Esta é a primeira página motivada pelo tema Junho é o mês do meu aniversário: duas páginas sobre o nascimento, a morte, o sentido da vida.

A segunda é um texto de Fernando Savater sobre O sentido da vida [ler essa página]

 

JUNHO
é o mês do meu aniversário

... o que, muito provavelmente, pouco interessará ao leitor. Nem a mim, enquanto responsável pelo Canto, interessa. Se dedico algum tempo ao tema, é porque ele pode permitir a viagem por (outros) temas paralelos.

A propósito, lembro-me de Camões; do conhecido soneto O dia em que nasci moura e pereça -- "a vida mais desgraçada" começa com o nascimento:

   
 

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamis o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamis se viu!

Isso: o aniversário remete, inevitavelmente, para a vida. E para a morte. Para a biografia? E vem-me à memória Fernando Pessoa (o seu heterónimo Alberto Caeiro):

   
 

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas -- a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.

O poema continua; mas, para o caso presente, parece-me que interessa mais um outro, também dele, que nos liga (a nós, os aniversariantes!) ao todo que é a realidade:
   
 

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Seja importante ou não, toda a vida decorre entre um nascimento e uma morte, feita de comemorações do primeiro. E feita de recordações: de pessoas, de coisas... de cheiros:
   
 

O cheiro a cera e a incenso
sobe da infância e é recordado
pelo olfacto da memória.
Há certos cheiros que persistem vida fora.
O cheiro da relva recém-cortada
frente à casa, o cheiro-maçã de esperma nos lençóis,
o cheiro dos cavalos depois duma caminhada,
o cheiro-estalido da lenha na lareira,
o cheiro de roupa de linho no estendal por detrás da casa,
o cheiro silvestre da minha primeira namorada,
o cheiro dos velhos álbuns de fotografias
(cheiro de morte, mas com cheiro de vida lá dentro)
sobretudo quando se sabe que o almirante navega
há muitos anos num mar para colorir.
Um avô almirante que eu nunca vi
numa pose de leão dos mares para a fotografia
(um cheiro a vaidade, que se perdoa tanto tempo depois,)
o cheiro da catequista da igreja de S. Jorge de Arroios
por quem eu estava apaixonado,
cheiro de castos lençóis, provavelmente os mesmos de Camilo Pessanha.
O cheiro de santidade, o cheiro de inveja
que se desprende de certa gente malina e de certos lugares aziagos,
o cheiro a guarda-chuva molhado e abandonado como um pássaro morto.
O cheiro de flores apodrecidas em amarelentos solitários.
O cheiro a corno queimado que anuncia a presença do demo,
esse que vem cheirar os cheiros que são muito nossos
para roubar a memória do que fomos sendo
nos laços e lacetes da existência.

(Alexandre O'Neill)

... e, quando se fala de vida, com frequência emerge a grande questão filosófica (e não só: pelo menos também -- sobretudo? -- religiosa): qual o sentido da vida? Esse é o problema tratado no texto (de Fernando Savater) O sentido da vida.

 

O mês passado lembrámos que Maio é mês do coração. E aproveitámos o pretexto para recordar

» poemas de Fernando Pessoa e a voz de Maria Bethânia cantando alguns [ver]

» poemas de Luís de Camões e uma canção de Fafá de Belém com o tema comum As cores do coração [ver]

» um conjunto de textos sobre a problemática coração/razão (incluindo um de Edgar Morin onde se questiona a "definição" de Homem como ser racional) [ver]

Maio/2001

mocho, símbolo da Filosofia

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