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Com o presente texto destacamos o 1º Dia Mundial da Voz, a 16/Abr/2003. É extraído de Voz e relação educativa, p. 25-29 (ver dados bibliográficos aqui).


 
 

 

VOZ-CORPO-LINGUAGEM
     

Segundo Rosolato [Michel Bernard, in L'expressivité du corps, Ed. La Recherche en danse/Ed. Chiron, 1986, pág. 321] «a voz é o maior poder de emanação do corpo», sendo simultaneamente a «negação dos limites visíveis e tangíveis do Corpo» e a «negação da intencionalidade significante».

Na sequência deste enunciado parece-nos oportuno colocar os seguintes problemas:

— A voz gozará de autonomia relativamente ao corpo e à linguagem?

— Como se transfere para a voz a expressão imanente da palavra?

Experimentemos dizer um nome conotado afectivamente e repeti-lo (de olhos fechados), indefinidamente até perder toda a referência ao seu sentido exterior. Este exercício, denominado «hipnotizar-se com a própria voz», que supomos ser executado com alguma frequência por actores, poderá levar no limite ao auto-hipnotismo. Perdidas a acentuação, a articulação, o sentido, restará por fim um som «puro». O prazer da sensação da ressonância por todo ou quase todo o corpo de um som produzido pessoalmente, independentemente de todo e qualquer significado, está ligado a uma intimidade primitiva, a uma apropriação dessa intimidade e simultaneamente a uma actualidade e sensação de perda dessa produção sonora que, constituindo um elemento de produção individual é, ao mesmo tempo, a síntese do ser e da sua história.

Talvez nunca tenhamos pensado na voz como elemento da nossa humanidade pelo facto de, desde muito cedo, ela ter uma função muito determinada — servir a linguagem. Mas é possível e desejável exercitar a voz na sua «simbiose com a linguagem», fornecendo esta uma identidade, inteligibilidade, e forma à voz produzida que, por sua vez, resultado de um «investimento pulsional e afectivo», lhe dá a sua «energia vital» tomando-a audível.

É também possível e saudável caminhar num campo de abstracção desligando a voz duma mensagem semântica, experimentando a riqueza espectral de timbres, de intensidades, de ritmos, de alternâncias sons-silêncios, pelo puro prazer da produção sonora que aqui é privilegiada relativamente à inteligibilidade da mensagem. A voz assim produzida terá conseguido autonomizar-se da linguagem, mas não do corpo responsável pela sua exteriorização.

No entanto é interessante recordar que, entre as várias metáforas usadas para ilustrar uma técnica de canto — «cantare sopra il soffio» — se imagina possível desprezar o sopro, como se a sonorização tivesse um carácter imaterial e como tal fosse sentida. Sabemos que os cantores vivenciam esta «ilusão sensorial».

A linguagem é induzida essencialmente pelo «trabalho» do ouvido. O aperfeiçoamento da escuta e a sua íntima ligação ao cérebro vai permitir um trabalho intelectual de armazenamento e assimilação de factos e conceitos por absorção de «linguagens» do mundo exterior e do mundo interior do sujeito.

A voz vai constituir o suporte material da verbalização do pensamento e da expressão ligada à palavra. Aceitamos o ponto de vista de A. Tomatis segundo o qual «a palavra é o mais aperfeiçoado dos nossos condicionamentos gestuais» [Tomatis, Alfred, L'oreille et le language. Ed. Seuil, 1978, pág. 78.] e reconhecemos a dificuldade de desligar os nossos comportamentos ditos não verbais das palavras que os referenciam. O conjunto de atitudes corporais — mímicas, gestos, vocalizações — quer procurem uma existência autónoma, quer pelo contrário se pretendam submissas, estão carregadas de referências ao verbal. Neste sentido consideramos pertinentes as observações de Michel Bernard que transcrevemos:

