Garrett
@ Público 4/2/99






















"Uma viagem de Lisboa a Santarém pelo Tejo acima foi a fonte de inspiração aproveitada por Almeida Garrett para descrever paisagens, monumentos, episódios e costumes, encontrados ou vividos no caminho. Rica em narrativas de evocações históricas e deliciosos quadros da paisagem ribatejana, esta obra [Viagens na Minha Terra] afirma-se profundamente nacional, pela delicada expressão de sentimentos, pela suavidade do traço com que descreve o vale de Santarém, e pelo encanto da novelazinha da Menina dos Rouxinóis, onde surge a presença da Joaninha com o esplendor dos seus olhos verdes..."

(Nota a uma edição das Viagens na Minha Terra produzida por Livraria Civilização Editora para os Hipermercados Continente e Modelo).
 
 

Almeida Garrett
Garrett por Almada
@ DN 4/2/99

ALMEIDA GARRETT - Viagens na Minha Terra

CAPÍTULO IV
 
 
 
 
 


De como o A. foi pensando e divagando, e em que pensava e divagava ele, no caminho da vila da Azambuja até o famoso pinhal do mesmo nome. — Do poeta grego e filósofo Démades, e do poeta e filósofo inglês Addison, da casaca de peneiros e do pálio ateniense, e de outros importantes assuntos em que o A. quis mostrar a sua profunda erudição. — Discute-se a matéria gravíssima se é necessário que um ministro de Estado seja ignorante e leigarraz. — Admiráveis reflexões de ziguezague, em que se trata de re política e de re amatoria. — Descobre-se por fim que o A. estivera a sonhar em todo este capítulo, e pede-se ao leitor benévolo que volte a folha e passe ao seguinte.











Eu darei sempre o primeiro lugar à modéstia entre todas as belas qualidades. — Ainda sobre a inocência? — Ainda, sim. A inocência basta uma falta para a perder; da modéstia só culpas graves, só crimes verdadeiros podem privar. Um acidente, um acaso podem destruir aquela; a esta só uma acção própria, determinada e voluntária. 

Bem me lembram ainda os dois versos do poeta Démades, que são forte argumento de autoridade contra a minha teoria; cuidei que tinha mais infeliz memória. Hei-de pô-los aqui, para que não falte a esta grande obra das minhas viagens o mérito da erudição, e lhe não chamem livrinho da moda. Estou resolvido a fazer a minha reputação com este livro: 

[dois versos no original grego, que por dificuldades de transcrição se omitem. Fica apenas a tradução, do próprio A., obviamente:

Da beleza e virtude é a cidadela
A inocência primeiro – e depois ela. 
Mas a autoridade responde-se com autoridade, e a texto com texto. E eu trago aqui na algibeira o meu Addison — um dos poucos livros que não largo nunca — e atiro com o filósofo inglês ao filósofo grego e fico triunfante; porque Addison não põe nada acima da modéstia, e Addison, apesar da sua casaca de peneiros, é muito maior filósofo do que foi Démades com a sua túnica e o seu pálio ateniense. 

O erudito e amável leitor escapará desta vez a mais citações: compre um Spectator, que é livro sem que se não pode estar, e veja passim

Eu gosto, bem se vê, de ir ao encontro das objecções que me podem fazer; lembro-as eu mesmo, para que depois me não digam: — Ah! ah! Vinha a ver se pegava! — Não, senhor; não é o meu género esse. 

Francamente, pois... eis aí o que poderão dizer: — Addison foi secretário de Estado, e então... — Então o quê? Não concebem um secretário de Estado filósofo, um ministro poeta, escritor elegante, cheio de graça e de talento? Não; bem vejo que não: têm a ideia fixa de que um ministro de Estado há-de ser por força algum sensaborão, malcriado e petulante. Mas isto é nos países adiantados em que já é indiferente para a coisa pública, em que povo nem príncipe lhes não importa já em que mãos se entregam, a que cabeças se confiam. Em Inglaterra não é assim, nem era assim no tempo de Addison. Fossem lá à rainha Ana, que deixasse entrar no seu gabinete quatro calças de coiro sem criação nem instrução, e não mais senão só porque este sabia jogar nos fundos, aquele tinha boas tretas para o canvassing de umas eleições, o outro era figura importante no Freemason’s hall

Já se vê que em nada disto há a mínima alusão ao feliz sistema que nos rege; estou falando de modéstia, e nós vivemos em Portugal. 

A modéstia, contudo, quando é excessiva e se aproxima do acanhamento, do que no mundo se chama falta de uso — pode ser num homem quase defeito inteiro. Na mulher é sempre virtude, realce de beleza às formosas, disfarce de fealdade às que o não são. 

Por mim, não conheço objecto mais lindo em toda a natureza, mais feiticeiro, mais capaz de arrebatar o espirito e inflamar o coração, do que é uma jovem donzela, quando a modéstia lhe faz subir o rubor às faces, e o pejo lhe carrega brandamente nas pálpebras... Pouco lume que tenha nos olhos, pouco regular que seja o semblante, menos airosa que seja a figura, parecer-vos-á nesse momento um anjo. E anjo é a virgem modesta que traz no rosto debuxado sempre um céu de virtudes... — De alguma beleza sei eu cujos olhos cor da noite ou de safira (Dialec. Poet. Vet.), cujas faces de leite e rosas, dentes de pérolas, colo de marfim, tranças de ébano (a alusão é sortida, há onde escolher) davam larga matéria a boas grosas de sonetos — no antigo regime dos sonetos — e hoje inspirariam miríades de canções descabeladas e vaporosas, choradas na harpa ou gemidas no alaúde. Contanto que não seja lira, que é clássico, todo o instrumento, inclusivamente a bandurra, é igual diante da lei romântica. 

Ora, pois, mas a tal beleza, por certo ar à lamoda, certo não sei quê de atrevido nos olhos, de deslavado na cara, e de descomposto nos ademanes, perde toda a graça e quase a própria formosura de que a dotara a natureza... 

Vede-me aqueles lábios de carmim. Há Maio florido que tão lindo botão de rosa apresente ao alvorecer da madrugada?... Mas olhai agora como o riso da malícia lho desfolha tão feiamente numa desconcertada risada... 

Desvaneceu-se o prestígio. 

Não havia moço nem velho, homem do mundo ou sábio de gabinete que não desse metade dos seus prazeres, dos seus livros, da sua vida, por um só beijo daquela boca. Agora talvez nem repetidos avances lhe façam obter um namorante de profissão e oficio... E há-de pagá-lo adiantado, e por que preço! 

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Mas o que terá tudo isto com a jornada da Azambuja ao Cartaxo? A mais íntima e verdadeira relação que é passível. É que a pensar ou a sonhar nestas coisas fui eu todo o caminho, até me achar no meio do pinhal da Azambuja. 

Aí parámos, e acordei eu. 

Sou sujeito a estas distracções, a este sonhar acordado. Que lhe hei-de eu fazer?' Andando, falando, escrevendo, sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de sonâmbulo, de soníloquo, de... :Não, fica :melhor com seu ar de grego (hoje tenho a bossa helénica num estado de tumescência pasmosa! ) ; digamos sonílogo, sonígrafo... 

A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar estas folhas, e passar ao capítulo seguinte, que é outra casta de capítulo. 



 
mocho, sνmbolo da Filosofia

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