O SENTIDO DA VIDA
Um dos motivos de ridículo mais justificados em que
costumam incorrer os filósofos é o de pretenderem
competir com a religião
na procura redentora do sentido
da vida. É que a pergunta
por esse "sentido" é já por si religiosa
e a única coisa que a filosofia pode fazer quanto a essa
questão é mostrar -- tal como pretendo fazer agora
-- essa religiosidade e tentar reposicionar a pergunta de outra
forma para que fique filosoficamente válida. Quando se
diz estar a procurar -- ou ter encontrado! -- o sentido da vida,
a que tipo de "sentido" nos estamos a referir? Dizemos
que tem "sentido" aquilo que significa algo por meio
de outra coisa ou que foi concebido de acordo com determinado
fim. O sentido de uma palavra ou frase é o que ela quer
dizer, o sentido de um sinal é o que quer indicar (uma
direcção, a categoria de uma pessoa, etc) ou do
que quer avisar (um perigo, a hora de se levantar, a passagem
de peões, etc); o sentido de um objecto é aquilo
para o que se pretende que sirva (comer a sopa, matar o inimigo,
falar com alguém afastado, etc); o sentido de uma obra
de arte é o que o seu autor quer expressar (uma forma
de beleza, a representação do real, a insatisfação
diante do real, a ilusão do ideal, etc.); o sentido de
um comportamento ou de uma instituição é
o que se pretende conseguir através dela (amor, segurança,
diversão, riqueza, ordem, justiça, etc).
Seja como for, o que interessa para determinar o sentido de
qualquer coisa é a intenção que
o anima. Os símbolos, obras, condutas e instituições
humanas estão cheios do sentido que as nossas intenções
lhes conferem, do mesmo modo que os comportamentos dos animais
ou até os tropismos das plantas ou dos infusórios.
Em todos os casos, a intenção está ligada
à vida, a conservá-la, reproduzi-la, diversificá-la,
etc. Onde não há vida deixa também de haver
intenção e portanto deixa de haver sentido: podemos
explicar as causas de uma inundação, de um terramoto
ou de um amanhecer, mas não o seu "sentido".
Portanto, se as intenções vitais são a
única resposta inteligível à pergunta pelo
sentido, como poderia ter "sentido" a própria
vida? Se todas as intenções remetem como última
referência para a vida, que "intenção"
poderia ter a própria vida no seu conjunto?
O que é próprio do "sentido" de alguma
coisa é que remete intencionalmente para outra coisa
que não ela própria: para os propósitos
conscientes do sujeito, para os seus instintos e, em último
caso, para a autoconservação, auto-regulação
e propagação da vida. Mas se nos perguntamos "que
quer a vida?", as únicas respostas possíveis
-- viver, viver mais -- trazem-nos de novo para a própria
vida sobre a qual perguntamos. Para encontrar o sentido da vida
devemos procurar "outra coisa", algo que não
seja a vida nem esteja vivo, algo para além da
vida. Suponhamos que respondemos "o sentido da vida orgânica
é o pleno desenvolvimento do universo inorgânico
do qual brotou". Atribuir "intenções"
ao inorgânico parece bastante abusivo, pode fazer-se apenas
estendendo tanto o significado da palavra "intenção"
que nos desconcerta, mas admitamo-lo por um momento. A pergunta
imediata é: e qual é o sentido do universo inorgânico?
Para responder a isto de modo não auto-referente (evitando
dizer "a intenção do universo é continuar
a ser universo cada vez mais", por exemplo) temos de nos
referir a algo que não faça parte do próprio
universo isto é, da natureza tal como a conhecemos,
algo "sobrenatural", o que é apelar verdadeiramente
para o desconhecido, porque ninguém sabe realmente com
que se poderia parecer algo "sobrenatural". Tinha
razão Wittgenstein no seu Tractatus logico-philosophicus,
outra das obras-primas da filosofia deste século, quando
disse: "O sentido do mundo tem de se encontrar fora do
mundo" (6, 41). Muito bem, mas onde? Terá o mundo
um "fora"? (Ver capítulo quinto.) A pergunta
sobre o sentido acaba onde acaba o mundo ou poder-se-á
continuar a perguntar pelo sentido "mais além"?
