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VOZ-CORPO-LINGUAGEM
Segundo Rosolato [Michel Bernard, in L'expressivité du corps, Ed. La Recherche en danse/Ed. Chiron, 1986, pág. 321] «a voz é o maior poder de emanação do corpo», sendo simultaneamente a «negação dos limites visíveis e tangíveis do Corpo» e a «negação da intencionalidade significante». Na sequência deste enunciado parece-nos oportuno colocar os seguintes problemas: A voz gozará de autonomia relativamente ao corpo e à linguagem? Como se transfere para a voz a expressão imanente da palavra? Experimentemos dizer um nome conotado afectivamente e repeti-lo (de olhos fechados), indefinidamente até perder toda a referência ao seu sentido exterior. Este exercício, denominado «hipnotizar-se com a própria voz», que supomos ser executado com alguma frequência por actores, poderá levar no limite ao auto-hipnotismo. Perdidas a acentuação, a articulação, o sentido, restará por fim um som «puro». O prazer da sensação da ressonância por todo ou quase todo o corpo de um som produzido pessoalmente, independentemente de todo e qualquer significado, está ligado a uma intimidade primitiva, a uma apropriação dessa intimidade e simultaneamente a uma actualidade e sensação de perda dessa produção sonora que, constituindo um elemento de produção individual é, ao mesmo tempo, a síntese do ser e da sua história. Talvez nunca tenhamos pensado na voz como elemento da nossa humanidade pelo facto de, desde muito cedo, ela ter uma função muito determinada servir a linguagem. Mas é possível e desejável exercitar a voz na sua «simbiose com a linguagem», fornecendo esta uma identidade, inteligibilidade, e forma à voz produzida que, por sua vez, resultado de um «investimento pulsional e afectivo», lhe dá a sua «energia vital» tomando-a audível. É também possível e saudável caminhar num campo de abstracção desligando a voz duma mensagem semântica, experimentando a riqueza espectral de timbres, de intensidades, de ritmos, de alternâncias sons-silêncios, pelo puro prazer da produção sonora que aqui é privilegiada relativamente à inteligibilidade da mensagem. A voz assim produzida terá conseguido autonomizar-se da linguagem, mas não do corpo responsável pela sua exteriorização. No entanto é interessante recordar que, entre as várias metáforas usadas para ilustrar uma técnica de canto «cantare sopra il soffio» se imagina possível desprezar o sopro, como se a sonorização tivesse um carácter imaterial e como tal fosse sentida. Sabemos que os cantores vivenciam esta «ilusão sensorial». A linguagem é induzida essencialmente pelo «trabalho» do ouvido. O aperfeiçoamento da escuta e a sua íntima ligação ao cérebro vai permitir um trabalho intelectual de armazenamento e assimilação de factos e conceitos por absorção de «linguagens» do mundo exterior e do mundo interior do sujeito. A voz vai constituir o suporte material da verbalização do pensamento e da expressão ligada à palavra. Aceitamos o ponto de vista de A. Tomatis segundo o qual «a palavra é o mais aperfeiçoado dos nossos condicionamentos gestuais» [Tomatis, Alfred, L'oreille et le language. Ed. Seuil, 1978, pág. 78.] e reconhecemos a dificuldade de desligar os nossos comportamentos ditos não verbais das palavras que os referenciam. O conjunto de atitudes corporais mímicas, gestos, vocalizações quer procurem uma existência autónoma, quer pelo contrário se pretendam submissas, estão carregadas de referências ao verbal. Neste sentido consideramos pertinentes as observações de Michel Bernard que transcrevemos:
Os diferentes registos expressivos vão depender das matérias de que se trata, dos interlocutores e do emprego mais ou menos diversificado das qualidades vocais acústicas, humanas e de estilo. A linguagem «expressiva» pode ser utilizada tanto para mascarar como para servir a natureza pulsional do sujeito e a sua produção gestual e vocal; há portanto que tomar em atenção que a voz é (demasiadamente) um produto da nossa intimidade podendo trair o conteúdo do discurso. É conhecido que emoções fortes não podem
passar despercebidas porque geram grandes tensões em zonas musculares
(pescoço, ombros, cabeça) que, por sua vez, afectam a
ressonância da voz e a sua normal colocação. Toda a voz que soa desequilibrada é indicadora de problemas de personalidade. Apesar da «máscara» também se tornar extensiva à voz há certos elementos vocais, particularmente os que se associam a características fisiológicas, hereditárias e culturais que permanecem intocáveis. Sobrepondo-se a um largo campo de verbalização ou apresentando-se entre as unidades de palavra, têm existência as produções para-verbais (muitas delas vocais entre elas a variação tonal, o seu controlo, a articulação, etc). A medida do seu carácter significante é complexa porque dependente de muitos factores, entre eles o contexto, o canal de comunicação, a mensagem, a realidade psico-fisiológica do Emissor, etc., não sendo suficiente uma análise ao nível lexical, linguístico ou sociológico. Considerar que os gestos e outros movimentos expressivos são resíduos de animalidade no Homem numa perspectiva Darwinista ou considerar que são elementos signifícantes, «linguagens do corpo» edificando-se num «sistema estruturado por regras» correspondentes à «articulação de diferentes níveis de organização» na perspectiva de Wundt e Freud por exemplo, não constitui para nós um problema; sabemos que as concepções biológicas e linguísticas se chocam neste campo, mas o que nos importa é que os sinais corporais existem interligando-se aos fenómenos de linguagem de uma forma mais ou menos ajustada e que a Voz constitui um elemento (ou síntese) aglutinador destes movimentos expressivos verbal e não verbal. Investigar um encaixe mais perfeito e mais autêntico destas estruturas expressivas em que a «voz» não exista como «servidora» de nenhum deles mas seja mais «ela própria» na união do corpo e da «linguagem» constitui um objectivo de um «trabalho» da voz. Comunicar, auto-conhecer-se, provocar(-se) prazer, envolver(-se) são também objectivos que se associam aos actos de fala.
Abril/2003 |
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