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Ler Nietzsche é acima de tudo penetrar no impenetrável, naufragar na imensidão da sua faceta assaz recôndita, enfim, é deveras angustiante e doloroso embarcar num navio tão complexo e diversificado de pensamentos aparentemente desconexos e sem uma lógica de estruturação válida. Por isso, é indispensável, no decurso da leitura, ir como que “tridimensionalizando” as palavras, olhando para debaixo das mesmas e procurando acima de tudo alargar as perspectivações de significação e conotação de um discurso desta complexidade. Porque é indispensável que não nos esqueçamos que Nietzsche, além de filósofo, foi também filólogo, poeta de estilo “grandíloco” e, nesta medida, toda a sua filosofia é impregnada de uma linguagem significativa, rigorosa, precisa, mas concomitantemente apoteótica e sedutora. Por este motivo, muitas vezes se questiona se a sua influência advém do cerne da sua filosofia, de aspectos secundários ou periféricos da obra ou ainda do brilho do seu estilo, da forma aforística, ou seja, do poder de sedução dos meios estilísticos sugestivos. Neste contexto, A Origem da Tragédia, conquanto enquadrada no primeiro período do pensamento nietzscheano, o do pessimismo romântico, apresenta já uma grande parte das suas teses e concepções filosóficas. O seu horizonte, enquanto contraposição entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco na cultura grega e, através dela, na cultura ocidental, visa acima de tudo a valorização dessa oposição colaborante entre esses dois espíritos, que em conjunto constituem a sabedoria trágica. Simultaneamente, transportar essa forma dupla de encarar a realidade para a cultura contemporânea, único meio de a fazer regressar à visão trágica do homem no mundo, mediante a recuperação e conciliação destes dois espíritos (se quisermos podemos até ver em Einstein uma metamorfose do Apolo Clássico, e no movimento hippie, a forma moderna do espírito dionisíaco). Porém, esta intenção visa acima de tudo a implementação do dionisíaco, uma vez que o apolíneo, ligado à rigidez das formas e, se quisermos, ao optimismo racionalista socrático, fazia já parte da cultura ocidental. Nesta linha, podemos talvez concluir, por um lado, que estes dois espíritos formaram uma mera dicotomia, sem explicitação precisa do seu ponto de convergência e, por outro, que o dionisíaco foi valorizado em demasia. Repare-se que foi também a própria indefinição do conceito nietzscheano do fundo dionisíaco que tornou o nascimento da tragédia tão renitentemente opaco. De facto, no nosso mundo individualizado, é mais facilmente apreensível o apolíneo, sendo que o dionisíaco é mais “misticamente” pressentido do que conceptualmente compreendido. Mas convém, antes de mais, abordar a concepção artística, compreendida na definição do fenómeno trágico, que se desenvolve em torno do vector estético, encerrando o princípio ontológico fundamental -- “a metafísica de artista”. Assim, somos confrontados com duas forças distintas: a força apolínea, ligada ao deus Apolo, símbolo das artes plásticas (pintura, escultura, entre outras), da medida, da rigidez das formas, do sonho -- e a força dionisíaca, emanada do deus Diónisos, representante da embriaguez, do desrespeito pelas formas e medidas, que se realiza plenamente no espírito da música. Por conseguinte, Apolo é o deus do Princípio da Individuação e Diónisos, do encontro do homem consigo próprio e com a natureza, ou seja, do Uno Primordial. Deste modo, para intensificar o antagonismo estético entre estas duas forças ônticas (Apolo e Diónisos), Nietzsche passa da sua metaforização estética, à oposição psicológica (sonho / embriaguez -- o grande ímpeto da vida). Portanto, partindo do instinto estético do homem, este chegara aos dois princípios metafísicos do mundo. Agora, interpreta a própria arte do homem como um acontecimento cósmico. Contudo, num mundo trágico ou artístico, não há redenção, apenas lei inexorável do declínio -- “apenas como fenómenos estéticos se justificam eternamente a existência e o mundo”. Neste sentido, na ausência de uma espécie de “bela esperança socrática”, como uma possibilidade de dar sentido à existência, se pode gerar uma situação menos boa. Por outras palavras, com um toque de transcendência, se pode concluir que perdendo a tragédia, o homem perde inevitavelmente a fé ou crença na sua própria imortalidade. Todavia, Nietzsche, mediante