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Tema do número especial de Sciences et Avenir de onde é extraído este texto: A ética do ser vivo -- o embrião é humano?
 
 

 

OS CRITÉRIOS BIOLÓGICOS
DA PRESENÇA DE UMA PESSOA HUMANA

 
Laurent Degos

in Sciences et Avenir Hors-série nº 130 (Mar/Abr 2002), p. 21

O recém-nascido, saído do ventre de sua mãe, lança um grito enchendo os pulmões de ar. Passa da vida aquática à vida em ar livre, da alimentação trazida pelo sangue materno à alimentação pelas mamas, de um mundo confinado a um mundo aberto. Este momento definido quase ao minuto é celebrado em cada aniversário. Contudo os biólogos explicam que este acontecimento não marca um início, mas o fim de uma evolução que tem o seu real começo no momento da fecundação, quer dizer, aquando do encontro de um espermatozóide e de um óvulo nove meses antes.

O aspecto do embrião humano durante os primeiros dias não se distingue do aspecto dos embriões de animais: apenas o seu capital genético, escondido no centro de cada uma das suas células, testemunha a diferença potencial. Entre a fecundação e o nascimento, nenhum acontecimento biológico permite dizer quando se inicia a vida do homem. O mais simples seria portanto tomar um destes extremos: a fecundação, como preconiza a Igreja Católica, ou o nascimento, como o deixam supor as conclusões do Supremo Tribunal de Justiça em Julho de 2001 a propósito da criança a nascer -- feto com 6 meses de idade e portanto viável -- falecida aquando de um acidente de automóvel. Para os juizes, não se tratou de homicídio, já que o homem não existe senão quando enche os seus pulmões de ar. Ora, para a lei, não existe senão o homem e a coisa; se não é homem, o que é ele aos olhos dos juizes?

Entretanto, ambas as teses colocam problemas. A afirmação de que a vida do homem se inicia no momento da fecundação nega a especificidade pessoal de cada um dos gémeos verdadeiros, porque a sua formação é a consequência de uma cisão do embrião num estádio mais tardio. A teoria de que a vida do ser humano se inicia com o nascimento não é mais sólida, já que, muito antes do parto, o feto viável pode (e deve) ser considerado como um homem que tem tudo do recém-nascido e pode viver como um recém-nascido. Desde o 6º mês de gravidez, o feto pesa cerca de 800 gramas e pode viver de modo autónomo. A escolha de uma data considerada como o início da vida humana, enquanto ser humano, torna-se uma questão de convenção e, por esse facto, é contestável... e contestada. Depende das culturas sociais e religiosas.

Certas etapas da vida embrionária poderiam entretanto ser levadas em conta na procura do momento em que o embrião se torna pessoa. O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. Acontece que, ao sair pela fenda assim criada, ele parte-se em dois. Há então desenvolvimento de gémeos verdadeiros -- com uma única placenta. Esta data marca realmente o momento de individualidade. A partir de então, o ser em devir é indivisível. Este período é também o começo da vida relacional entre o embrião e a sua mãe. O homem, ser de relação por excelência, iniciaria a sua vida aquando da sua primeira relação com um ser humano?

Uma outra data, por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. Pode-se relacionar com a data proposta por Tomás de Aquino, doutor da Igreja, para a chegada da alma ao corpo, situada no 40º dia de gravidez. Na época, a data da fecundação não estava determinada com precisão. A partir da 10ª-12ª semana, os abortos espontâneos são raros. Os medicamentos que provocam malformações não apresentam quase nenhum perigo. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 biliões de neurónios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurónios não têm actividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da actividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. A rede neuronal está na origem das relações do futuro recém-nascido com o que lhe é exterior. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez.

Uma outra data, a do 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebé a nascer pode viver de modo autónomo e independente. No Japão, o aborto é admitido até à 24ª semana de gravidez.

Vê-se que, da fecundação ao nascimento, existe certamente um continuum de vida, mas também etapas biológicas que fornecem argumentos para situar o início da vida propriamente humana em datas variadas. De facto, o biólogo não pode dar uma resposta para o início da vida humana, para a passagem do embrião à pessoa. É uma problemática que põe em relevo incertezas filosóficas. As sensações da mãe que transporta a criança que irá nascer devem também tomar-se em consideração nesta reflexão. É a mãe quem antes de mais se apercebe do atraso das regras. Quem tem uma primeira certeza da fecundação ao ver o resultado dos testes biológicos. A presença do embrião torna-se uma realidade quando é fotografado durante a primeira ecografia (fim do 3º mês) e quando o ginecologista faz ouvir os batimentos do coração. A medicina, com os seus meios de biologia, de imagiologia e de acústica [ecografia], permitiu à mãe uma ligação mais profunda (visão e audição do futuro bebé) e antecipou igualmente essas sensações no tempo. De facto, a mãe não entra verdadeiramente em relação com o seu bebé a nascer senão no dia em que ela o sente mexer, quando ele se agita no seu ventre. Sentir estremecer de alegria o bebé marca o anúncio dum futuro recém-nascido.

Seja qual for o momento em que se coloque o cursor da passagem do embrião à pessoa, não se pode considerar como uma coisa o embrião vivo entre a fecundação e este momento. Definir o estatuto do embrião antes desta passagem a ser humano ajudará a discernir melhor o que é ou não permitido quando se fala de manipulações praticadas sobre ele.

(Laurent Degos, hematologista)


Do número de Sciences et Avenir de onde foi extraído este texto, encontra ainda no Canto
O utilitarismo e a pessoa do embrião


 
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