El País Digital
Domingo 
15 Novembro 
1998 - Nº 926
 
 
 

texto original
Bandeira espanhola
 
 
 

 

A razão segundo Wojtyla 

FERNANDO SAVATER 

 
 

Mesmo nós os que somos mais ariscos em relação ao seu alto magistério temos que reconhecer que o Papa João Paulo II é toda uma personagem ou, como dizem os franceses, a pensar no cenário da Comédie, "um carácter".

Neste mundo de miragens que se contagiam quase instantaneamente aos quatro cantos do Mundo, apenas têm verdadeiro interesse aqueles que não apenas se recusam a dobrar as suas manias aos ditames da moda como inclusive conseguem pôr na moda as suas manias. Karol Wojtyla pertence a esta raça de privilegiados, como demonstrou popularizando mediaticamente o anticomunismo, o “integrismo” sexual e sobretudo a própria autoridade do Sumo Pontífice, comprometida pela bonomia de João XXIII e as ambivalências hamletianas de Paulo VI.

Houve ocasiões em que interveio no curso dos acontecimentos históricos (favorecendo o derrube dos já interiormente decadentes regimes totalitários do leste europeu); outras vezes o azar em forma de praga mortífera sexualmente transmissível veio reforçar a sua condenação da grata libertinagem. Decidiu agora mais uma vez comprometer a Providência apostando num cavalo de pedigree ilustre, ainda que demasiado velho, que já não consegue senão vitórias à partida garantidas em contendas de pouca monta — mas que não consegue qualquer classificação em certâmenes de maior calibre. Refiro-me à filosofia.

Fides et ratio, a última encíclica, até agora, do papa Wojtyla (talvez destinada a ser a última em todos os sentidos, o seu testamento pastoral), é dedicada ao papel da filosofia no mundo actual e sobretudo dentro do que hoje se considera fé católica. Não pode dizer-se que os Papas se tenham consumido em documentos desta natureza acerca da filosofia: o último exemplo de género tão pouco frequente foi Aeterni patris, escrita por Leão XIII em 1879, segundo nos informa a encíclica actual; a verdade é que é compreensível tanta moderação, já que a filosofia raramente leva selo de urgência, tanto para os fiéis crentes como para quase todos os que não o são. Mas vê-se que o tema fascina João Paulo II. Para ele, "a filosofia é como o espelho em que se reflecte a cultura dos povos" e sem qualquer dúvida pode-se garantir que o homem é "naturalmente filósofo".

De modo que a filosofia merece uma encíclica, tal como em certos guias se informa que um restaurante ou uma paisagem “justificam um desvio”. O mínimo que nós, os profissionais desta corporação impossível, podemos fazer é tentar levar tão a sério a carta pastoral quanto ele leva a nossa disciplina.

Aliás, pode ser que esta aparente falta de oportunidade acerte mais uma vez com a próxima moda: não é para aí que apontam o êxito de obras de divulgação como O Mundo de Sofía, a proliferação em alguns países europeus de cafés filosóficos e até o êxito de seitas mais ou menos espiritualistas que despejam enigmas muito transcendentes por meio de meia dúzia de peremptórios apotegmas? A Igreja não deve ser apanhada por tais indícios com o passo desacertado, como alguns se empenham em dizer que o nosso Governo [espanhol] foi apanhado pelas tréguas da ETA...

Ainda que a palavra "filosofia" costume ser usada de modo lamentavelmente desadequado — "a filosofia do nosso departamento de vendas...", "a filosofia deste canal de televisão..."—, quando o Papa fala de filosofia refere-se à Grande Filosofia, a que fizeram Aristóteles, Tomás de Aquino e Kant. E mais: fala inclusive de uma filosofia de tamanho maior que o habitual na maioria dos departamentos universitários do ramo.

Logo na segunda página da sua encíclica determina sem hesitar que as perguntas verdadeiramente filosóficas investigam questões de calibre não inferior a "quem sou?, de onde venho?, para onde vou?", ainda que sob risco de receber como resposta aquela sandice do humorista Pierre Dac: "Eu sou eu, venho de minha casa e voltarei para ela o mais rápido possível".

