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25 de abril, uma revolução?
Não recuei perante o emprego do termo "revolução" para caracterizar aquele período, desde que iniciei o trabalho em 1979 e até que ele foi publicado em 1983. Já em 1985 utilizei o conceito de "revolução imperfeita". E justificava-o da seguinte forma: "Julgo assim ficar ao abrigo de qualquer mudança, que se venha a verificar, na natureza da revolução implicando novas interpretações. Não será pertinente recordar que a revolução liberal de 1820 só pode ser bem entendida pelos eventos da guerra civil subsequente e pela vitória de 1834?" O título 'uma revolução imperfeita' destinava-se a cobrir a falta de perspectiva temporal mas também indicava um movimento incompleto (FERREIRA, José Medeiros - "25 de Abril de 1974: Uma revolução imperfeita" in Revista de história das ideias, vol. 7, Coimbra, Faculdade de Letras, 1985, pp. 391-426). O próprio conceito de revolução
em história tem vindo a
perder adeptos na proporção quase directa do abandono
da história política a favor da história económica,
social e das mentalidades, onde as estruturas e as tendências
pesadas da economia e da sociedade raramente se precipitam em rupturas
abruptas ou em movimentos rápidos. As constantes geográficas,
as séries de preços, as estatísticas da produção
económica ou a análise quantitativa dos grandes actos
sociais são geralmente refractárias ao conceito de revolução.
De certa maneira, quando se opta pela história estrutural opta-se
pela observação da continuidade e abandona-se aquele
ritmo de tempo onde as revoluções são assinaláveis.
A própria "revolução industrial", para
se revelar, necessitou de muito tempo, entre os séculos XVIII
e XIX.. Esta hegemonia das concepções estruturais
quase tornou a História uma ciência auxiliar de outras,
nomeadamente da Economia. A história quantitativa dos grandes
espaços e a história nacionalista e regional conjugaram-se
para desviar os historiadores do conceito de revolução
e da importância a atribuir às rupturas. Procuram-se
mais as continuidades do que as diferenças. Daí que,
hoje em dia, qualquer diferença, qualquer evolução
do statu quo nacional e internacional apareça como uma
surpresa que ninguém previu. A História como foi feita
e ensinada nos últimos cinquenta anos não permite entender
o que é uma revolução. Acresce que uma difusa doutrina situacionista
insinua-se através de fórmulas como a do "fim das
ideologias" ou a do "fim da História", reforçando
ainda mais a espessura das concepções unidimensionais
que imperam nas Ciências Sociais. No caso do saber histórico,
essas concepções são particularmente tirânicas
e estéreis. Hoje, emprega-se o termo "revolução"
para designar outros movimentos noutros campos. Temos, por exemplo,
a "revolução tecnológica", a "revolução
das telecomunicações" ou a "revolução
informática". Enquanto isto acontece, os historiadores
tornam-se cada vez mais parcimoniosos na utilização
do conceito, que, sem saída no seu meio mais familiar, emigra
para saberes mais sensíveis às transformações
contemporâneas. O facto de a maior parte da produção
científica sobre a sociedade portuguesa contemporânea
ter sido obra de juristas, sociólogos, economistas e politólogos
ajuda também, em muitos casos, ao abandono da perspectiva revolucionária. Alguns autores preferem mesmo, nos seus trabalhos,
analisar, na sociedade portuguesa, a predominância das continuidades
entre o regime salazarista e corporativo e o Estado democrático
a identificar as transformações operadas. É o
caso de Manuel de Lucena e de Joaquim Aguiar, entre os mais elaborados. Manuel de Lucena realça a persistência
do corporativismo de associação na sociedade portuguesa
e, mesmo, na instituição das instituições,
ou seja, na Constituição, vê relevantes semelhanças
entre a plebiscitada em 1933 e a aprovada pela Assembleia Constituinte
em 1976. É ele quem o afirma (LUCENA, Manuel de - "Rever
e romper -- Da constituição de 1976 à de 1989",
Lisboa, Separata da revista de direito e de estudos sociais,
ano XXXIII, Janeiro-Junho de 1991, p. 506): "As nossas duas revoluções
encontram-se no plano -- essencial -- das relações entre
a sociedade civil e um Estado em expansão. Aqui, uma análise
atenta mostra que, em Portugal, quase quinze anos volvidos sobre a
queda do regime autoritário, se não pode excluir que
uma continuidade profunda venha a prevalecer sobre as rupturas ocorridas." E, mais adiante, são as semelhanças
estruturais entre as duas Constituições de 1933 e de
1976 -- "as irmãs inimigas" -- que o autor enxerga:
"Uma análise aprofundada desvenda impressionantes similitudes
entre estas Constituições" (ibid., p. 507). É certo que as tais semelhanças
são apresentadas como decorrendo de analogias infra-estruturais.
