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O escândalo de Stravinsky
Tentemos fazer renascer, de certo modo, a sua carga criativa; não decerto com a ilusão inútil de reconstruirmos um «ouvido de 1913» mas, pelo contrário, tentando actualizar certos momentos da experiência da época, fazendo-os reagir em contacto com o nosso contexto actual. Pegaremos apenas em alguns motivos da obra porque, na realidade, o que pretendemos aprofundar é, como de costume, a nossa capacidade de audição e de interpretação. Mas, em troca, ainda que a um prazo um pouco mais longo, não se intensificará também a nossa experiência dessa obra? O próprio Stravinsky conta que, logo aos primeiros compassos, a Sagração foi acolhida com «risadas e troças», depois do que se desencadeou o alvoroço que as crónicas registam. O que haveria de escandaloso naqueles primeiros compassos? Tratava-se de um simples solo de fagote acrescido de uma melodia popular lituana, certamente desconhecida do público mas que podia ser sugestiva; um andamento rítmico assimétrico e complexo, de livre vocalizo; um timbre instrumental desusado o fagote em registo agudo que um célebre professor de orquestração não conseguiu sequer reconhecer, pelo que saiu da sala, horrorizado, protestando que não era aquela a forma de manusear os instrumentos. Por conseguinte, nada de particularmente cómico; mais ainda, aquele início com um solo de instrumento de sopro tinha um precedente não longínquo na flauta do Fauno de Debussy: uma analogia que se torna bastante fácil, mesmo para nós, gerações posteriores. Mas aqueles sons, exíguos e estranhos, um tanto pesados e guturais, como a voz de um animal desconhecido, devem ter entrado em choque frontal com a dignidade daquele teatro (o Teatro dos Campos Elíseos) e com a expectativa daquele público: era possível que começasse daquela maneira uma obra respeitável, mais, um espectáculo de gala para a melhor burguesia europeia? Primeiro, o contraste provocou hilariedade, e depois surgiram os protestos. Não arremessemos com demasiada facilidade a primeira pedra contra aquele público. É certo que hoje não reagimos assim perante aquela música; a nós, o início da Sagração pode sugerir imagens primitivas, algo desconcertantes e talvez, para os menos aculturados, vagamente ansiogéneas. Mas perguntemos a nós próprios se, em situações análogas, não reagimos também daquela forma primitiva e um tanto imbecil, que traduz falta de disponibilidade em relação a tudo o que é novo. Passando a um outro aspecto, uma componente importante do escândalo perante uma proposta cultural, é precisamente aquela que é sentida como um exagero, um excesso. Em face de qualquer coisa que «vai para além de todos os limites», sentimo-nos incomodados, exasperados e acabamos por explodir. O público de 1913 deve ter passado por uma experiência do género, a julgar apenas pelas descrições, já bem decantadas e calibradas, que lemos na crítica recente. Referindo-se à Sagração, Manzoni, no seu Guia, fala dos «acentos perturbantes e verdadeiramente revolucionários, dos ritmos agrestes reiterados, das estratificações politonais, do instrumental sardónico, da inexorabilidade mecânica de certas páginas» e sobretudo «da força primitiva de um ritmo perturbante, para além da inaudita novidade e variedade dos timbres». Gentilucci confessa-se impressionado com as «melodias folclóricas deformadas, a selvagem articulação rítmica obsessivamente expandida, as durezas harmónicas politonais, a recusa radical do fraseado de longo alcance, os contínuos desvios do acento rítmico, as vertiginosas invenções de timbres», tudo sentido como uma «explosão de vitalidade». Excesso no grande número de instrumentos e, em particular, de instrumentos de percussão; excesso na «fusão dos instintos mais primitivos com a sensualidade mais exacerbada», sublinha o crítico alemão Hans Heinz Stuckenschmidt; e, ainda, excesso na violenta crueza das dissonantes, na dança orgiástica final sotoposta a contínuas mudanças de compasso, nas bruscas passagens do pianíssimo ao fortíssimo, desde fracos acenos melódicos de instrumentos a solo até acordes colossais de toda