O que caracteriza a mentalidade religiosa (por oposição
directa à filosófica) não é
responder "Deus" à pergunta sobre o sentido
ou intenção do universo: o que é propriamente
religioso é acreditar que, depois de dada tão
sublime resposta, já está justificado deixar
de perguntar. Graças a Deus as coisas têm sentido,
mas seria ímpio perguntar que sentido tem então
Deus. E, no entanto, de um ponto de vista filosófico,
a pergunta sobre o sentido de Deus é tão razoável
e urgente como a que pretende revelar o sentido do mundo ou
o sentido da vida. Se essa pergunta não se pode fazer
ou, em nome do Grande Enigma Divino, é suportável
não responder a ela ("Deus é o sentido
e a pequenez humana nada mais pode saber d'Ele para além
disso", etc.) então teria valido o mesmo ficarmos
conformados muito antes. Poderíamos ter aceite à
partida, por exemplo, a lição daqueles dois versos
de O guardador de rebanhos que Fernando Pessoa escreveu:
as coisas não têm significado mas existência,
as coisas são o único sentido oculto das coisas.
Aceitar que Deus seja o Sentido Supremo, o que dá Sentido
a todos os Sentidos, é um acordo com a obscuridade ainda
mais conformista do que responder que o sentido de todos os
sentidos é a intencionalidade vital ou a intenção
humana. Pelo menos existem razões filosóficas
para não ampliar para além da vida a pergunta
sobre o sentido, isto é, para lá do uso habitual
da palavra "intenção": depois de ultrapassada
essa barreira já não há porque se deter
nem porque se contentar nunca. O religioso não
é tanto querer ir para além como acreditar que
depois está justificado "travar". Alguns filósofos
tentaram com grandes respostas sistemáticas justificar
também uma "travagem" semelhante à da
religião, quer seja recorrendo ao sobrenatural ou sem
chegar a isso. E habitualmente encararam as suas respostas de
modo tão dogmático como qualquer pontífice
ou inquisidor (ainda que, geralmente, com menos forças
repressivas ao seu serviço para castigar os hereges).
Merecem o que Cioran anota nos seus Cahiers, publicados
postumamente: "Um sistema filosófico é como
uma religião, mas mais tola."
Se a vida não tem "sentido" (pelo mesmo motivo
que todos os outros "sentidos" remetem mediata ou
imediatamente para a vida), deveremos concluir desoladamente
que a vida é absurda? Nem pouco mais ou menos.
Chamamos "absurdo" ao que deveria ter sentido mas
não tem, não ao que -- por cair fora do âmbito
do intencional -- não "tem de" ter um sentido.
Do mesmo modo, dizemos que um homem ou um animal é "cego"
quando não vê, mas não podemos dizer, a
não ser metaforicamente, que uma pedra seja "cega":
porque o homem ou o animal "deveriam" ver segundo
a sua condição natural, enquanto que a vista não
faz parte do que podemos pedir a uma pedra. Não é
absurdo que a vida no seu conjunto não tenha sentido,
porque não conhecemos intenções fora das
vitais, e para lá do campo do intencional a pergunta
pelo sentido... não tem sentido! O que é realmente
"absurdo" não é que a vida não
tenha sentido, mas empenhar-se em que o tenha de ter.
Na verdade, a procura de um "sentido" para a vida
não se preocupa pela vida em geral nem pelo "mundo"
em abstracto, mas pela vida humana e pelo mundo em que nós
habitamos e sofremos. Ao perguntar se a vida tem sentido, o
que queremos saber é se os nossos esforços morais
serão recompensados, se vale a pena trabalhar honradamente
e respeitar o próximo ou se seria o mesmo entregar-se
a vícios criminosos, em suma, se nos espera algo
para lá e fora da vida ou apenas o túmulo, como
parece evidente. Um dos pensadores que levantou a questão
com maior crueza é precisamente alguém habitualmente
tão pouco cruel como Kant. No fim da Crítica
da Razão (1)
fala do homem recto (apresenta como exemplo, nada por acaso,
a Espinosa) que está convencido de que não existe
Deus nem vida futura. Como fará então para justificar
o seu próprio compromisso moral? Por muito boa vontade
que desenvolva, os seus sucessos serão sempre limitados
e nunca evitarão completamente que o engano, a violência
e a inveja continuem a agir à sua vontade sem olhar a
nada entre os homens. Tanto ele como os restantes homens justos
com que se encontrar -- por muito dignos que sejam de obter
a felicidade -- serão tratados pela imparcial natureza
do mesmo modo que os malvados e estarão submetidos "a
todos os males da miséria, das doenças, de uma
morte prematura, tal como os outros animais da Terra, e continuarão
a está-lo até que a Terra profunda os guarde a
todos (justos ou não, que isso aqui vale o mesmo) e os
volte a fazer desaparecer, a eles que podiam julgar ser o fim
final da criação, no abismo do caos informe da
matéria de onde foram tirados". Ao constatar este
panorama tão pouco animador, a única defesa --
segundo Kant -- que resta à pessoa decente para salvaguardar
a sua rectidão e não a considerar uma preocupação
estéril é aceitar a existência de um Deus
que seja o criador moral do mundo, garantindo assim um
"sentido" ultramundano feliz para a boa vontade, cá
em baixo tão mal retribuída.
