio. "Ao antagonismo destas duas forças da natureza está também necessariamente unido o posterior desenvolvimento da arte, tal como o posterior desenvolvimento da humanidade está unido ao antagonismo dos sexos"(2).

[...] "Para que exista o eterno gozo de criar... deve também eternamente existir o tormento da parturiente"(3). Prazer e dor são duas dimensões essenciais e naturais da vida e a obra de arte, porque interpretação da vida, deve tornar sensível não só o "prazer originário pela aparência" mas também a "contradição e a dor originárias" (NT, 58).

Vida e morte, criação e destruição, estão indissoluvelmente entrelaçadas e a visão trágica consiste na compreensão desta contradição. Gerar ou criar é individualizar a partir do "fundo da vida" ao qual tudo terá de regressar. Como diz Fink "o verdadeiro problema é a definição da essência do trágico, (...) no fenómeno do trágico vê a verdadeira natureza da realidade (...) a arte é a chave que abre caminho para a essência do mundo. A arte converte-se em organon da filosofia"(4).

2 - As intuições fundamentais

A Origem da Tragédia exprime, no dizer do seu autor, uma "concepção do mundo profunda e pessimista" (NT, 84) elaborada a partir de algumas intuições fundamentais.

Fundamentalmente essas intuições consistem:

  • no reconhecimento da unidade fundamental de tudo quanto existe;
  • na concepção da individuação como causa originária de todo o mal;
  • na ideia de que a arte representa a esperança de uma futura destruição das barreiras da individuação e o pressentimento jovial da unidade restaurada (NT, 84 e 292).

A intuição, essa espécie de dom divinatório, apreende a mútua necessidade dos dois princípios em luta: unidade e individuação, Diónisos e Apolo. Não há arte sem dor, mas pela arte o indivíduo liberta-se da dor "este mundo de tormentos é necessário para que através dele o indivíduo seja levado a dar à luz a visão libertadora, e possa depois, mergulhado na sua contemplação, encontrar a calma e o repouso" (NT, 54). Na intuição o homem eleva-se ao prazer, sendo até na intuição pura imagem projectada "de um ser em puro êxtase que encontra o repouso supremo nessa intuição" (NT, 320).

O que revela este tipo de intuição? Que só existe uma vontade única e ainda que esta "não só sofre mas também cria; ela cria a aparência em cada instante" (NT.312).

3 - Influências

São detectáveis nesta obra dois tipos de influências: a da filosofia pré-socrática e a da filosofia alemã post-kantiana.

De Heraclito recebe a concepção do antagonismo como fundamento de todas as coisas, a ideia da subordinação da existência e do mundo ao perpétuo devir, a noção de jogo como eterno processo de construção e de reconstrução e a do uno originário como o verdadeiro ser. A função de purificação atribuída, por Heraclito, ao fogo será transposta por Nietzsche para a música alemã, nesta fase da sua vida identificada à música de Wagner.

Empédocles, com a ideia de que o mundo está submetido a duas causas contrárias: amor e ódio envolvidos numa luta sem fim, e a de que todas as coisas são geradas e destruídas na mudança perpétua entre o Uno e o Múltiplo, prefigura já a hostilidade entre Apolo e Diónisos. Também estes sé repelem e combatem mas não podem passar um sem o outro. Empódocles antecipa ainda a ideia nietzscheana da individuação a partir do Uno originário.

Nietzsche, ao referir-se no Ecce Homo à sua primeira obra, reconhece a influência de Hegel ao afirmar que a obra "cheira repugnantemente a hegelianismo"(5). Ele próprio dá um exemplo: "Uma ideia -- o contraste dionisíaco e apolíneo é aí traduzido na linguagem metafísica; a própria história é considerada como o desenvolvimento desta ideia; na tragédia o contraste é elevado a unidade"(6). De facto a aliança ou compenetração que se estabelece entre os dois instintos adversários parece falar a linguagem da dialéctica hegeliana.

[...]

As concepções nietzscheanas sobre:

  • supremacia da arte relativamente à ciência;
  • libertação pela arte;
  • unidade do ser como vontade;
  • irracionalidade da vontade;
  • trágico da vida decorrente do eterno sofrimento e contradição do ser;
  • mal humano como consequência de uma falta;
  • dor como fundamento da existência, mas possibilitando a vitória sobre o optimismo científico; que constituem o núcleo conceptual da obra são uma extensão do irracionalismo de Schopenhauer.

[...]

4 - As máscaras de Diónisos

"Aqui fala alguém que sabe, um iniciado, um discípulo do seu deus" (NT, 28).
O não-iniciado pode penetrar no Diónisos nietzscheano? Apesar das abundantes referências ao deus dilacerado permanece contudo uma certa indeterminação sobre o "fundo dionisíaco" que é mais descrito por "metáforas do que expresso em conceitos"(7). Que significado atribuir, por exemplo, a: mistério do Uno no originário, mães do ser, Uno vivo, etc.?

