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Reproduzimos
2 capítulos da obra referida de Mia
Couto. Ilustração, pensamos, de uma das características
da obra do escritor: a arte de recriar a língua (portuguesa) e, neste
caso também, a arte de a (re)pensar a partir da sua "face física":
o termo.
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Zoo, ainda aceito. Mas lógico, porquê?
As mais das vezes é mesmo ilógico: os animais com ordem
de prisão, detidos sem outra legalidade que não seja a prepotência
de nossa espécie. O senhor duvida? Então venha por outros
olhos visitar o parque. Primeiro, as aves de rapina. Estes majestosos caçadores não
merecem tão pejorativa nomeação. No domínio
das aves muitas correcções se necessitam, como haveremos
de ver. O macho da catatua: o catateu. Entre guerreiro e palhaço a catatua
se assustou com o temor que quer infligir aos outros. O maior da família, a avestruz. É uma ave que não exerce. As asas, desempregadas, quase estão murchas. Alguma coisa deve ter acontecido para Deus lhe tirar o brevet. De raspão quase o morcego se empassarava. No escuro-fusco, o mamífero aviador se orienta só de ouvido. Desgraça do morcego, então, era ser morsurdo. Há hierarquia nos nomes. Pássaro não é sinónimo completo de ave. Pássaro é menos que ave, estatuto menor da carreira alada. Da mesma maneira, pluma e pena não são sinónimos gémeos. A pluma é a pena de gala, o traje de cerimónia. O galo: mais cavalheiro não conheço. Cisca e debica mas
quase não come. Oferece o melhor às galinhas do seu harém.
Exemplo para os homens que, ao comerem as galinhas, não deixam
parte valiosa para as mulheres. O leitão pequeno: o leitinho. O marisco, primeiro foi mar. Só depois foi isco. Como a amêijoa, no balanço da onda, amenjoada. O macho da gazela? O gazele. A fêmea do elefante: a elafante. A mais bela cá na área? A canária? Nas artes do
chilreio, a maior: a chilrainha. E que dizer da ave que pia e logo se
arrepende? É a ave dos arrepios. E ainda de passarada, se diz dos
compromissos: antes comprometido que com o peru metido. E, no fim da volta, mais além, enjaulado, o pelicano. Como ele está magro: é só pele e cano! A visita findou suas horas. A tabuleta, no fecho da estória, rezava:
proibido retirar comida aos animais. Um outro letreiro, virado para o
interior das jaulas avisava a bicharada: "não provoque os
homens, sua humanização está em curso".
Animais, animenos Na solidão da jaula os bichos se autrofiam. Que desanimaldade! Assim, arrisco: o homem é o antecessor de todos os animais. Ofendo? Que outro ser, portador de alma, é tão sem-respeitoso? Amanhã, em suas fábulas, os bichos narrarão: no tempo em que os homens sujavam o mundo. Passemos aos animais, antes que esgotem: O polvo, multipérnico, em sua imóvel impaciência. Tentaculista, dono de suas serpentes, quem sabe ele pressente o polvilho da morte, o polvo em transição para o guisado? Já as lulas, em seus líquidos voos, lembram suas aéreas parentes, as libélulas. Quem não simpatiza com as gazelas é o Lopes. Pensa que são contra ele, os antílopes. A avestruz mete a cabeça no deserto. Vá lá ela. Porque homens há que escolhem bem pior: meter o deserto dentro da cabeça. O piolho, saltitando de contente, esbarra na fivela do cinto do hospedeiro.
Do choque vazou-se-lhe a vista. Sem um olho, o piolho já só
assina: pi. E agora com o SIDA? Coitado do vampiro, viciado nas refeições sanguíneas. Que poderá o pobre quiróptero fazer? Qual a sua quiropção? Pedir o teste do HIV às vítimas? O melhor será, talvez, retirar-se. Vampirar-se. Avultado nome leva o esquilo que, somado, não chega nem a um quarto
de quilo. Recertificado seja seu título: fique o esgrama. A rã que faz cópias? A rã que xerox! Restem dúvidas, a cor do azul é a água. A um instante, me desvio, submarinheiro. Descubro as algas, álgicas, nostálgicas em seus líquidos canteiros. Regam-se de terra, adubam-se de luz. Suas verdes guelras, os raminhos onde assobiam as ondanias. O cágado, na caixa de si, tartaenrugado. Corcundarilho, marcha a remo. O cágado é o único que morre já em construído mausoléu. (1) PRE: Programa de Reabilitação Económica lançado pelo governo moçambicano em meados da década de 80. [voltar ao texto]
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