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Reproduz-se, a seguir, um desenho original de Luis Manuel Gaspar 1989), concretização do projecto de frontispício colocado à margem da página 4 do manuscrito de "A Verdade", nestes termos: "Entregando-nos sempre ao prazer mais atroz. Ficará este verso sob a estampa, a qual representa um belo jovem nu enrabando uma rapariga igualmente nua. Com uma das mãos agarra-a pelos cabelos e vira-a para si, com a outra enterra-lhe um punhal no seio. Sob os seus pés estão as três pessoas da Santíssima Trindade e por baixo as frioleiras da religião. Em cima, a Natureza, numa glória, coroa-o de flores." ![]() NOTAS DE SADE
[1] Avaliam-se em mais de cinquenta milhões de indivíduos as perdas ocasionadas pelas guerras ou massacres de religião. Acaso valerá uma só de entre elas o sangue de uma ave? E não deverá a filosofia deitar mão a todas as armas para exterminar um Deus em prol do qual se imolam tantos seres que valem mais do que ele, pois não há seguramente nenhuma ideia mais estúpida, mais perigosa, mais extravagante, nada mais detestável do que um Deus? [2] A ideia
de um Deus só adveio aos homens quando eles temeram, ou tiveram
esperança. A isto apenas devemos atribuir a quase unanimidade dos
homens sobre tal quimera. Universalmente infeliz, o homem teve, em
todos os lugares e em todos os tempos, motivos de esperança e de
temor, e em toda a parte invocou a causa que o atormentava, como em toda
a parte esperou pelo fim dos seus males. Demasiado ignorante ou demasiado
crédulo para saber que a desdita inevitavelmente anexada à
sua existência outra causa não tinha do que a própria
natureza dessa existência, ao invocar o ser a quem atribuía
essa causa criou quimeras a que renunciou, logo que o estudo e a experiência
lhe fizeram sentir a sua inutilidade.
[3] O mais ligeiro estudo da natureza convence-nos da eternidade do movimento no seu seio e esse exame atento das suas leis mostra-nos que nada nela perece, que ela continuamente se regenera sob o efeito daquilo que nós julgamos que a ofende ou que parece destruir as suas obras. Ora, se as destruições lhe são necessárias, a morte torna-se uma palavra vazia de sentido: o que há são transmutações e não extinção. Ora a perpetuidade do movimento que existe nela deita abaixo toda a ideia de um motor. [*] À margem, uma variante que não foi riscada: Masturbar-me-ia sobre
a tua divindade,
[4] Entreguemo-nos
indistintamente a tudo quanto as paixões nos inspiram e seremos
sempre felizes. Desprezemos a opinião dos homens: ela é apenas
o fruto dos seus preconceitos. E quanto à nossa consciência,
nunca receemos a sua voz quando conseguimos entorpecê-la: o hábito
facilmente a reduzirá ao silêncio e não tardará
a metamorfosear em prazer as mais desagradáveis recordações.
A consciência não é o órgão da natureza;
apenas é, não nos ludibriemos, o órgão dos
preconceitos; vençamo-los e a consciência ficará às
nossas ordens. Interroguemos a consciência do selvagem, perguntemos-lhe
se ela lhe censura o que quer que seja. Quando ele mata o seu semelhante
e o devora, a natureza parece falar nele; a consciência está
muda. Ele concebe o que os parvos chamam crime e executa-o; tudo se cala,
tudo está em sossego, ele serviu a natureza mediante a acção
que mais agrada a essa natureza sanguinária cujo crime mantém
a energia e que só de crimes se alimenta.
Enrabar-te-ia se a tua fraca existência Oferecesse um cu à minha incontinência; Meu braço o coração te viria a arrancar Pra com o meu fundo horror melhor te penetrar. (Nota de G. Lely) [5] E como poderíamos nós ser culpados quando mais não fazemos do que obedecer às impressões da natureza? Os homens e as leis que são obra dos homens podem considerar-nos como tal, mas jamais a natureza. Só se lhe resistíssemos é que poderíamos a seus olhos ser culpados. É esse o único crime possível, o único de que devemos abster-nos. [6] Demonstrado como está que o crime lhe agrada, o homem que melhor a servirá será necessariamente aquele que der maior extensão ou gravidade aos seus crimes, devendo notar-se que a extensão lhe agrada ainda mais do que a gravidade, pois, apesar da diferença que os homens estabelecem, o assassínio e o parricidio são exactamente a mesma coisa a seus olhos. Mas o que tiver provocado mais desordens no universo agradar-lhe-á muito mais do que aquele que se tiver detido ao primeiro passo. Que esta verdade ponha à vontade os que dão rédea solta às suas paixões e que eles se convençam de que a melhor maneira de servir a natureza é multiplicar as suas perfídias. [7] Estes gostos só são verdadeiramente úteis e prezados pela natureza enquanto propagarem, enquanto espalharem aquilo a que os homens chamam a desordem. Quanto mais eles cortam, sapam, deterioram, destroem, mais preciosos lhe são. A eterna necessidade que ela tem de destruição serve de prova a esta asserção. Tratemos de destruir, pois, ou de impedir de nascer, se queremos ser úteis aos seus planos. Assim, o masturbador, o assassino, o infanticida, o incendiário, o sodomita, são homens conformes com os desejos dela, aqueles que, por conseguinte, devemos imitar. [8] Impormo-nos freios ou barreiras na via do crime seria visivelmente ultrapassar as leis da natureza que nos entrega indistintamente todos os seres de que nos rodeia, sem jamais abrir excepções, pois desconhece os nossos laços e cadeias, de modo que as pretensas destruições são nulas a seus olhos, que o irmão que dorme com a irmã não faz pior do que aquele que dorme com a amante e que o pai que imola o filho não ultraja mais a natureza do que o particular que assassina um desconhecido por esses caminhos. A seus olhos não há qualquer diferença dessas; o que ela quer é o crime; não interessa a mão que o comete ou o seio em que é cometido. |
Mas que quimera é esta, estéril e impotente,
Com que direito aquele que a mentira adstringe
Os belos anos vão-se, ela chama por nós;
(DE SADE - A Verdade e outros textos, p. 15-23) NB: constituem o livro A Verdade e outros textos, além do poema transcrito e um prólogo ao mesmo, 6 outros textos: Pensamento (traduzido, tal como os anteriores, por Luiza Neto Jorge), Diálogo entre um Padre e um Moribundo, Petição da Secção de Piques aos Representantes do Povo Francês, Fantasmas, Homenagem por Maurice Heine -- todos traduzidos por Manuel João Gomes, que escreve também Nem Deus nem Natureza. |
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