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Este é um artigo
de opinião sobre a guerra na Europa
que teve início a
24/3/99 (ver o
restante dossier).
 
 
 

 

Suicidária Europa
Por EDUARDO LOURENÇO
Domingo, 28 de Março de 1999

Era natural que os membros da NATO que decidiram tratar a Jugoslávia de Slobodan Milosevic como Hitler tratou a Polónia e a mesma Jugoslávia há sessenta anos, bombardeando-a impunemente com os mais sofisticados meios, não o fizessem sem ter em conta os princípios que, segundo os direitos das gentes, costumam nortear os conflitos entre as nações. O facto de se tratar de países democráticos não só a isso os obrigava como era o fundamento da legitimação para um exercício de punição, único nos anais do pós-guerra do continente europeu, contra um país membro das Nações Unidas que até então não se colocara, como o Iraque, há oito anos, na posição de agressor de um país independente.

Procedendo como procedeu, a NATO instituiu-se juiz em causa própria evocando um direito de "ingerência humanitária", hipócrita de um ponto de vista ético e nulo politicamente. Deve haver, decerto, razões mais pertinentes para explicar, se não justificar o ataque monstruoso em curso. Quaisquer que sejam, contudo, não se auto-legitimaram, como no caso do Iraque, através de qualquer código de validade ou legalidade universal. No caso presente, o das Nações Unidas.

O acto de guerra que não ousou assumir-se como tal, é agora, na maior das precipitações e porventura mais por receio das consequências do que por acesso de má consciência, explicado pedagogicamente aos "cowboys" de Montana e do Texas. Com grande dispêndio de informação póstuma, convertido em geógrafo, Clinton tem passado estes dois dias a vender a sua cruzada humanitária em favor de um Kosovo que, na América, ninguém sabe onde fica, nem o que lá se passou, nem o que significa como História e objecto de paixões seculares. Quanto a Chirac, presidente de um país tradicionalmente aliado da Sérvia e que pouco se mexeu para impedir a tragédia da Bósnia, bem mais sinistra ainda que a do Kosovo, tem feito o que pode para justificar o que ele sabe dificilmente justificável. Só a Inglaterra ostenta friamente a sua convicção de estar num bom caminho, que mais do que ninguém ajudou a traçar.

Para uso interno e segundo a tradição americana, Clinton obteve o assentimento do Senado. É pena que nós não sejamos (ainda) americanos, e que a Constituição dos Estados Unidos não se tenha tornado já na tábua da lei da nova ordem mundial. Contornando pela segunda vez a única instância legitimadora de carácter internacional que existe para uma acção desta natureza, os Estados Unidos abrem um espaço de anomia politico-jurídica de vertiginosas consequências que não deixa augurar nada de bom para o milénio à vista. A menos que os interesses dos diversos actores do próximo futuro coincidam com os dos Estados Unidos e que nós estejamos já vivendo, de olhos abertos e nem sequer espantados, o harmonioso "fim da História..."

Assim será para a Europa se não tiver outro futuro, que o deste presente, ao mesmo tempo, impotente e informe. Neste momento tocamos as raias do absurdo: a NATO que durante meio século permitiu à Europa cultivar o seu jardim democrático e imaginar-se um espaço de paz, acorda fardada e armada até aos dentes para levar a cabo o mais duro golpe que o sonho de uma Europa unida sofreu até hoje. Mesmo com Milosevic de joelhos e com ele, um dos povos da Europa mais ciosos da sua dignidade, só comparável à Espanha, a Europa não sairá vencedora deste drama desmedido em relação às suas causas e, de qualquer modo, fruto maduro da total incapacidade da nova Europa de gerir as suas históricas e sinistras contradições.

Nada havia - nada há - numa lógica estritamente europeia ou na linha da construção europeia, que justificasse a engrenagem, na realidade fatal que conduziu a este espasmo guerreiro. Porventura nem o haverá na própria óptica americana, embora custe a crer que tão impressionante demonstração de força (essencialmente americana) não tenha ou não se vincule a qualquer organigrama dos estrategas do Pentágono. A agressividade sem precedentes do pálido Schwarzkopf da NATO que dirige as operações de cirurgia humanitária contra a Jugoslávia é mais do que eloquente. Estamos em pleno "O.K. Corral" no coração da Europa. Mas, ao fim e ao cabo não é a América que se compromete neste "western" de requintado humanismo. Com a Rússia entre parêntesis nada compromete a América. É a Europa, cruzada por conta de nada que possa passar por um objectivo indiscutivelmente válido, que está comprometida, esvaziada de si mesma, nesta infeliz orgia de mísseis e de bombas sobre o único povo europeu que teve a coragem de resistir de armas na mão ao exército mais terrível de todos os tempos.

O que a Jugoslávia de Milosevic fez na Bósnia ou estava fazendo no Kosovo, em função da sua lógica ultra-nacionalista, não pode merecer a aprovação de ninguém. Embora não sendo um tirano oriental à maneira de Saddam Hussein, Milosevic é um ditador astuto e implacável, pelo menos aos nossos olhos e aos de uma boa parte do seu povo. Mas não é possível admitir que se mobilize a NATO para solucionar ou pôr termo pelas armas a todos os entorses à norma democrática presentes ou futuros. Tanto mais que essa, na aparência humanística atitude, não tem um sujeito que a possa assumir senão na forma mais envergonhada e suicidária. A Europa não se "unifica" por ocasião desta cruzada aberrante, e politica e eticamente mais do que suspeita.

Qualquer que seja o resultado deste festival de tecnologia militar de ponta a Europa sairá dele mais dividida do que começou. O mal-estar político da França é mais que visível. O da Alemanha, não é preciso muito para o suscitar. Embora esta primeira parceria político-militar com a restante Europa, a normalize historicamente - e já é tempo - nem todas as feridas e complexos foram sarados. A Alemanha não precisava desta provação. Também a não podiam desejar nem a Itália, que quer que a deixem em paz e desejaria não ser na Europa a eterna "Little America", nem a Espanha que sabe o que significa ser objecto de intervenção estranha. Quanto a Portugal...

Há uma boa vintena de anos que a velha Europa se esforça por superar o seu imemorial estatuto de Frankenstein político. Não será com esta fuga para a frente que avançará um passo em direcção de si mesma. A Jugoslávia de Tito era, no seu género, uma miniatura de Frankenstein europeu, criado pelo malfadado Tratado de Versalhes. Mas tinha a vantagem de existir. A queda do muro de Berlim, que continua a cair para os dois lados da antiga cortina de ferro, alterou tudo. Uma Europa insensata, a mesma que agora se mobiliza para "salvar" o Kosovo inundando-o de fogo, achou bem arrancar uma a uma as peças do "puzzle" explosivo da Jugoslávia. O resultado está à vista. O nosso século sinistro, a alguns meses do seu termo, volve como o criminoso ao lugar do crime, aos Balcãs de trágica memória. Não para recomeçar um destino europeu, interrompido em Sarajevo há oitenta e cinco anos. Apenas para o confirmar na sua pulsão suicidária. Por conta de outrem.

Vence, 26 de Março de 1999 
 



 
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