Em primeiro lugar, trata-se da "dupla legitimidade" existente
nas duas Constituições; em segundo lugar, ambas implicam
"uma espécie de comunidade de destino"; em terceiro
lugar, ambas apresentam a inexistência de um modelo socioeconómico
relativamente coerente; em quarto lugar, ambas tem uma "função
latente". Nessa "função latente"
o autor assinala que as duas últimas Leis Fundamentais "desenvolvem
notavelmente a intervenção do poder político
na vida económica e social, assim se inscrevendo sob o mesmo
signo na já longa história da expansão do Estado
português..." (ibid., pp. 507-510). Essa "expansão do Estado português"
acabaria, aliás, por caracterizar apenas uma fase do processo
posterior ao 25 de Abril, com as novas instituições
económicas e sociais derivadas das nacionalizações
e da Constituição de 1976, para, após a segunda
revisão desta, em 1989, se iniciar aparentemente a marcha contrária. Pelo seu lado, Joaquim Aguiar conceptualiza todo
este período como sendo "pós-salazarista".
Para este autor (AGUIAR, Joaquim - O pós-salazarismo 1974-1984.
Lisboa : Publicações D. Quixote, 1985, p. 19), "o
pós-salazarismo deve ser entendido como a designação
dos sucessivos fracassos políticos que não conseguiram
partir da situação de facto que foi o fim do salazarismo
para a constituição de um novo projecto viável".
Deste modo, "o efeito da ruptura que inaugura a democracia acaba
por ter como componente mais significativa o facto de ter contribuído
para ocultar a complexidade e o ritmo da degradação
dos problemas existentes na sociedade portuguesa. Na aparente diferença
radical que teria sido introduzida pela democracia está [...]
uma das razões mais fortes para a linha de continuidade que
constitui o pós-salazarismo, exactamente porque encobre, sob
um disfarce formal, essa continuidade real". Porém, um sociólogo como Boaventura
Sousa Santos utiliza o conceito de "crise revolucionária"
para caracterizar o período de 1974-1975. Analisando as consequências
sobre o aparelho de Estado ("Do Golpe de Estado à Crise
Revolucionária"), este autor separa o Estado e a Sociedade.
Quanto ao primeiro, considera (SANTOS, Boaventura de Sousa - O
estado e a sociedade em Portugal (1974-1988). Porto: Edições
Afrontamento, 1990, p. 27) que: "O colapso do regime em 25 de
Abril de 1974 não implicou o colapso generalizado do Estado.
A ruptura deu-se ao nível das características fascistas
do velho regime: o partido único, a polícia política,
as milícias paramilitares, o tribunal plenário (para
julgamento dos crimes políticos), os presos políticos,
a repressão da liberdade de expressão e de associação." Porém, "o sistema administrativo manteve-se
intacto nas suas estruturas de decisão", e o saneamento
a que se procedeu limitou-se ao afastamento de pessoas "que não
de processos". Mesmo "um dos mais importantes pilares ideológicos
do Estado Novo, a Igreja Católica,
foi poupada à contestação social e resguardou-se
de qualquer processo de transformação interna"
(ibid.). Apesar disto tudo, este autor mantém que
se deu uma ruptura a 25 de Abril de 1974 que transformou o perfil
da crise vivida desde 1969 em Portugal. "Esta transformação
consistiu na criação, ou melhor, na explosão
do movimento social popular que se seguiu imediatamente ao golpe de
Estado. Foi, sem dúvida, o movimento social mais amplo e profundo
da história europeia do pós-guerra" (ibid.). Essa perspectiva comparativa não é
frequente nas análises sobre Portugal contemporâneo,
nomeadamente no que diz respeito ao cotejo com o processo de queda
das outras ditaduras europeias como a grega e a espanhola e, mais
tarde, com a queda dos regimes autoritários na Europa de Leste. Dois juristas de Coimbra não recuam também
no emprego do conceito de revolução para caracterizar
as mudanças operadas na sociedade portuguesa: "Mas entre
25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976 desenvolveu-se toda uma
revolução, certamente uma das mais profundas e mais
popularmente participadas das revoluções portuguesas.
