ENTREVISTA a Friedrich NIETZSCHE
Colecção Os filósofos em questão Entrevistas realizadas por Marc Sautet Edições Jean-Claude Lattès |
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Vida e obra de Friedrich Nietzsche |
A Filosofia e o Feminino será tema de Colóquio, a realizar a 26 e 27 de Novembro - 1998, promovido pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. As ideias/objectivos estão enunciados num dos projectos de investigação do Centro de Filosofia. Para a pré-reflexão, além deste texto, tem ainda n'O Canto uma entrevista a Platão. Sobre o tema, claro. | Nasceu em 1844 perto de Weimar. Filho, neto, sobrinho e sobrinho-neto de pastor. O seu pai, ligado à corte saxónica, morre em 1849, quando Friedrich acabara de completar 5 anos. Tem uma irmã, Elisabeth, e um irmão mais novo; mas este irmão morre pouco depois de seu pai. Bolseiro de uma das mais prestigiadas escolas alemãs (Pforta), Nietzsche torna-se bacharel em 1864. Destinado a tornar-se pastor, inicia estudos de teologia em Bona. Traiu a sua vocação em benefício das letras clássicas, dado que perdeu a fé. Estudante em Leipzig desde o Inverno de 1865, sente-se fascinado pela obra de Schopenhauer e declara-se seu discípulo. No entanto, a filologia apaixonava-o afincadamente: nomeado professor em Basileia em 1869, começa uma carreira universitária que vai assumir durante dez anos. Enfermeiro voluntário na frente franco-alemã no Outono de 1870, rapidamente se declara ardente defensor de Richard Wagner, tributando-lhe O Nascimento da Tragédia que publica em 1872, assim como as quatro Considerações Intempestivas escritas entre 1873 e 1876. Bastante desiludido, abandona Wagner publicando Humano demasiado Humano em 1878. Doente, abandona também o ensino. Bolseiro da Universidade de Basileia, leva uma vida errante entre os Alpes e a Itália. Publica O Viajante e a sua Sombra em 1879, Aurora em 1881, A Gaia Ciência em 1882, Assim Falava Zaratustra entre 1883 e 1885, Para além do bem e do mal em 1886, A genealogia da moral em 1887. Tenta elaborar uma obra prima (à volta do conceito de Wille zur Macht, a “vontade de poder”), mas apenas publica pequenos extractos: O Crepúsculo dos ídolos, O Anti-cristo. Ainda tem tempo de redigir a sua biografia em Ecce homo, antes de mergulhar no delírio, depois, o silêncio, a partir de 1889. É declarado louco. Inicialmente internado em Basileia, depois em Iena, ficando a cargo de sua mãe em Naumburg. Finalmente, a sua irmã passa a viver com ele em Weimar. As suas obras, e a sua personagem começam a conhecer um grande sucesso. Vêm visitá-lo de muito longe. Em 1900 passa então do silêncio à morte. |
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Marc Sautet: Meu caro Friedrich Nietzsche, sinto-me particularmente lisonjeado pelo facto de poder entrar em contacto com o seu espírito. Já há bastante tempo que me tenho debruçado sobre a sua obra, para verificar a pertinência dos julgamentos que os meus contemporâneos teciam sobre si e que eu nunca compreendi. Inicialmente perturbado com as minhas descobertas, a sua Obra abriu-me tantos horizontes que acabei por me sentir muito compensado no meu próprio trabalho. Não se admire demasiado pelo facto de eu lhe reservar este último assunto de conversa sobre a mulher. E depois, você tem tanto a dizer sobre o assunto! Nietzsche: “Buona femmina e mala femmina vuol bastone”. M.S.: Como diz? Nietzsche: Sachetti, Trecento novelle, 1399. M.S: Ah, estou a ver... é uma velha máxima retirada da recolha de novelas de Sachetti: “Quer ela seja boa quer seja má, a mulher merece o bastão”. O que significa: “Bate na tua mulher! Se tu não sabes porquê, ela saberá.” Mas, diga-me, devo eu considerar esta chalaça até ao segundo ou mesmo ao terceiro grau como o afirmam tantos dos seus admiradores desde a ponderação dos vossos propósitos, ou não? Nietzsche: Ver as últimas belezas de uma obra por maiores que sejam a nossa ciência e a nossa boa vontade, é tarefa para a qual elas não poderão bastar; são ainda necessários os mais felizes acasos, as coincidências mais raras, para afastar dos altos cumes o véu de nuvens e fazer brilhar o sol sobre eles. Para distinguir este quadro, não vos podeis contentar em estar no bom lugar: é preciso que a própria alma se tenha despojado também do véu das suas próprias alturas e que sinta a necessidade de uma expressão, de um símbolo exterior, para conhecer uma espécie de paragem, para ficar senhora de si própria. Mas tudo isto se encontra tão raramente reunido que estou muito tentado em crer que os mais altos cimos de toda a perfeição -- quer sejam numa obra, numa acção, num homem, ou na natureza -- estiveram escondidos até aqui, velados aos olhos da maior parte, mesmo dos melhores... e aquilo que se nos desvenda só se desvenda uma vez! Os Gregos pediam «duas e três vezes a beleza total»... É que tinham, ai de mim, uma excelente razão para assim se dirigirem aos deuses: a realidade não divina, recusa-nos o belo ou só no-lo dá uma única vez! Considero que o mundo, repleto de belas coisas, é, contudo, pobre, extremamente pobre em belos instantes e em revelações destas coisas. Mas talvez que seja