este recurso à compreensão do espírito da antiga tragédia grega e do seu próprio declínio, procura essencialmente explicar as causas da decadência da cultura ocidental e fornecer-nos uma perspectiva axiológica peculiar que preenche o vector ético da obra. Então, a cultura ocidental contemporânea é, para este filósofo, a representação cabal de um estado de decadência inevitável e irreversível, decadência essa assente em três pilares fundamentais: (a) a religião e os seus valores, que, nascendo do medo e sendo uma vingança dos fracos sobre os fortes, acaba por matar o ser humano que há dentro de nós; (b) a moral, que cerca a nossa maneira de ser e de viver, que é “contra-natura” e que impõe leis contra os instintos primordiais do homem; (c) finalmente a razão, assente na tentativa de endeusamento da ciência (que na obra é vista abaixo da óptica da arte e da vida), no mecanicismo, positivismo, enfim, no estatismo do ser e consequente rejeição do instintivo e do biológico. Assim, Nietzsche desvaloriza a cultura grega socrático-platónica, de cariz optimista-racionalista e toda a cultura ocidental que nela radica, Sócrates e Eurípedes, o princípio da individuação, a serenidade apolínea e ao mesmo tempo critica o desprezo pelo mito, por parte da cultura moderna, situação essa que conduziu ao esquecimento da dimensão trágica do mundo e da vida. Ainda assim, talvez dois efeitos negativos se podem depreender desta perspectiva nietzscheana. Para além de corrermos o risco de cair num relativismo axiológico (pela negação dos sistemas de valores universais e intemporais estabelecidos pelos grandes sábios), podemos simultaneamente ficar encurralados num relativismo gnosiológico. Parece-me que a concepção valorativa para além do bem e do mal, deixa no ar a possibilidade de uma inexorável abrangência de interpretações valorativas, sem um quadro devidamente estruturado e definido e implica também uma demissão das responsabilidades pelo que quer que seja. Concomitantemente, ao ser o paradigma do filósofo da modernidade, na contestação radical do racionalismo da cultura ocidental, poderá ter estado na origem da vaga de relativismo do conhecimento que marcou as duas primeiras décadas do nosso século. Pois repare-se que o carácter criacionista da verdade leva inelutavelmente ao relativismo do conhecimento, embora se situe contra o determinismo. E será que não podemos ver em Nietzsche um decadente que não suporta a decadência e que em alternativa procura ser auto-terapeuta, não esquecendo obviamente que, numa concepção axiológica, o niilismo assume um autêntico efeito de “aspirina”, na lógica de decadência? Mas, o filósofo não se limita a um mero exame, a uma mera avaliação das causas e fases da decadência. Para além do diagnóstico, apresenta uma solução, um programa. Por isso, valoriza a sabedoria trágica, a afirmação da vida, Ésquilo e Sófocles, o espírito alemão expresso em Schopenhauer e Wagner, a música, o mito e a arte. Em suma, faz da cultura grega pré-socrática um protótipo ou antes um paradigma que deveria ser seguido pela cultura ocidental. E então entramos na temática do eterno retorno. Nietzsche defende um regresso do homem ao Uno Primordial, único meio de sair do sofrimento imposto pela individuação em que se encontra, em cujo ponto de chegada está a sabedoria ou espírito trágico, sendo ao mesmo tempo concretizado fisiologicamente na criança, símbolo da ingenuidade e acima de tudo, da possibilidade de começar de novo e de pôr em prática a plenitude das suas capacidades criativas. Porém este retorno será paulatino ou pelo contrário é algo repetível e constantemente encontrado depois de constantemente perdido? Ou não será antes um mero retorno individual, uma tarefa ou proposta particular de vida? Mas se é um constante regresso, não se estará a condenar o progresso, mesmo o progresso baseado em “dar um passo atrás para em seguida dar dois à frente”? Não negando que é importante começar de novo, receber um novo impulso, um novo bálsamo, este eterno começar não limita as perspectivas de mudança e a natural ambição do ser humano? E o avistar do devir universal, do eterno retorno, não matará a acção? A abordagem do regresso não deveria ser feita segundo uma espécie de libertação mais sábia e não ingénua? Portanto, este retorno traz consigo a criação do Super-Homem, o anúncio do Homem Novo, que se desenvolve ao longo do vector antropológico. Depois da negação da