Ao lado do MFA emergiram as forças sociais e políticas
e irromperam os movimentos populares. As agudas contradições
de classe, anteriormente reprimidas, estalaram" (CANOTILHO, Gomes
e MOREIRA, Vital - Constituição da república
portuguesa anotada. Coimbra Editora, 1993, p. 12). Para estes autores foram as massas populares os
artífices da revolução: Aliás, durante o período pré-constitucional,
muitos responsáveis e protagonistas políticos classificaram
esse tempo como "revolucionário" (por exemplo o então
presidente da República, general Costa Gomes, no seu discurso
inaugural da Assembleia Constituinte, a 2 de Junho de 1975) e a insistência
no uso da frase feita "processo revolucionário em curso",
que até se consagrou na conhecida fórmula PREC, permite
generalizar ao todo nacional a percepção de se ter vivido
uma época revolucionária, independentemente dos seus
resultados. E a percepção dos contemporâneos sobre
os acontecimentos que viveram é um dado comportamental que
o historiador deve ter na devida conta. Os acontecimentos desencadeados em Portugal pelo
25 de Abril também foram encarados como revolucionários
numa perspectiva internacional. De certa maneira, abalaram durante
alguns meses a rigidez das concepções sobre as zonas
de influência exclusiva das superpotências de então,
os EUA e a União Soviética, e contribuíram para
o fim das ditaduras na Europa e para um acesso rápido à
independência de vastos territórios em África.
Internacionalmente, o ano de 1975 foi marcado por Portugal. E durante
o período pré-constitucional confluíram para
Portugal muitos revolucionários provindos da Europa de 1968,
da América Latina de Allende e da resistência brasileira
aos coronéis, além de jornalistas dos mais conhecidos
órgãos de comunicação mundiais. Os Estados
mais activos enviaram diplomatas e outros seus agentes de qualidade
rara. Algo de especial e único aconteceu então entre
nós. Porém, vinte anos depois, poucos ousam
utilizar o conceito de revolução para caracterizar as
transformações operadas na sociedade portuguesa. Quase
todos concordam que, em algum momento, a "normalização
democrática" significou o fim da revolução. E, no entanto, as modificações continuaram
a verificar-se e até se aceleraram depois da adesão
à Comunidade Económica Europeia em 1986, de tal maneira
que é avisado salientar-se que há dois momentos distintos
na transformação contemporânea de Portugal: o
período revolucionário entre 1974 e 1975 e o período
posterior à adesão à Comunidade Europeia. Um
mesmo transe em dois momentos? Por outro lado, conhecendo o destino das grandes
revoluções, como a americana de 1773-1776, a francesa
de 1789-1793 e a russa de 1917-1921, quase se diria, generalizando,
que só os contra-revolucionários as consideraram como
tais. Os principais protagonistas revolucionários hão-de
sempre, por um motivo ou outro, considerar as revoluções
"geladas", "inacabadas", "usurpadas",
"desvirtuadas", numa insatisfação permanente
perante o curso da história. Essa insatisfação
não deixa, aliás, de ser um elemento espiritual dinâmico
na vida dos homens, mas não é amiga dos historiadores. Assim, para os que em Portugal acreditaram numa
alteração radical da sociedade e das formas de vida
quotidiana, sempre lhes há-de aparecer como minguada a expressão
que as coisas tomaram. Entre os que consideram que a revolução
não se cumpriu, convém distinguir dois géneros.
Um grupo pretende que ela foi uma potencialidade que não chegou
a acontecer, enquanto o outro marca datas para o seu estiolamento,
desde o 25 de Novembro de 1975 à acção dos primeiros
Governos Constitucionais. Se o Partido Comunista Português situou
o fim da revolução e o início da "recuperação
capitalista" nos idos da queda de Vasco Gonçalves e na
ascensão do Partido Socialista entre o VI Governo Provisório
e o I Constitucional, já um radical como João Martins
Pereira só vislumbrou uma pré-revolução
na sociedade portuguesa em toda essa convulsão. Também
Otelo Saraiva de Carvalho sairá insatisfeito com o rumo que
os acontecimentos tomaram depois do 25 de Novembro. E o próprio
general Ramalho Eanes, nos discursos pronunciados a 25 de Abril de
1977 e de 1978 na Assembleia da República, deu expressão
aos desiludidos com a dimensão social do processo de "normalização
democrática". João Martins Pereira (PEREIRA, João
Martins - O socialismo, a transição e o caso português.
