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A pretexto da guerra contra o Iraque, o autor reflecte sobre a guerra e a sua ligação aos nacionalismos e à globalização
 
 

 

Guerra, perplexidades, aflições

por Roberto Damatta in Diário de Notícias de 11/Abr/2003

Mamãe vivia rezando. Eu achava besteira. Recém-convertido ao materialismo histórico, descobria feliz que essas «soluções mágicas» e «teocêntricas» eram sobrevivência de um estágio cultural primitivo e patriarcal. Coisas para o pequeno-burguês feliz, de barriga cheia de feijão com arroz e com a cabeça feita pelas convenções mais reaccionárias.

Hoje, vendo o panorama mundial a partir dos Estados Unidos e dando aulas para esses jovens americanos de 20 anos que, apesar de um final cada vez mais próximo, continuam morrendo no Iraque, quem reza sou eu...

Quem foi que disse que reza e magia são coisas de primitivo e de pequeno-burguês, quando se vive num mundo onde a morte pode ser rotineiramente acompanhada pela televisão, minuto a minuto? Quando o noticiário e os ecos de um terrível 11 de Setembro _ o Demónio não poderia imaginar coisa melhor para espalhar o mal e justificar o ódio e a destruição neste mundo _ nos faz testemunhos mudos da dor e da destruição?

As justificativas para a agressão armada, os slogans curtos e grossos _ com sabor claramente publicitário _ para cada etapa do conflito; a lógica de escolher alvos múltiplos, que mudam segundo o momento e o desenrolar dos acontecimentos: primeiro a guerra era contra Saddam Hussein e contra as armas de destruição de massa, depois passou a ser contra um regime opressivo e antidemocrático e, em seguida, voltamos a Saddam ou a qualquer outro objectivo que tenha mais apelo naquele momento. Tudo isso me deixa aflito, preocupado, deprimido e perplexo, diante de um mundo enfurecido e louco. Só me resta rezar e escrever o que, dado o meu tamanho como articulista, equivale a orar.

Guerra e festa do Óscar, premiando uma safra pífia de filmes. Guerra e filmes escapistas. Guerra e propaganda de massa. Guerra e talk shows: essa combinação curiosa de consultório sentimental, programa de auditório, teatro e agência de notícias informais, sobretudo fuxicos e seu primo irmão, os escândalos. Guerra e esportes: essas actividades nas quais o idioma do conflito se exprime pelo uso do corpo, pelas tácticas com sabor militar, pela energia agressiva e, obviamente, pela tentativa de obter a vitória, desempenham um papel fundamental.

No meu computador encontro manifestos contra a guerra. Como se guerra fosse uma mera questão de conflito armado, quando na realidade ela é uma prática cultural inevitável dentro da moldura que, no Ocidente, encapsulou a vida social em Estados nacionais. Em comunidades dotadas de território soberano, constituições, moeda, burocracias, bandeira, hino, heróis, tradições, histórias, e tudo mais que tipifica essa visão de mundo individualista, essencialista, compartimentalizadora e dominantemente exclusivista.

Como não guerrear se todos temos a mãe pátria com indiscutíveis interesses nacionais?

Se todos somos substantivamente ligados por nascimento a uma dada comunidade que fala a mesma língua e comunga dos mesmos valores?

Desnorteia, sem trocadilhos, esse aparecimento com toda a pompa de circunstância do Estado nacional (com suas fanfarras, bandeiras, exércitos e capacidade de arregimentar para destruir) num planeta que gostava de se ver como globalizado, transnacionalizado, cortado radicalmente por redes, teias e malhas internacionais, aquém e além dos velhos, pesados e obsoletos países que constituíam um mapa-múndi velho e ultrapassado.

O problema, porém, é que «redes» não declaram guerras. Grupos de chats e spams, esses objectos virtuais que gloriosamente enchem o nosso saco oferecendo coisas na Internet, não têm forças armadas nem monopólio (voltemos ao velho Max Weber) sobre a nossa pessoa física e moral. Nascemos num mundo que se diz globalizado e que assim se comporta para certas coisas, mas todos temos pátria e cidadania que, entre outras coisas nos obrigam a pagar tributos. No Brasil, onde a palavra cidadania fala mais de carências e ausências (como comida, segurança, educação e saúde) do que de positividades, tendemos a esquecer que ser cidadão diz respeito também às obrigações e obediências que cada qual deve ao seu país.

Ademais, perdemos de vista o facto que as marcas globais e essas redes internacionais têm um poder muito limitado de mobilização. Países não convidam (você gostaria de fazer parte do nosso Exército?), convocam; não pedem (por favor, usem o real e não o dólar), determinam; não deixam escolher (o senhor pode apresentar o passaporte ou o cartão de visita), prescrevem; não solicitam (você quer morrer pela nossa causa?), comandam!

Como conciliar, neste mundo de Deus (ou do Diabo?), direitos individuais com demandas nacionais, pactos cidadãos com dívidas e doações de vida (como é o caso da morte pela pátria numa guerra), sem rezar? Sem apelar para essas dimensões mágicas que devolvem o optimismo e a esperança?


Procure outros textos sobre a guerra no verbete Guerra do Lexicon.

 


 
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