À partida não serei eu quem tome de ânimo
leve o que pensou sobre este assunto uma inteligência
tão preclara e um espírito tão honrado
como Kant. Só me atrevo a realçar a possibilidade
de uma linha de reflexão alternativa, que também
conta com defensores ilustres (julgo que maioritários
na filosofia posterior a Kant). De facto, não é
por se comportar eticamente e por lutar para que exista mais
solidariedade e justiça no mundo humano que nenhum homem
ou nenhuma mulher consegue escapar ao destino comum que a nossa
condição mortal nos reserva. Também nenhum
esforço, por mais recto que seja, libertará definitivamente
a nossa convivência de engano e violência, possibilidades
sempre abertas à liberdade de cada um e demasiadas vezes
favorecidas por estruturas socioeconómicas desviantes.
Mas implicará isto necessariamente que o projecto moral
seja sem sentido e supérfluo, a não ser que alguma
sanção sobrenatural o avalize contra a própria
morte? O homem recto (e prudente!) quer viver melhor,
não escapar à sua condição mortal:
tenta fazer o bom não só apesar de ter consciência
de que o mau sempre existirá mas até precisamente
por isso, para defender do irremediável a fragilidade
preciosa do que considera preferível. Não se conduz
eticamente para conseguir algum prémio ou retribuição,
mas chama "ética" à forma de agir que
o recompensa na sua própria actividade, fazendo-o saber-se
mais razoavelmente humano e livre. Em suma, não vive
para a morte ou para a eternidade mas para alcançar a
plenitude da vida na brevidade do tempo. Pelo menos acredito
que Espinosa teria respondido algo deste género a Kant.
Digamo-lo de outra forma. O homem sabe-se mortal e é
esse destino que o desperta para a tarefa de pensar. A sua primeira
reacção diante da certeza da morte (no caso de
optar por não a negar e renunciar a refugiar-se na ilusão
de algum tipo de existência no além) é de
desespero angustiado, pelas razões bem expostas mais
atrás por Kant. Que comportamento lhe ditará o
desespero? Sem dúvida medo perante tudo o que o ameaça
de acelerar o seu fim (privações, hostilidade,
doença, etc.), acompanhado por avidez de acumular tudo
o que lhe parece dar resguardo diante da morte (riqueza, segurança,
proeminência social, nome, etc) e ódio relativamente
àqueles que lhe disputam esses bens e parecem obrigá-lo
a partilhá-los: quem tem medo do nada, precisa de tudo.
O medo, a avidez e o ódio são as características
de viver desesperadamente: naturalmente também não
conseguem salvar ninguém do seu destino fatal, mas, em
contrapartida, introduzem o mal-estar da morte em cada
momento da vida, mesmo nos seus maiores gozos.
Quando se consegue sobrepor ao desespero, o ser humano constata
que é tão verdade que vai morrer como que agora
está vivo. Se a morte consiste em não ser nem
estar de modo nenhum em parte nenhuma, todos já derrotamos
a morte uma vez, a decisiva. Como? Nascendo. Não
haverá morte eterna para nós, visto que já
estamos vivos, ainda vivos. E a certeza gloriosa da nossa
vida não poderá ser apagada nem turvada pela certeza
da morte. De modo que temos direito a perguntar, tal como no
livro sagrado: "Morte, onde está a tua vitória?"
A morte poderá um dia impedir que continuemos a viver,
nunca que agora estejamos vivos nem que já tenhamos vivido.
Pode transformar em cinza o nosso corpo, os nossos amores e
as nossas obras, mas não a presença real
da nossa vida. Porque haveria a morte futura de tirar importância
à vida, quando a vida presente já se impôs
à escura e eterna morte? Porque é que a morte,
em que não somos, deveria ter mais importância
para nós do que a vida que somos? Cada um pode repetir,
com o poeta Lautréamont: "Não conheço
outro bem que o de ter nascido. Um espírito imparcial
acha-o completo."
O ser humano, quando constata a sua presença na vida,
exalta-se. E essa constatação exaltada é
o que constitui a alegria. A alegria afirma e assume
a vida face à morte, face ao desespero. A alegria não
celebra os conteúdos concretos da vida, frequentemente
atrozes, mas a própria vida porque não é
a morte, porque não é "não"
mas "sim", porque é tudo face ao nada. Mas
a alegria não é puro êxtase, mas actividade
e vai ainda mais além: luta contra o mal-estar desesperado
da morte que nos contagia de medo, de avidez e de ódio.