Quem não for possuído da vertigem orgiástica, da fúria titânica, da embriaguez extasiada, quem não possuir a intuição penetrante, poderá abrir-se à essência do deus sátiro? Permanecerá ele envolto num véu de estranheza? Não ficará esse "grande misterioso" como o "eterno tentador equívoco"?

Deus oriundo da Trácia e adorado por todo o mundo antigo, Diónisos aparece com uma faceta subversiva: pelo frenesim sexual, pela mistura "abominável de volúpia e de crueldade", pelo desencadear da "maior bestialidade natural" submergia a "instituição familiar e as suas regras veneráveis" (NT, 47). Esta tendência inversora da ordem social permanece na Grécia, pois também aqui "o coro ditirâmbico é um coro de seres metamorfoseados que esqueceram completamente o seu passado de cidadão e que se puseram a viver fora de toda a estrutura social" (NT, 47). Tal como no mito caldaico do combate entre Marduk e Tiamat se simbolizava a subversão da ordem social pelo ritual da humilhação do rei, assim também Diónisos simboliza essa subversão da ordem social instituída.

Portanto, l.° aspecto: Diónisos = força subversora; instinto natural contra a convenção social; prazer como revolta e libertação dos constrangimentos estatais. Diz Nietzsche: "agora o escravo é homem livre, agora quebram-se todas as barreiras hostis e rígidas que a necessidade e o arbitrário colocaram entre os homens" (NT, 45).

[...]

Portanto, 2.º aspecto: Diónisos = força unificadora; reconciliação para além das diferenças; integração na sociedade. A festa dionisíaca desempenhava simultaneamente uma função harmonizadora e reforçadora da ordem cósmico-social.

Na origem asiática, Diónisos apresenta-se como ambíguo e dual: deus que subverte e ao mesmo tempo reconcilia.

[...]

Portanto, 3.° aspecto: Diónisos = sublimação e transfiguração da força destruidora em potência criadora; impulso artístico rectificador da bestialidade natural.

[...]

Portanto, 4.° aspecto: Diónisos = dor e sofrimento. A paixão da vida radica na ruptura da unidade primordial, sendo esta a causa originária do mal. Toda a criação é amargura. Reside aqui a dimensão trágica da existência humana: "Do sorriso de Diónisos é que nasceram os deuses do Olimpo, mas é das suas lágrimas que são feitos os homens" (NT, 84).

[...]

Portanto, 5.º aspecto: Diónisos = esperança e alegria; prazer da unidade restaurada. O renascimento de Diónisos na sua unidade restaurada simboliza uma abertura vital ao futuro. O tempo não é exclusivamente um Cronos devorador, mas também futuro aprazível na eterna alegria do devir. A possibilidade do renascimento de Diónisos projecta a esperança para a dimensão temporal do futuro arrancando o homem ao desespero do passado. Só que, para se alcançar o prazer definitivo, o homem terá de passar primeiramente pela provação da dor -- os deuses experimentam os homens. Esta faceta de Diónisos parece-me fundamental pois é ela que evita o pessimismo aniquilador ou a letargia abúlica perante a vida, ao mesmo tempo é condição de possibilidade da transformação da distribuição em criação.

[...]

Portanto, 6.° aspecto: Diónisos = desmesura e barbárie; força pujante e instintiva. Nesse sentido Diónisos é um perigo para a instituição ESTADO, resultado da prolongada acção da Sophrosinè. por isso Nietzsche afirma: "a cada irrupção de alguma importância da emoção dionisíaca, a dissolução que acarreta... caracteriza-se em primeiro lugar por uma deterioração dos instintos políticos, a qual se vai acentuando até à indiferença ou mesmo até à hostilidade declarada" (NT, 135).

[...]

A desmesura titânica tem um aspecto positivo: é um convite ao homem para se superar a si mesmo. Ao pretenderem elevar-se até ao titânico, os homens conquistam a civilização graças ao seu próprio saber; pela sua actividade os homens valem por si mesmos sem necessitarem do auxílio dos deuses.

Portanto, 7.º aspecto: Diónisos = esforço superador; ultrapassagem dos limites; confiança nas capacidades humanas. "O homem... é um animal agradável, atrevido, engenhoso, que não tem semelhante sobre a terra, sabe encontrar o seu caminho, até nos labirintos"(8).

[...]

Portanto, 8.° aspecto: Diónisos = êxtase; delírio e risco; abolição da individualidade e da subjectividade; união com o Uno. O esforço titânico de superação (7.° aspecto) é acompanhado por um estado febril em que o indivíduo se aniquila enquanto tal; é o êxtase a "brotar da própria dor" (NT, 48).

[...]