esse o maior encanto da vida: carrega consigo, bordado a ouro, um véu prometedor, defensivo, pudico, trocista, complacente e tentador de belas possibilidades. Pois é assim mesmo a vida, a vida é mulher! (Gaia Ciência # 339, pp. 226 e 227). M.S: Estou a reconhecer um dos vossos aforismos da Gaia Ciência, intitulado, se bem me lembro, “Vita femina”. Mas a mensagem escapa-me. Qual a relação com Sachetti? Parece-me que você se encontra nos antípodas! Como aplicar bastonadas a uma criatura assombrosa, pudica, compadecida e sedutora, mesmo que ela seja irónica? A sombra de Nietzsche guarda silêncio, mas começa a desdobrar-se. E o seu duplo começa a falar: na mulher tudo é enigma, mas esse enigma tem uma solução -- essa solução é a maternidade. Para a mulher o homem é um meio: o fim é sempre o filho. O que é então a mulher para o homem? O homem digno desse nome apenas ama duas coisas: o perigo e o jogo. É por isso que ele deseja a mulher: o mais perigoso dos brinquedos. (Assim Falava Zaratustra: "Das Mulherzinhas Jovens e Velhas", p.69). M.S.: Assim Falava Zaratustra! Zaratustra (emergindo da sombra de Nietzsche): O homem deve ser educado para a guerra, a mulher para o repouso do guerreiro: fora disto tudo é loucura. O guerreiro não gosta dos frutos adocicados. É por isso que ele ama a mulher; há amargura mesmo na mais doce das mulheres. A mulher melhor do que o homem compreende as crianças, mas o homem é criança, mais do que a mulher. Todo o homem digno desse nome oculta em si uma criança que quer brincar. Assim, mulheres, cuidai de descobrir a criança escondida no homem. Que a mulher seja um brinquedo, puro e delicado semelhante ao diamante, brilhando com as virtudes de um mundo que não existe ainda. Fazei entrar no vosso amor o reflexo de uma estrela longínqua. Que a vossa esperança seja: “Possa eu dar à luz o super-homem!” Que vosso amor seja corajoso! Fortalecidas pelo vosso amor, atacai aquele que vos inspira medo. Ponde a vossa honra no vosso amor. A mulher, aliás, pouco sabe da honra. Mas a vossa honra está em amar mais do que sois amadas e em nunca ficardes em dívida. Que o homem tema a mulher que ama, pois ela não recuará perante sacrifício algum, e tudo o resto lhe parecerá sem valor. Que o homem tema a mulher que odeia, pois o homem, no fundo do seu coração, é maldoso, mas a mulher é malévola. (Qual é o homem que a mulher acima de tudo odeia? O punhal diz ao amante: “É a ti que, acima de tudo, odeio, pois me atrais mas não és suficientemente forte para me guardares junto de ti.” A felicidade do homem é dizer: “Eu quero”. A felicidade da mulher é poder dizer: “Ele quer”; assim pensa a mulher, quando por amor obedece. E a mulher tem necessidade de obedecer e de dar profundidade à sua superfície. A alma da mulher é superficial, como as águas de um lago sob a tempestade. Mas a alma do homem é profunda, a sua corrente ruge através de grutas subterrâneas: a mulher pressente essa força, mas não a compreende. (Assim Falava Zaratustra: "Das Mulherzinhas Jovens e Velhas", pp. 69 e 70). M.S.: Aí estão propósitos bem firmes e viris, caro Friedrich Nietzsche! Eles desafiam sem rodeios todos aqueles que aspiram à igualdade dos sexos. Mas eles provêm do seu duplo: cauciona-os ou rejeita-os? Esse mágico persa, a quem você dá a palavra, opõe-se radicalmente à pressão dos feministas: ele serve-vos de cavilha ou revela os seus pensamentos secretos? Nietzsche (recuando): Poderemos, nos
três ou quatro cantos civilizados da Europa, fazer das mulheres,
através de alguns séculos de educação, tudo
aquilo que quisermos, mesmo dos homens, não à verdade no
sentido sexual, mas sim em todos os outros sentidos. Sob uma tal influência,
elas irão receber um dia todas as virtudes e forças dos homens;
é verdade que além desta aquisição, receberão
também as suas fraquezas e os seus vícios; isto, como eu
disse, pode-se obter. Mas como suportaremos nós assim o estado de
transição amena, o qual poderá durar mais de um século,
durante o qual, as asneiras e as injustiças femininas, as suas antigas
ligações, pretenderão ainda arrebatar em toda a sua
aquisição, o aprendido? Isto será o tempo em que a
cólera constituirá a paixão propriamente viril, a
cólera de ver todas as artes e as ciências inundadas e obstruídas
por um diletantismo inaudito, a filosofia morrendo sob o fluxo de um galreio
a perder o espírito, a política mais fantasista e mais parcial
que nunca. A sociedade em plena decomposição, porque as guardiãs
da antiga moral tornar-se-ão ridículas aos seus próprios
olhos e esforçar-se-ão em todos os domínios excepto
na moral. Com efeito se as mulheres tivessem em relação à
moral o seu grande poder, a que deveriam elas agarrar-se para ganharem
uma tal medida de poder, uma vez que elas teriam desprezado a moral? (Humano
demasiado Humano # 425).
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Bibliografia
- Assim Falava Zaratustra. 4.ª ed. Lisboa : Ed. Presença e Liv. Martins Fontes : 1978
- Gaia Ciência. Lisboa : Guimarães & C.ª Editores, 1977
- Humain trop humain, extractos traduzidos da edição alemã DTV/De Gruyter, 1980.
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