Dados os actuais trejeitos posmodernos face a qualquer aspiração a certezas mais ambiciosas do que as da perspectiva pragmática ou o relativismo hermenêutico, não deixa um sujeito — pelo menos este sujeito abaixo assinado — de sentir certa simpatia pela cerrada defesa da Verdade com maiúscula e o rufo de timbales de que a Fides et ratio faz profissão. E ainda pela enérgica e sensata defesa de que não se deve confundir a legítima reivindicação do que é específico deste ou daquele pensamento local "com a ideia de que uma tradição cultural deva fechar-se na sua diferença e afirmar-se na sua oposição a outras tradições, o que é contrário à própria natureza do espírito humano". Uf! que alívio poder, finalmente, coincidir com o Papa em algo!

Infelizmente, o acordo não vai muito além disso. A partir desse momento, Wojtyla fecha-se na tradicional série de paralogismos que converte a reconciliação entre e razão num pobre arremedo de harmonia porque o que se reclama antes de mais é a submissão da segunda à primeira.

O homem deve procurar resposta para os mistérios da existência, mas só a pode encontrar num mistério ainda maior, o da encarnação do Verbo Divino. Há que tentar esclarecer o obscuro pelo recurso ao que é ainda mais obscuro: o contrário revela uma atitude arrogante, reducionista, um excesso de confiança nas suas próprias forças, característico do "excessivo espírito racionalista de alguns pensadores" (sic).

A indagação filosófica está muito bem desde que desemboque suficientemente desarmada no acatamento do que a fé já conhece pelos seus próprios meios: a grande Verdade é sempre é "ulterior" e, portanto, "não pode encontrar solução senão no absoluto", terreno no qual a fé se move com a agilidade que o ininteligível propicia.

Liberdade de pensamento? É a fé que permite a cada um exprimir a sua própria liberdade porque "a liberdade não se realiza nas opções contra Deus". À razão filosófica, isso sim, resta-lhe a tarefa importante de "ilustrar conteúdos filosóficos como, por exemplo, a lingugem sobre Deus, as relações pessoais no seio da Trindade, a acção criadora de Deus no mundo, a relação entre Deus e o homem, e a identidade de Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem". Ao empreender essas tarefas e outras não menores, deve evitar cair em vícios como o "historicismo, o modernismo, o cientismo, o pragmatismo, o niilismo e a posmodernidade". Postas assim as coisas, não seria melhor limitar-nos a perguntar ao pároco, para não cairmos em enganos?

Ponhamos um exemplo histórico de tal erro: quando em 1790 a Assembleia  da França revolucionária proclamou os princípios filosóficos da Declaração dos Direitos do Homem, foi explicitamente condenada por Pio VI (10 de Março e 13 de Abril de 1791), uma vez que "o poder não deriva de um contrato social, mas do próprio Deus, garante do Bem e da Justo". Estão a ver como o melhor é não sair dos caminhos trilhados e perguntar directamente ao Papa, ainda que, como no caso dos direitos humanos, tenha levado um par de séculos a conceder o nihil obstat?

A asseveração de Fides et ratio que necessita de mais fé e menos razão para ser aceite aparece na página 20: "A história é o lugar onde podemos constatar a acção de Deus a favor da humanidade". Da Natureza não se fala, mas, em contrapartida, tem cabimento supor que uma observação como esta de John Stuart Mill — "nem sequer na mais distorcida e amanhada teoria do bem que alguma vez tenha podido ser concebida pelo fanatismo religioso ou filosófico pode conseguir-se que a Natureza tenha semelhança com a obra de um Ser simultaneamente bom e omnipotente"—, por muita razão que pareça ter e que o furacão Mitch lhe conceda, carece da fé necessária para ser minimamente aceitável.

De modo que… não! Em fim de contas, João Paulo II também não é o influente amigo da filosofia pelo qual nós, os membros da corporação, esperamos suspirando. Receio que continuemos tão sós como antes.


 
(Tradução de  A.R.Gomes)

 
Página inicial d' O Canto da Filosofia
Com Prazo de Validade