A lição de Diónisos consiste em ensinar aos homens que não deixem substituir-se pelos deuses, que não atribuam aos deuses o que compete exclusivamente ao humano. Os deuses só terão a ganhar se se aproximarem dos homens: "Há boas razões para supor que, em muitos casos, os deuses fariam bem em vir aprender connosco os homens"(9). Diónisos aponta ao homem o seu retrato no futuro: "excêntrico, enérgico, caloroso, infatigável, artista" (NT, 369).

5 - Diónisos e a música

Na análise nietzscheana os gregos rectificaram o Diónisos asiático, excessivamente cruel e destruidor, transmutando-o em impulso artístico. Na O.T. liga-se o desenvolvimento da arte à dualidade apolíneo/dionisíaco: "Estes dois impulsos tão diferentes caminham a par um do outro, na maior parte do tempo em conflito aberto, excitando-se mutuamente para produções sempre novas... para nelas perpetuar esse combate de contrários (a palavra "arte" atribuída a ambos não faz mais do que aparentemente lançar uma ponte entre eles)" (NT.41).

Diónisos simbolizam um impulso artístico da própria natureza que se manifesta em primeiro lugar e primordialmente sob a forma de música; "a melodia é o elemento primeiro e universal" (NT, 62). Arte não plástica, sem imagem nem conceito, é a primeira aparência do ser e "reflexo da eterna unidade originária" (NT, 297); nela a natureza realiza a sua "desmesura exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento" (NT, 55). É esta dimensão "excessiva" da música que explica o aspecto extasiante das festas dionisíacas em que, através dos cantos populares e da dança, o homem mergulhava no "esquecimento de si", ressoando nele "qualquer coisa de sobrenatural: sente-se deus" (NT, 45). Já não homem mas "obra de arte da própria natureza" (NT, 45).

[...]

A música, porque reduplicação do mundo, salva o homem do pessimismo, pois se é certo que obriga a mergulhar "o nosso olhar nos terrores da existência individual" (NT, 115), também é certo que é a "única capaz de fornecer o conceito do que se deve entender por justificação do mundo" (NT, 153), ou seja, diz ao homem que apesar de todo o sofrimento vale a pena viver.

[...]

Mas não se pode viver permanentemente num estado dionisíaco, o "excesso do excesso" é patológico porque o êxtase contém um elemento letárgico que implica o perigoso risco da ruptura com a realidade; [...]

6 - Apolo

Apolo simboliza o outro impulso artístico da natureza que se manifesta nas artes plásticas. O modelo para caracterizar Apolo é o do mundo estético do sonho. "Ao sonho humano criador de imagens corresponde o poder ontológico que produz imagens e figuras"(10).

[...]

Apolo, o "brilhante", a divindade da luz, reina também sobre o mundo interior da imaginação e as imagens que esta produz são caracterizadas pela medida, beleza, liberdade face às emoções, pela calma da sabedoria. Apolo representa o prazer, a sabedoria e a beleza da aparência, do mundo dos fenómenos; é o símbolo da contemplação, da calma e do repouso.

E considerado também como a "imagem divina do princípio de individuação" (NT, 44); representa a divinização do indivíduo nos seus justos limites, o homem sujeito à "medida". Apolo, enquanto divindade ética, exige "dos seus a medida... e o conhecimento de si. É assim que à necessidade estética da beleza se junta a exigência do "Conhece-te a ti mesmo" e do "Nada em excesso"" (NT, 54). É o contrapolo necessário do excesso de orgulho e da desmesura dionisíaca, lembra aos homens que as leis do mundo são sagradas e que as não devem infringir.

[...] O risco do apolíneo é esquecer o subsolo das suas raízes, no fundo virar costas à autenticidade dolorosa da vida; tem de ser vivificado pela vontade e pelo sofrimento. Apolo e Diónisos tiveram de se reconciliar para procriarem a arte trágica.

[continua]

notas

[1] Foi utilizada a seguinte edição: Naissance de Ia Tragédie, Gallimard, Paris, 1977. Para as restantes obras de Nietzsche foi utilizada a edição das Obras Completas, Aguilar, B. Aires. As referências relativas à Origem da Tragédia serão indicados pela sigla MT, seguida do número de página, colocadas entre parêntesis no corpo do texto. Todas as outras referências bibliográficas serão indicadas em nota. [Voltar ao texto]
[2]
La Voluntad de domínio, O.C. IV, 386. [Voltar ao texto]
[3]
Ibidem [Voltar ao texto]
[4]
E. Fink. La Filosofía de Nietzsche, Alianza, Madrid, 1980, 20. [Voltar ao texto]
[5] Ecce Homo, O.C. IV, 685. [Voltar ao texto]

[6] Ibidem [Voltar ao texto]

[7] E. Fink, ob. cit., 32. [Voltar ao texto]

[8] Mas Allá del bien y del mal, O.C. III, 585. [Voltar ao texto]

[9] Mas Allá del bien y del mal. O.C. III, 585. [Voltar ao texto]

[10] E. Fink, ob. cit., 28. [Voltar ao texto]

 



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