moral e religião judaico-cristã é, para Nietzsche, inevitável a morte de Deus, consequência de uma perda de fé, da substituição dos valores divinos pelos humanos e a ascensão de um novo homem, consciente da sua liberdade e espírito criador, da possibilidade de dar sentido à existência. O Homem supera-se a si mesmo, não em direcção à transcendência, mas rejeitando a dualidade corpo/alma, defendida tanto por Platão como por Descartes. O filósofo é pois coerente no âmbito da sua corrente terrena, ao admitir somente a existência do corpo. Este é antes de mais um homem visto no contexto da sua globalidade, uma junção do espírito ou força apolínea com a dionisíaca. O Super-Homem é então um misto de força e sabedoria, uma vez que este “tem necessidade do que tem de pior em si, se quiser alcançar o que tem de melhor”. Por último, será fundamental sublinhar algumas notas finais, lançando algumas interrogações e objectando determinados aspectos que parecem importantes na filosofia de Nietzsche e que se revelam cruciais no contexto da obra em questão. Deste modo, não nos podemos esquecer que Nietzsche colocou um ponto de interrogação de megalómanas dimensões no caminho percorrido pelo homem europeu, desde a antiguidade clássica até ao tempo hodierno. Neste sentido, apela a uma negação total do passado e a uma indispensável reconversão radical. Por este motivo, assume por inteiro o seu messianismo: “eu não sou um homem, sou dinamite”. Porém, esta dualidade crítica/messianismo lírico impele-o para um radicalismo extremo, tanto na negação como na afirmação e para uma filosofia que pode ser considerada ambígua. E ambígua porque ao longo da obra parece não existir um encadeamento lógico das ideias, dentro da formação e progressão de um pensamento, de uma doutrina. Este saltitar constante e as mudanças repentinas de posição podem pôr em causa a solidez dos seus pensamentos. Pelo contrário, o seu pensamento é intuitivo e não conceptual, pois não utiliza meios do pensamento abstracto do ser, uma vez que este pensa por rasgos, repentismos e não por uma forma laboriosa de exposição abstracta. Mas o filósofo pode ainda ser criticado pelo facto de ter negado as Ideias metafísicas, sem porventura as ter assimilado e de seguir Schopenhauer quase sem o pôr em questão. Revela-se, este espírito tão crítico, um surpreendente ingénuo no campo ontológico, das representações abstractas fundamentais do ser (ou pelo contrário terá sido consciente e propositadamente ingénuo, estando no encalço do Uno Primordial). E de facto, o ser é para o filósofo somente o conceito abstracto de uma quimera do espírito humano, de uma coisa do espírito ao qual não corresponde nenhuma realidade -- é uma coisa estática. Isto porque nunca se abalançou sequer a superar a dicotomia vulgar e a pensar a antítese do ser e do devir a partir do próprio problema do ser. Por seu turno, igualmente não soube conduzir a sua intuição do mundo como jogo do dionisíaco e apolíneo para além da metáfora poética. Mas e o próprio irracionalismo não irá de encontro ao individualismo? Por conseguinte, o aparecimento do Homem Novo é antes uma afirmação de uma identidade, de um indivíduo e implica consequentemente a elitização de uma ínfima parcela de seres humanos, parcela essa que se impõe pelas suas características superiores, na linha da teoria evolucionista de Darwin, da permanência como apanágio exclusivo dos mais fortes, dos melhores. Simultaneamente, a solução para a angústia e sofrimento inerente ao ser humano não passa única e exclusivamente pelo domínio do trágico. O optimismo racionalista socrático pode inclusive ser uma hipótese credível, o “homem teórico é também capaz de encontrar, como o artista, uma satisfação infinita em tudo quanto o cerca, e (... ) sente-se tão protegido como o artista.” Então e a defesa do modelo grego pré-socrático não esconde, por detrás desse carácter paradigmático, a incapacidade de Nietzsche fazer uso da tal criatividade para construir um arquétipo original, sem cair nesta espécie de mimetismo? Podemos pois concluir que nenhum filósofo escondeu tanto as suas reflexões sob tantos sofismas, como o fez Nietzsche. Contudo, não podemos esquecer que também a tragédia se define mais pela natureza das questões que coloca, do que pela natureza das respostas que fornece. Neste sentido, Nietzsche materializou o verdadeiro espírito da
tragédia.
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