1ª PARTE - Introdução
Natureza da disciplina de Filosofia
e sua integração no currículo

 

Do Ensino Secundário

Os documentos de referência, nacionais e internacionais,

    [M E (1997). Desenvolver, Consolidar, Orientar. Documento Orientador das Políticas para o Ensino Secundário. Lisboa.; M E (1998). Ensino Secundário - Ajustar para Consolidar. Lisboa.; OCDE (1994). Redéfinir le curriculum: un enseignement pour le XXI e siècle.; Droit, R.-P. (1995). Philosophie et démocratie dans le monde - une enquête de l'UNESCO. Paris: UNESCO]

produzidos durante a década de 90, acerca do ensino secundário, convergem em dois aspectos:

  • o momento presente exige uma redefinição do papel e do estatuto de tal nível de ensino, de maneira a que se clarifiquem as suas finalidades e objectivos e se identifique a sua função própria;
  • é fundamental que este grau de ensino se expanda e generalize, assumindo ao mesmo tempo uma vocação educativa que coloque a questão das atitudes e dos valores como matriz geradora do seu funcionamento, contribuindo para a formação da consciência cívica da juventude, despertando-lhe o sentido da cidadania, não só no âmbito particular da vida dentro de uma comunidade, mas também no âmbito mais geral de pertença a um Universo, do qual todos dependemos.

Neste contexto, o Relatório Delors

[Delors, J. (dir.). (1996). Educação - Um Tesouro a Descobrir. Porto: Asa.]

ao apresentar o que designava como pilares da educação, para além dos três princípios já clássicos - aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser - enunciava um quarto princípio, de valor fulcral para a manutenção do desenvolvimento da vida humana, a saber: aprender a viver juntos. Para a Comissão responsável pelo referido Relatório, este novo pilar educativo corresponde ao reconhecimento da necessidade de formar as jovens e os jovens no horizonte da compreensão da interdependência mútua da humanidade e da identificação do valor próprio de cada estrutura comunitária e cultural. Assim, saber o valor das diferenças e do seu contributo específico para o nosso património comum é visto como o imperativo que sustentará o nosso futuro possível.

Esta concepção investe o ensino secundário da responsabilidade de contribuir, de modo sistemático, para a maturidade pessoal e social de cada jovem, desenvolvendo, neles e nelas, o sentido de si mesmo, embora em diálogo com uma alteridade de igual valor, e no quadro de um Mundo, constituído por uma rede de relações e dependências recíprocas.

Da Filosofia no Ensino Secundário

O mesmo Relatório Delors reconhece a importância da disciplina de Filosofia - em conjunto com a História - na configuração deste novo imperativo educativo que o aprender a viver juntos consubstancia; ambas as disciplinas poderão assumir um importante papel na constituição de uma consciência capaz de discernir o valor da abertura e da integração e também de reinventar novas formas de vida em comum.

No que respeita à Filosofia, a UNESCO vem solicitando a todos os Estados a introdução ou o alargamento da formação filosófica a toda a educação secundária, considerando substantivo o vínculo entre Filosofia e Democracia, entre Filosofia e Cidadania.

[Droit, R.-P. (1995). Philosophie et démocratie dans le monde - une enquête de l'UNESCO (p. 105). Paris: UNESCO.]

Esta aproximação entre a Filosofia e a manutenção e consolidação da vida democrática tem a ver com o reconhecimento do valor da aprendizagem desta disciplina não apenas no processo do saber de si, de cada um, como também no aperfeiçoamento do seu discernimento cognitivo e ético, contribuindo, assim, directamente, para a capacitação de cada jovem para o juízo crítico e participativo da vida comunitária.

Este apelo à inserção sistemática da Filosofia no secundário releva de uma concepção desta disciplina de que decorrem três funções essenciais:

  • "permitir a cada um aperfeiçoar a análise das convicções pessoais";
  • "aperceber-se da diversidade dos argumentos e das problemáticas dos outros";
  • "aperceber-se do carácter limitado dos nossos saberes, mesmo dos mais assegurados".

    [Ibidem.]