A alegria nunca poderá triunfar completamente sobre o
desespero (dentro de cada um de nós coexistem o desespero
e a alegria) mas também não se renderá
diante dela. Baseando-nos na alegria, procuramos "aligeirar"
a vida do peso opressor e nefasto da morte. O desespero só
conhece o nada que ameaça cada um, enquanto que a alegria
procura apoio e estende a sua simpatia activa aos nossos semelhantes,
os mortais vivos. A sociedade é o laço formado
por mil cumplicidades, que une aqueles que sabem que vão
morrer para afirmarem juntos a presença da vida.
Se a morte é esquecimento, a sociedade será comemoração;
se a morte é igualdade definitiva, a sociedade instaurará
as diferenças. Se a morte é silêncio e ausência
de significado, o eixo da sociedade será a linguagem
que transforma tudo em significativo. Se a morte é debilidade
completa, a sociedade procurará a força e a energia.
Se a morte é insensibilidade, a sociedade inventará
e potenciará todas as sensações, o esbanjamento
"sensacional". Como a morte é o isolamento
final, a sociedade instituirá a companhia do afecto e
do auxílio mútuo na infelicidade. Se a morte é
imobilidade, a sociedade humana premiará as viagens e
a velocidade que nada consegue deter. Se a morte é a
repetição do mesmo, a sociedade tentará
o novo e amará os velhos gestos da vida como algo sempre
novo, os novos seres como nós, a progénie indomável
dos mortais. Contra a putrefacção informe cultivará
a formosura, o jogo onde se pode morrer e ressuscitar muitas
vezes, a metamorfose do significado. Cada sociedade é
uma prótese da imortalidade para mortais, aqueles que
conhecem a morte mas afrontam as suas lições desesperadamente
aniquiladoras. É verdade que todos os empreendimentos
sociais dos humanos estão também marcados
pelo medo, pela avidez, e pelo ódio do desespero. Porém,
não é o desespero que cria, mas a alegria. Nisto
consiste a verdadeira lição da ética. Por
isso Espinosa chamou ao homem justo "alegre" e sábio.
Em si mesmo, o mundo em que nós, humanos, nos movemos
não tem qualquer sentido ou significado próprios.
Como se prova? Que resiste a todos, por mais diferentes que
sejam. Como notou Castoríadis "só pelo facto
de não existir um significado intrínseco ao mundo
os homens lhe souberam e tiveram de atribuir esta variedade
extraordinária de significados extremamente heterogéneos"[2].
O sentido é algo que nós, humanos, damos à
vida e ao mundo face ao abismo insignificante do caos, que vencemos
aparecendo e ao qual nos submetemos morrendo. É uma grande
vitória e uma derrota insignificante, porque o indivíduo
morre, mas o sentido que ele quis dar à sua vida não
morre... Esse fica para nós, seus companheiros de humanidade.
Mas o abismo caótico também está oculto
em todos os nossos significados, como o seu reverso, como a
sua espessura. Vivemos sobre o abismo e conscientes
dele. Por isso a razão humana não é simples
fábrica de instrumentos nem se contenta em encontrar
soluções para perguntas ainda não definitivas.
E também é por isso que a filosofia não
é apenas razão mas também imaginação
criadora: "E a mediação do imaginário,
do inverificável (o poético), são as possibilidades
da ficção (mentira) e os saltos sintáticos
para manhãs sem fim que transformaram homens e mulheres
em charlatães, em censuradores, em poetas, em metafísicos,
em planificadores, em profetas e em rebeldes diante da morte"
(George Steiner, em Errata).
A religião promete salvar a alma e ressuscitar o corpo.
Pelo contrário, a filosofia nem salva nem ressuscita
mas apenas pretende levar até onde for possível
a aventura do sentido do humano, a exploração
dos significados. Nem rejeita a realidade da morte -- como o
mito -- nem se deixa embuir desesperadamente pelo medo e pelo
ódio que dela brotam: procura pensar os conteúdos
da vida e os seus limites... como se a própria vida dependesse
disso. E fá-lo com tanto afinco que às vezes provoca
a troça e o sorriso.
(SAVATER, Fernando - As
perguntas da vida, p. 267-275)
[1] Crítica do juízo,
de M. Kant, apêndice da 2ª parte, §87, trad.
de M. Garcia Morente, col. Austral, Madrid. [Voltar
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[2] La creaziones del tempo, de
C. Castoriadis, Volontà, 1/95, Milão. [Voltar
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O mês passado lembrámos que Maio
é mês do coração. E
aproveitámos o pretexto para recordar
» poemas de Fernando Pessoa e a voz de Maria
Bethânia cantando alguns [ver]
» poemas de Luís de Camões e
uma canção de Fafá de Belém
com o tema comum As cores do coração
[ver]
» um conjunto de textos sobre a problemática
coração/razão (incluindo
um de Edgar Morin onde se questiona a "definição"
de Homem como ser racional) [ver]
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