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Tema do número especial de Sciences et Avenir de onde é extraído este texto: A ética do ser vivo -- o embrião é humano?
 
 

 

O UTILITARISMO E
A PESSOA DO EMBRIÃO

 
Jean-Pierre CLÉRO

in Sciences et Avenir Hors-série nº 130 (Mar/Abr 2002), p. 33
Entende-se hoje por utilitarismo uma abordagem da ética que se reveste de três caracteres: determina a justiça ou a injustiça de um acto em função das suas consequências mais do que das intenções ou da boa vontade de quem o fez; considera em toda a situação o que é preferível, tanto para quem é reputado fazer o acto como para o conjunto dos agentes ou pacientes a que ele diz respeito; finalmente, supõe que se possa não apenas definir ordens de prioridade entre as preferências colocadas em jogo, como ainda articular estas preferências tornadas comensuráveis e, por conseguinte, formular, em determinada situação, o que convém fazer em proveito dos interesses de cada um. Assim concebido, o utilitarismo não pode considerar a questão de saber se o embrião é uma pessoa senão em termos muito críticos.

Antes de mais porque a noção de pessoa (…) na realidade só faz surgir as suas contradições e não faz outra coisa senão tapar com boa consciência práticas que nada têm que ver com a autonomia que ela pretende promover. É assim que ela encontra o seu sentido profundo de máscara.

Dois exemplos mostrá-lo-ão. Em primeiro lugar, se o embrião fosse uma pessoa, seria necessário, seguindo uma lógica correcta, proibir a interrupção voluntária da gravidez (IVG), que se transformaria imediatamente em assassinato de um ser prodigiosamente fraco e desprovido de qualquer defesa. Ora a imensa maioria dos defensores da ideia de pessoa reconhece hoje a legitimidade da IVG e nem pensa pôr em questão a lei de 1975 [em França, em 1975, a lei Veil legalizou a IVG ? a história do caso francês está resumida em http://www.inserm.fr/ethique/Ethique.nsf/397fe8563d75f39bc12563f60028ec43/8dad3bee9997501780256b7d004e7f74?OpenDocument] ou a sua recente revisão. Mas este reconhecimento só aparentemente se fundamenta na ideia de pessoa, cuja angústia [détresse] se tem em conta; sob a ideia de pessoa encontram-se tidos em conta os interesses de uma mulher e, mais ainda, os interesses da sua família e da sociedade. Em segundo lugar, se, em nome da pessoa, é possível aprovarem-se implantações de embriões, hesitar-se-á relativamente à redução embrionária que necessariamente se segue. Mais: se a escolha dos embriões citados para desaparecer não deve seguramente fazer-se segundo o critério de um eugenismo que infringe o ideal da pessoa, é, no entanto, necessário, através de um diagnóstico, distinguir os embriões sãos dos embriões doentes ou que correm o risco de o ser, por respeito à pessoa da mãe, eventualmente à do pai. Esta última exigência não parece seriamente posta em causa por ninguém. Percebe-se então que os valores que presidem à escolha não são simplesmente os valores da pessoa, mas que aqueles apenas circulam sob estes ? sendo a pessoa apenas a entidade imaginária de uma gravura simbólica mais profunda que realmente impõe as ordens de prioridade.

