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O TÚMULO DE SAINT-EXUPÉRY [1]


Rubén E. Nájera

(biografia do autor)

A 15 de Fevereiro de 1937, em escala para inaugurar a rota Nova York-Terra do Fogo, o avião de Antoine de Saint-Exupéry sofreu um acidente ao descolar da cidade de Guatemala; o piloto sofreu sérias fracturas cranianas que originaram o seu traslado para Nova York e uma demorada convalescença da qual nasceu uma das suas obras-mestras: Terra dos Homens, que mereceu o Grande Prémio de romance da Academia Francesa.  Paradoxalmente, Terra dos Homens não é um romance mas um trabalho no qual convergem memórias, reflexões e essa espécie de proposta ética que resulta das experiências do autor e da gradual metamorfose do piloto em herói prometeicoLuc Estang destacou a influência de Gide no conceito e na estrutura desta obra, não por derivação, visto que Gide nunca abandonou os géneros convencionais, mas por sugestão directa. O resultado é uma obra que antecipa em quase meio século o colapso dos géneros convencionais da narrativa e a emergência de novas formas de estruturação literária.

Até esse momento a obra de Saint-Exupéry (que, como a de Forster, pode resumir-se em cinco ou seis livros, suficientes para cimentar a sua fama) tinha-se concentrado num tipo de narração convencional que combinava experiência e ficção: um relato preliminar intitulado L’Aviateur; a combinação de deserto, voos e romance do seu primeiro romance, Courrier Sud [2]; o concentrado dramatismo e a intensidade de Voo Nocturno[3], que qualifica mais como novella do que como novela (romance).  Mas após Terra dos Homens o autor não voltaria a estas tentativas de fazer ficção sobre as suas experiências nem, o que constitui o contributo mais importante da sua obra, sobre o impacto moral destas experiências no seu pensamento e na sua visão de uma civilização cada vez mais à beira do desastre.

Se colocarmos entre parêntesis o Pequeno Príncipe [4] (se Saint-Exupéry tivesse querido trivializar o título utilizando o diminutivo “principezinho”, tê-lo-ia feito sem problemas, visto que o francês também o admite), alguns artigos, cartas — entre as quais a mais bonita é, sem dúvida, a Carta a um Refém, também dedicada a Léon Werth — e obras póstumas como os seus Carnets [5], apenas mais duas obras se seguiriam à que surgiu do acidente guatemalteco.Piloto de Guerra é uma meditação luminosa sobre o destino da humanidade em guerra e sobre o futuro de uma civilização que teria que ressurgir do fascismo, e conclui com uma profissão de fé que tem tons de testamento: crer num mundo futuro no qual ninguém tenha direito a impor as suas ideias às dos outros. Este epílogo transforma-se, no início da última obra de Saint-Exupéry, necessariamente póstuma — que permaneceu inédita por muitos anos durante os quais a sua irmã e amigos se dedicaram a decifrar manuscritos, transcrever fitas magnéticas, esclarecer textos dactilografados cheios de correcções e reconstituir a estrutura: o resultado, Cidadela, é um trabalho de proporções alcorânicas, tanto pela forma como pelo conteúdo, que só tem paralelo, talvez, no Os sete pilares da sabedoria  [6] de Lawrence, mas que o supera na sua visão, carácter e transcendência. É sem dúvida a obra menos lida de Saint-Exupéry.

A referência a outra ligação de Saint-Exupéry com Guatemala é inócua: o seu matrimónio com uma salvadorenha, viúva dos últimos anos de Gómez Carrillo, ufana de utilizar um título nobiliário que o próprio escritor depreciava, serve só para entender alguns detalhes da sua vida e a metáfora da rosa do Principezinho.

Em 1940, a seguir à ocupação de França e à desmobilização do seu regimento, Saint-Exupéry e a esposa emigraram para os Estados Unidos; a partir de Nova Iorque continuou o seu trabalho em Cidadela e o apoio à Resistência mas em 1943, incapaz de permanecer inactivo e apesar de ter superado sobejamente as horas máximas de voo permitidas e de continuar a sofrer as consequências do acidente guatemalteco, reincorporou-se na Argélia no seu grupo de reconhecimento, o famoso 2/33, agora sob comando americano. A 31 de Julho de 1944 às 8.30 h, Saint-Exupéry descolou da sua base em Bastia-Borgho, na Córsega, em voo secreto de reconhecimento sobre a região de Grenoble-Annecy. Pelas contas ao combustível do avião foi declarado desaparecido às 14:30 desse mesmo dia.

Em mais de um momento da suas obras, Saint-Exupéry invocou a solidão do piloto no meio da tormenta ou da noite numa época em que a navegação por instrumentos não existia. Os seus pilotos, incarnações de si próprio e dos seus amigos, tinham tendência para confundir as constelações com cidades iluminadas e dirigiam-se para elas, subindo inevitavelmente até “morder as estrelas”. Ninguém duvida de que tenha acontecido isso com o último voo de Saint-Exupéry, pelo que as notícias dos jornais difundidas nos últimos dias sobre a recente descoberta dos restos do seu avião nos arredores de Marselha não podem ser consideradas senão ficção.

Como todos sabem, o túmulo de Saint-Exupéry só pode estar nas estrelas.

(Tradução de A. Gomes)


Notas d'O Canto
(1) Este texto faz parte de um conjunto de análises de "Mitologias". Aconselho vivamente a consulta do Índice. (Voltar ao texto)
(2) Courrier sud. - Paris: Gallimard, 1979. (Voltar ao texto)
(3) Voo nocturno. - Lisboa: Difel, cop. 1931.
Voo nocturno. - Lisboa: Bertrand, [D.L. 1954].
Voo nocturno. - Lisboa: Difel, D.L. 1989.
Voo na noite. - Mem Martins: Europa-América, D.L. 1995.
Voo nocturno. - Lisboa: Círculo de Leitores, 1975.  (Voltar ao texto)
(4) Trata-se da conhecidíssima obra de Saint-Exupéry que foi traduzida para português com o título de O Principezinho. Mantemos no texto a tradução directa do título original, Le petit prince ([S.l.]: Gallimard, 1997) e do texto original (El Pequño Principe), para fazerem sentido as observações seguintes. De qualquer modo, há várias traduções espanholas com o título de El Principito (Barcelona : Emecé, D.L. 1994; Santiago del Chile, Dolmen Ediciones, 2000; etc..) (Voltar ao texto)
(5) Carnets. - 56e éd. - [Paris]: Gallimard-Nouvelle Revue Française, 1957. (Voltar ao texto)
(6) LAWRENCE, T.E. - Os sete pilares da sabedoria. 2ª ed. Mem Martins: Europa-América, 1996. (Voltar ao texto)

 
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