Inscrita na componente de formação geral de todos os cursos do ensino secundário,

[Dec.-Lei n.º 286/89, de 29 de Agosto.]

a disciplina de Filosofia é reconhecida em Portugal como componente imprescindível da formação geral da educação secundária, o mesmo é dizer da educação da grande maioria das jovens e dos jovens portugueses, e que num futuro próximo será desejavelmente a totalidade.

O documento oficial que estabelece entre nós a revisão curricular do ensino secundário,

[DES (2000). Revisão Curricular no Ensino Secundário - Cursos Gerais e Tecnológicos. Lisboa: DES.]

ao definir a posição da disciplina de Filosofia no conjunto curricular, permite que Portugal, mantendo a sua posição destacada a nível internacional, responda favoravelmente às recomendações da UNESCO atrás referidas e, sobretudo, cabe salientar, consagra a velha tradição portuguesa de atribuir à Filosofia um papel constante no nosso plano de estudos. Na realidade, no contexto da Reforma Pombalina, começou a ensinar-se Filosofia, no que designaríamos hoje por educação secundária, desde 1791, ou seja, há mais de dois séculos, e, a despeito de alguns momentos de crise,

[Em 1903 e 1904, houve propostas de abolição do ensino da Filosofia. Cf. E. Fey (1978). Ensino da Filosofia em Portugal. Brotéria. Cultura e informação, vol. 107, nº 1, pp. 19-36; nºs 2-3, pp. 191-208; nº 4, pp. 278-295; nº 5, pp. 419-454.]

tal disciplina nunca deixou de figurar nos currículos daquele nível de ensino.

Segundo o mesmo documento, no quadro da nova proposta de matriz curricular, a componente de formação geral tem como função, por um lado, assegurar o desenvolvimento "de uma cultura geral mais ampla e aberta" que inclua "necessariamente uma dimensão crítica e ética, indispensável face ao extraordinário desenvolvimento das ciências e das tecnologias e às suas consequências directas na nossa vida quotidiana", e, por outro, contribuir "para a construção da identidade pessoal e social dos jovens que lhes permita compreender o mundo em que vivem, integrar-se nele e participar criticamente na sua construção e transformação."

No âmbito desta caracterização da componente de formação geral, a Filosofia aparece descrita como "uma disciplina em que os alunos, em contextos de aprendizagem que se pretendem dinâmicos, devem aprender a reflectir, a problematizar e a relacionar diferentes formas de interpretação do real."

Esta convergência de perspectivas faz pensar um determinado paradigma filosófico, ligado a uma concepção de Filosofia como uma actividade de pensar a vida e não como um mero exercício formal; ou seja, preconiza uma concepção de Filosofia que a articula com o exercício pessoal da razão, desenvolvendo uma atitude de suspeita, crítica, sobre o real como dado, mas, ao mesmo tempo, a determina como um posicionamento compreensivo, integrador e viabilizador de uma transformação do mundo. Tal paradigma supõe que "pensar por si mesmo" a vida obriga a uma discussão pública, ao reconhecimento do momento de verdade inerente a cada posição em debate, e, simultaneamente, dimensiona-se numa vocação de universalidade da razão. Dito de outra maneira, esta redimensionação do papel da Filosofia no quadro dos novos desafios do ensino secundário, faz dela não só uma componente essencial da formação pessoal da juventude como também a caracteriza como um instrumento da vivência e aprofundamento da vida democrática.

Da presente reformulação do Programa de Filosofia

No horizonte do que atrás fica dito, a disciplina de Filosofia deverá, pois, promover condições que viabilizem uma autonomia do pensar, indissociável de uma apropriação e posicionamento críticos face à realidade dada, que passa por pensar a vida nas suas múltiplas interpretações. Tal imperativo determina a prática da interpretação como via para a apropriação do real e da consciência de si - interpretação dos textos, das mensagens dos media, das produções científicas e tecnológicas, das instituições, em suma, da(s) cultura(s). Desta maneira, a intencionalidade estruturante da disciplina de Filosofia, no ensino secundário, deverá ser: contribuir para que cada pessoa seja capaz de dizer a sua palavra, ouvir a palavra do outro e dialogar com ela, visando construir uma palavra comum e integradora.

