Suicidária
Europa
Por
EDUARDO LOURENÇO
Domingo,
28 de Março de 1999
Era natural que os membros da NATO que decidiram tratar a Jugoslávia
de Slobodan Milosevic como Hitler tratou a Polónia e a mesma Jugoslávia
há sessenta anos, bombardeando-a impunemente com os mais sofisticados
meios, não o fizessem sem ter em conta os princípios que,
segundo os direitos das gentes, costumam nortear os conflitos entre as
nações. O facto de se tratar de países democráticos
não só a isso os obrigava como era o fundamento da legitimação
para um exercício de punição, único nos anais
do pós-guerra do continente europeu, contra um país membro
das Nações Unidas que até então não
se colocara, como o Iraque, há oito anos, na posição
de agressor de um país independente.
Procedendo como procedeu, a NATO instituiu-se juiz em causa própria
evocando um direito de "ingerência humanitária", hipócrita
de um ponto de vista ético e nulo politicamente. Deve haver, decerto,
razões mais pertinentes para explicar, se não justificar
o ataque monstruoso em curso. Quaisquer que sejam, contudo, não
se auto-legitimaram, como no caso do Iraque, através de qualquer
código de validade ou legalidade universal. No caso presente, o
das Nações Unidas.
O acto de guerra que não ousou assumir-se como tal, é
agora, na maior das precipitações e porventura mais por receio
das consequências do que por acesso de má consciência,
explicado pedagogicamente aos "cowboys" de Montana e do Texas. Com grande
dispêndio de informação póstuma, convertido
em geógrafo, Clinton tem passado estes dois dias a vender a sua
cruzada humanitária em favor de um Kosovo que, na América,
ninguém sabe onde fica, nem o que lá se passou, nem o que
significa como História e objecto de paixões seculares. Quanto
a Chirac, presidente de um país tradicionalmente aliado da Sérvia
e que pouco se mexeu para impedir a tragédia da Bósnia, bem
mais sinistra ainda que a do Kosovo, tem feito o que pode para justificar
o que ele sabe dificilmente justificável. Só a Inglaterra
ostenta friamente a sua convicção de estar num bom caminho,
que mais do que ninguém ajudou a traçar.
Para uso interno e segundo a tradição americana, Clinton
obteve o assentimento do Senado. É pena que nós não
sejamos (ainda) americanos, e que a Constituição dos Estados
Unidos não se tenha tornado já na tábua da lei da
nova ordem mundial. Contornando pela segunda vez a única instância
legitimadora de carácter internacional que existe para uma acção
desta natureza, os Estados Unidos abrem um espaço de anomia politico-jurídica
de vertiginosas consequências que não deixa augurar nada de
bom para o milénio à vista. A menos que os interesses dos
diversos actores do próximo futuro coincidam com os dos Estados
Unidos e que nós estejamos já vivendo, de olhos abertos e
nem sequer espantados, o harmonioso "fim da História..."
Assim será para a Europa se não tiver outro futuro, que
o deste presente, ao mesmo tempo, impotente e informe. Neste momento tocamos
as raias do absurdo: a NATO que durante meio século permitiu à
Europa cultivar o seu jardim democrático e imaginar-se um espaço
de paz, acorda fardada e armada até aos dentes para levar a cabo
o mais duro golpe que o sonho de uma Europa unida sofreu até hoje.
Mesmo com Milosevic de joelhos e com ele, um dos povos da Europa mais ciosos
da sua dignidade, só comparável à Espanha, a Europa
não sairá vencedora deste drama desmedido em relação
às suas causas e, de qualquer modo, fruto maduro da total incapacidade
da nova Europa de gerir as suas históricas e sinistras contradições.
Nada havia - nada há - numa lógica estritamente europeia
ou na linha da construção europeia, que justificasse a engrenagem,
na realidade fatal que conduziu a este espasmo guerreiro. Porventura nem
o haverá na própria óptica americana, embora custe
a crer que tão impressionante demonstração de força
(essencialmente americana) não tenha ou não se vincule a
qualquer organigrama dos estrategas do Pentágono. A agressividade
sem precedentes do pálido Schwarzkopf da NATO que dirige as operações
de cirurgia humanitária contra a Jugoslávia é mais
do que eloquente. Estamos em pleno "O.K. Corral" no coração
da Europa. Mas, ao fim e ao cabo não é a América que
se compromete neste "western" de requintado humanismo. Com a Rússia
entre parêntesis nada compromete a América. É a Europa,
cruzada por conta de nada que possa passar por um objectivo indiscutivelmente
válido, que está comprometida, esvaziada de si mesma, nesta
infeliz orgia de mísseis e de bombas sobre o único povo europeu
que teve a coragem de resistir de armas na mão ao exército
mais terrível de todos os tempos.
O que a Jugoslávia de Milosevic fez na Bósnia ou estava
fazendo no Kosovo, em função da sua lógica ultra-nacionalista,
não pode merecer a aprovação de ninguém. Embora
não sendo um tirano oriental à maneira de Saddam Hussein,
Milosevic é um ditador astuto e implacável, pelo menos aos
nossos olhos e aos de uma boa parte do seu povo. Mas não é
possível admitir que se mobilize a NATO para solucionar ou pôr
termo pelas armas a todos os entorses à norma democrática
presentes ou futuros. Tanto mais que essa, na aparência humanística
atitude, não tem um sujeito que a possa assumir senão na
forma mais envergonhada e suicidária. A Europa não se "unifica"
por ocasião desta cruzada aberrante, e politica e eticamente mais
do que suspeita.
Qualquer que seja o resultado deste festival de tecnologia militar de
ponta a Europa sairá dele mais dividida do que começou. O
mal-estar político da França é mais que visível.
O da Alemanha, não é preciso muito para o suscitar. Embora
esta primeira parceria político-militar com a restante Europa, a
normalize historicamente - e já é tempo - nem todas as feridas
e complexos foram sarados. A Alemanha não precisava desta provação.
Também a não podiam desejar nem a Itália, que quer
que a deixem em paz e desejaria não ser na Europa a eterna "Little
America", nem a Espanha que sabe o que significa ser objecto de intervenção
estranha. Quanto a Portugal...
Há uma boa vintena de anos que a velha Europa se esforça
por superar o seu imemorial estatuto de Frankenstein político. Não
será com esta fuga para a frente que avançará um passo
em direcção de si mesma. A Jugoslávia de Tito era,
no seu género, uma miniatura de Frankenstein europeu, criado pelo
malfadado Tratado de Versalhes. Mas tinha a vantagem de existir. A queda
do muro de Berlim, que continua a cair para os dois lados da antiga cortina
de ferro, alterou tudo. Uma Europa insensata, a mesma que agora se mobiliza
para "salvar" o Kosovo inundando-o de fogo, achou bem arrancar uma a uma
as peças do "puzzle" explosivo da Jugoslávia. O resultado
está à vista. O nosso século sinistro, a alguns meses
do seu termo, volve como o criminoso ao lugar do crime, aos Balcãs
de trágica memória. Não para recomeçar um destino
europeu, interrompido em Sarajevo há oitenta e cinco anos. Apenas
para o confirmar na sua pulsão suicidária. Por conta de outrem.
Vence, 26 de Março de 1999
|