«Precisamos agora denunciar [...] a ficção, a ilusão desta ausência do verbo na gestualidade [...]. Todo o nosso corpo é programado no processo pulsional da dinâmica vocal do sentido proferido pelo verbo, assim como inversamente [...], o nosso verbo, tão abstracto, tão deserogeneizado que possa parecer, não somente supõe esta dinâmica, mas enuncia e desenha na sua literalidade e no seu sentido a procura de fruição do nosso corpo sobre o qual, aliás, não deixa de ressoar directa e indirectamente» . [Michel Bemard, ob. cit., pág. 369. «II nous faut maintenant dénoncer [...] Ia fiction, l'illusion de cette absence du verbe dans Ia gestualité [...]. Tout notre corps est ordonné au procès pulsionnel de Ia dynamique vocale du sens proféré par le verbe toute comme inversement [...], notre verbe, si abstrait, si désérogénéisé, qu'il puisse paraître, non seulement suppose celle-ci, mais énonce et dessine dans sa littéralité et son sens Ia recherche de jouissance de notre corps sur lequel, par ailleurs, il ne cesse de retenir directemente et indirectement». Transcrevemos o texto original dada a dificuldade da sua tradução.


Em todo e qualquer acto de fala há uma escolha das palavras a empregar e uma utilização dos elementos prosódicos — entoação, acentos de intensidade, ritmo, pausas — que para cada sujeito parecerão ser os mais adequados ou os habituais. O estilo de cada um passa pela complexidade de combinações das diferentes variáveis referidas.

Os diferentes registos expressivos vão depender das matérias de que se trata, dos interlocutores e do emprego mais ou menos diversificado das qualidades vocais acústicas, humanas e de estilo.

A linguagem «expressiva» pode ser utilizada tanto para mascarar como para servir a natureza pulsional do sujeito e a sua produção gestual e vocal; há portanto que tomar em atenção que a voz é (demasiadamente) um produto da nossa intimidade podendo trair o conteúdo do discurso.

É conhecido que emoções fortes não podem passar despercebidas porque geram grandes tensões em zonas musculares (pescoço, ombros, cabeça) que, por sua vez, afectam a ressonância da voz e a sua normal colocação.

Apesar de não acreditarmos no rigor dos «aparelhos detectores de mentiras» acontece no entanto que, por exemplo, o travar do impulso para dizer a verdade cria, frequentemente, uma voz plana, menos vibrante, com uma emissão mais lenta ou menos contínua.

Toda a voz que soa desequilibrada é indicadora de problemas de personalidade. Apesar da «máscara» também se tornar extensiva à voz há certos elementos vocais, particularmente os que se associam a características fisiológicas, hereditárias e culturais que permanecem intocáveis.

Sobrepondo-se a um largo campo de verbalização ou apresentando-se entre as unidades de palavra, têm existência as produções para-verbais (muitas delas vocais — entre elas a variação tonal, o seu controlo, a articulação, etc). A medida do seu carácter significante é complexa porque dependente de muitos factores, entre eles o contexto, o canal de comunicação, a mensagem, a realidade psico-fisiológica do Emissor, etc., não sendo suficiente uma análise ao nível lexical, linguístico ou sociológico.

Considerar que os gestos e outros movimentos expressivos são resíduos de animalidade no Homem — numa perspectiva Darwinista — ou considerar que são elementos signifícantes, «linguagens do corpo» edificando-se num «sistema estruturado por regras» correspondentes à «articulação de diferentes níveis de organização» — na perspectiva de Wundt e Freud por exemplo, não constitui para nós um problema; sabemos que as concepções biológicas e linguísticas se chocam neste campo, mas o que nos importa é que os sinais corporais existem interligando-se aos fenómenos de linguagem de uma forma mais ou menos ajustada e que a Voz constitui um elemento (ou síntese) aglutinador destes movimentos expressivos verbal e não verbal.

Investigar um encaixe mais perfeito e mais autêntico destas estruturas expressivas em que a «voz» não exista como «servidora» de nenhum deles mas seja mais «ela própria» na união do corpo e da «linguagem» constitui um objectivo de um «trabalho» da voz.

Comunicar, auto-conhecer-se, provocar(-se) prazer, envolver(-se) são também objectivos que se associam aos actos de fala.

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