Orientado por esta grande intencionalidade, o Programa de Filosofia, que agora se apresenta à comunidade docente, bem como às alunas e alunos a quem se destina, situa-se numa dupla relação com o Programa de Introdução à Filosofia, aprovado em 1991, pelo Despacho nº 24/ME/91, de 31 de Julho, querendo ser, a um tempo, uma reformulação sem ruptura e uma reformulação com inovação. Esta posição que o grupo de trabalho assumiu assenta em três ordens de razões:

  1. inserção no quadro institucional que organiza a actual reestruturação dos Programas do ensino secundário e que a si mesmo se apresenta numa linha de continuidade em relação aos actuais parâmetros de tal nível de ensino, embora no contexto dos seus novos desafios e das novas significações deles emergentes;
  2. respeito pelo que a investigação parece apontar como sendo a vontade do corpo docente de Filosofia que, embora apresentando críticas e manifestando insatisfações, se expressa, todavia, a favor da manutenção do actual programa de Introdução à Filosofia, no seu aspecto global;
  3. [Cf. Henriques, F. e Bastos, M. (org.). (1998). Os Actuais Programas de Filosofia do Secundário - Balanço e Perspectivas. Lisboa: CFUL/DES. E também os resultados da investigação em curso no âmbito do Projecto A Filosofia no Secundário, "Questionário Nacional sobre os Actuais Programas de Filosofia do Secundário".]

  4. reconhecimento do valor que tem o capital de conhecimentos e de experiência adquirido ao longo dos dez anos de vigência do Programa de Introdução à Filosofia e que pode conferir hoje às professoras e aos professores alguma segurança científica em relação aos temas a fazer aprender.

Assim sendo, as reformulações que propomos expressam-se, fundamentalmente, pela procura de uma nova organização das temáticas em função dos cortes efectuados nos conteúdos, para dar ao Programa uma nova unidade, por um lado, e, por outro, pelo paradigma organizador do trabalho filosófico que preconiza e que se explicita, mais claramente, no quadro de finalidades e objectivos que define.

Deste modo, mantivemos a estrutura do anterior programa, limitando-nos a adaptá-la aos cortes programáticos que efectuámos e à importância que conferimos aos aspectos metodológicos, quer no ensino, quer na aprendizagem, da Filosofia.

É neste contexto que, no módulo inicial - cuja existência em todos os programas é de determinação superior - se propõe o desenvolvimento de um conjunto de actividades que, partindo de um diagnóstico centrado nas competências de análise, interpretação e expressão discursiva, promovam o seu aperfeiçoamento e as orientem, primeiro, no sentido de um pensar com clareza e rigor, e, na sequência, as conduzam para uma reflexão de carácter mais especificamente filosófico.

Procurámos manter a liberdade de movimentação dos docentes na gestão dos conteúdos, que o anterior programa proporcionava, por nos parecer um imperativo da própria Filosofia e, também, por isso corresponder à dimensão do referido programa mais favoravelmente destacada pelo corpo docente. Reforçámos mais esse aspecto pela criação de opções, nomeadamente, na rubrica final que possibilita a cada docente uma perspectivação pessoal do percurso a realizar ao longo dos dois anos.

Por todas estas razões, consideramos que o ensino da Filosofia se deve recortar de um conjunto de finalidades que proporcione um suporte de trabalho reflexivo a todos os níveis da vida e do viver. Neste contexto, e porque não há autonomia do pensar que se constitua a partir do indiferentismo, ou sem enraizamento sócio-político-cultural, e sem o domínio do discurso, da compreensão dos seus vários tipos e das suas possibilidades de verdade ou verosimilhança, preconizamos que a consumação da intencionalidade estruturante da Filosofia, no ensino secundário, obriga a equacionar com o mesmo grau de importância, objectivos dos domínios cognitivo, das atitudes e valores e das competências, métodos e instrumentos.

©Jul/2003

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