Lisboa, 1976, pp. 197-198) caracterizará, assim, todo esse
período como sendo "pré-revolucionário";
"O processo português, em particular entre o 25 de Abril
e o 25 de Novembro, pode resumidamente definir-se como uma situação
pré-revolucionária típica, em que o facto de
o partido potencialmente revolucionário se ter colocado
no campo do poder de Estado (e não no do poder de base, que
aparece a dobrá-lo) faz desviar a questão do
poder na sociedade para a questão do poder dentro
das Forças Armadas (mais concretamente, dentro do aparelho
militar)." Na mesma linha vem Eduarda Dionísio desenvolvendo
um testemunho literário e vivencial da mais alta qualidade
que se constitui como fonte histórica das forças da
esquerda dominada e marginalizada após a normalização
da democracia constitucional. Já para vários quadrantes do pensamento
conservador, os acontecimentos originados pelo 25 de Abril foram considerados
francamente revolucionários. Um dos intelectuais conservadores que melhor traduziu,
desse ponto de vista, o carácter revolucionário do 25
de Abril foi, indiscutivelmente, José Enes (ENES, José
- "Autonomia regional dos Açores numa perspectiva de teoria
de Estado" in A autonomia como fenómeno cultural e
político. Angra do Heroísmo: ed. Instituto Açoriano
de Cultura, 1987, p. 17), o primeiro reitor da Universidade dos Açores:
"A revolução de 25 de Abril, sob o ponto de vista
bélico, não passou de um pronunciamento militar, incruento.
Como transformação estrutural do Estado, porém,
foi a revolução mais violenta que abalou a alma e o
corpo da Nação portuguesa em toda a sua história.
Foi uma autêntica catástrofe: uma eversão
de alto a baixo de todo o sistema estatal português." Mas não se tratou apenas de uma "eversão"
de todo o sistema estatal português. As próprias normas
que regiam as actividades e definiam um modelo de sociedade foram
alteradas por forma inédita em Portugal: "Nem a dominação
espanhola, que subjugando a soberania não amputou a integridade
jurídica e territorial do Reino, nem a Revolução
Liberal, que mudando os códigos e a administração,
confiscando as ordens conventuais e secularizando o Estado, conservou
a religião oficial e as ordens sociais; nem a implantação
da República, que substituindo o regime e separando a Igreja
e o Estado, não afectou a inteireza territorial e, perseguindo
a religião católica, favoreceu a sua purificação
e reforma, nem a Revolução de 28 de Maio, que acentuando
a marginalização histórica de Portugal, restaurou
o projecto do Império, equilibrou as finanças nacionais,
e estabeleceu o pacto de conciliação entre as forças
ideológicas e políticas que desde a segunda metade do
século XVIII disputam o poder do Estado [...] nenhuma destas
revoluções nem todas em conjunto avançaram tanto
na destruição do sistema estatal português: na
política, na economia, no território e na ideologia"
(ibid., p. 17). A revolução do 25 de Abril irá
ainda herdar o código concentrado de todas as rupturas anteriores
já citadas: "Mas todos aqueles momentos de viragem histórica
estiveram presentes no 25 Abril. A dominação espanhola
com o nacionalismo, ressentido e sonhador do sebastianismo; a revolução
liberal e a implantação da República com o demiurgismo
legislativo e o seu projecto laicista para a sociedade portuguesa;
o 28 de Maio com a marginalização histórica,
a má consciência da guerra colonial e das violências
políticas e a degenerescência política das instituições
do Estado" (ibid., pp. 17-18). O conceito de revolução está
assim presente em quase todos os pensadores deste período,
seja para caracterizar um momento, evocar uma possibilidade, medir
a sua insuficiência, ou para indagar sobre o passado de Portugal. Assim, ao voltar agora ao assunto, mantenho a
ideia de se ter operado um movimento brusco na sociedade portuguesa,
desencadeado pela acção do 25 de Abril de 1974. E não
me refiro apenas à sociedade política, onde foram manifestas
as modificações introduzidas. O 25 de Abril desencadeou
profundas alterações nos valores e na vida social nacional.
Ele marca uma "era", tantas são as ocasiões
em que é tomado por referência: "Antes do 25 de
Abril...", "só com o 25 de Abril", "depois
do 25 de Abril" são expressões coloquiais quotidianas
que se impuseram nos últimos vinte anos. A data de 25 de Abril de 1974 marca, pois, o século
XX e divide a sociedade em "antes" e "depois".
Será isso uma revolução? É certamente
uma era. Por outro lado, a entrada de Portugal na Comunidade
Europeia, a 1 de Janeiro de 1986, também surge a delimitar
um período. Para este volume é mesmo esse o facto que
assinala o seu fim. É possível que a entrada de Portugal na Comunidade Europeia tenha maiores consequências para a sociedade portuguesa do que os acontecimentos que se desenvolveram entre o 25 de Abril de 1974 e aquela data. Mas essa será outra história. (FERREIRA, José Medeiros - Portugal em transe (1974-1985). 8º vol. de História de Portugal (dir. de José Mattoso). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p.7-11)
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