É necessário, em seguida, ir mais longe e sublinhar a entrada tardia do termo embrião, em 1994, no nosso direito, o qual durante muito tempo puniu o aborto abstendo-se convenientemente de dizer o quê ou quem se abortava. O embrião é um determinado sistema de células saídas de gâmetas humanos e cuja duração se inscreve entre duas datas (15 dias e 2 ? depois 3 ? meses após a concepção) artificialmente determinadas. Sem dúvida parece incoerente, à luz da continuidade, conceder a dignidade de ser humano a tal sistema celular a partir de uma certa data, e não antes; mas o embrião está no cruzamento de múltiplas perspectivas. Ele é um ser impossível de definir se não se compuser a sua "realidade" biológica com leis que lhe enquadram a duração, sem dizer de quoi elle est la duration, e com um conjunto de técnicas que permitem antecipar o embrião, implantá-lo, examiná-lo, eventualmente cuidar dele. Paradoxalmente, a personalidade que se trata de atribuir ao embrião, tão depressa quanto este seja tratado de outro modo que não enquanto meio (a felicidade do casal, uma terapia génica), é um problema que só foi possível colocar a partir do momento em que o embrião se encontrou autonomizado por um conjunto de técnicas que estão mais seguras daquilo que fazem do que daquilo a quem ou sobre quem o fazem. O embrião não é uma coisa; é o foco projectivo de um complexo biológico, técnico e legislativo que evoluiu ao longo da história e que evoluirá ainda, mas que não teríamos grande razão para considerar como existindo em si. O utilitarismo tem em conta a complexidade analítica da estrutura designada pelo termo embrião e denuncia a armadilha das palavras a que ele dá lugar.

"O embrião é uma pessoa?" não é uma questão que se coloque como tal às pessoas ou antes aos centros de interesse respectivos; ela desvanece-se seja qual for o lado pelo qual se procure analisar-lhe os termos e recompô-los. Não é que seja necessário negar todo o valor à noção de "pessoa humana potencial", com que se premeie o feto ou o embrião. Pode dizer-se do embrião que é uma pessoa humana uma vez que se tornará numa pessoa humana, que ainda não pensa nem sente, mas que pensará e sentirá. Claro que não se pede ao observador imparcial que projecte assim os valores do embrião no futuro de um ser acabado de se colocar no lugar do embrião, cujos valores não é possível captar e de cujas motivações que mais tarde abraçará nada sabe; mas é forçoso constatar que é grande a disparidade de valores entre estes fantasmas de futuro e a realidade presente de um ser que se supõe, contra o Édipo de Sófocles, que é melhor ter nascido do que não ter. Além disso, o argumento da "potencialidade" apresenta o inconveniente de não ser de muito fácil limitação, porque poderia igualmente ser utilizado contra a contracepção ou a contragestação, quando ninguém pensa plus em a aceitar numa acepção tão lata. Uma vez mais, o estreitamento dos limites vem de outro lado: muito exactamente de um confronto de interesses que se trata de identificar, de distinguir ? não sendo os interesses de uns os interesses de outros, não sendo os interesses presentes os interesses futuros (uma prática que vise os embriões implica acções que comprometem o destino biológico da espécie) ?, de ordenar e de pesar numa balança fictícia, sem que haja outra norma que não seja a compossibilidade destes interesses relacionados a centros diversos e diversamente desenvolvidos a partir deles. Se o direito francês é tão imprudente nos seus apelos à pessoa, é por outro lado extremamente subtil na sua prudência para qualificar o embrião, do qual nunca se diz que é uma pessoa ou sequer que é um ser humano. O jogo, muito assinalado pelos utilitaristas, do simbólico e do imaginário desclassifica as éticas da pessoa, cuja noção principal eles reenviam unicamente para o imaginário. Sem dúvida que os defensores da pessoa poderiam retorquir que ainda estão à espera, da parte dos seus adversários empiristas, das qualificações que substituiriam com vantagens as antigas designações de valores. É provável que, se se soubesse qualificar o embrião, obter-se-iam, por um retorno em que a nomografia é useira, qualificações novas para os outros seres humanos. Mas é mais provável ainda que este relativo silêncio da lei seja o sintoma de um trabalho já em marcha no interior do nosso direito, que não mais aceita sancionar como faltas um certo número de intervenções sobre os embriões ou que, doravante, não tentaria mais fazê-lo sem que a tentativa passe por uma grosseira falta de civilização.

(Jean-Pierre Cléro, professor de Filosofia na Universidade de Ruão).


Do número de Sciences et Avenir de onde foi extraído este texto, encontra ainda no Canto
Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana


 
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