a orquestra. A primeira e principal reacção do público, aquando da apresentação da peça, deve ter sido a de quem se encontra perante uma agressão física, biológica, de uma quantidade excessiva de sons, de estímulos acústicos. Poderá parecer estranho mas ainda hoje existem pessoas (quantas?) que têm a mesma impressão quando ouvem a Sagração; afirmam, como se chegou a registar, que, nessa música, «o volume é tão forte que, em certos momentos, chega a provocar aversão» porque chega a ser «um estrondo que desmembra o mais pequeno evento musical»; está-se como que perante uma «simples utilização física do som» que provoca «exaltação, superexcitação». Sensações deste género também o público as experimenta durante a audição de certas peças contemporâneas de Nono ou de Stockhausen, em que o ruído atinge dimensões insuportáveis, especialmente se a audição é em esterefonia, com quatro altifalantes. Para não falarmos das montanhas de ruídos que os conjuntos rock fazem desabar sobre nós. É a sensação de já não sermos espectadores face a uma mensagem musical que devemos ouvir e interpretar, de nos sentirmos envolvidos e sem a menor possibilidade de nos refugiarmos dentro de um campo vibrante que faz pressão sobre toda a superfície do nosso corpo. Que resposta poderemos dar ao estímulo sonoro? Podemos reagir, defendendo o nosso direito a uma audição cultural, subtraindo-nos à agressão acústica e afirmando que aquela música não é música. Ou então, podemos adaptar-nos à situação, tirando dela o melhor partido possível: mergulhando na experiência do som como som (audição, degustação, exercício de sensação consciente, zen ou yoga); deixando prolongar-se activamente as vibrações dos nervos até aos músculos e começar, por exemplo, a dançar. Como é evidente, o público parisiense da Sagração não tinha em mente estas soluções. Contudo, não deveria ter descurado o facto de que, além disso, aquela música devia ser também dançada. Uma segunda reacção aos «excessos» na música é do tipo qualitativo. O ouvinte defende-se dos golpes baixos da agressão acústica, mantém essa agressão dentro dos limites razoáveis de uma experiência cultural, reage culturalmente e não visceralmente. Mas a informação continua a ser muitíssimo superior à redundância e apresenta-se como «ruído» cognoscitivo. Em suma, a Sagração está fora de todos os esquemas musicais pré-estabelecidos: não só despreza a linguagem tradicional como parece também não ter qualquer relação com as novas experiências de Debussy. De onde vinha e para onde se dirigia essa música? Numa síntese de apreciações já assimiladas, pode dizer-se, como Stuckenschmidt, que «o que faz da Sagração uma obra única é a fusão de elementos que parecem remontar aos primeiros tempos do mundo e ao modernismo mais avançado». Por conseguinte, o «moderno» assume a máscara ou a face do primitivo e do bárbaro. Para esta interpretação concorrem vários factores: o assunto do bailado, obviamente; o relevo que o ritmo possui, na música, facto que a nós, ocidentais, leva a pensar imediatamente nas culturas africanas consideradas primitivas (por isso, em relação à Sagração, se falou mesmo de «terror negro»); o uso obsessivo da repetição que substitui as técnicas mais elaboradas da variação e do desenvolvimento; a atenção insistente e «primordial» aos sons em si próprios. Para a cultura erudita, dizer «primitivo e bárbaro» implica algo de negativo: a perda de uma densidade de elaboração cultural sem contrapartida visível no mesmo plano. Um respeitável porta-voz deste ponto de vista é sem dúvida Adorno, para quem Stravinsky personifica a regressão, na medida em que, na Sagração, «a selvagem representação do selvagem satisfaz o anseio de liquidar a aparência social, o impulso para a verdade». Os escândalos culturais têm frequentemente uma duração efémera e todos os «modernos», mais cedo ou mais tarde, se tornam «clássicos». Seria interessante ver até que ponto o moderno da Sagração continua a ser desagradável para os nossos contemporâneos menos cultos mas recordemos que, entretanto, os mass media derramaram, nos ouvidos dos povos, tantos ruídos, no sentido físico e no sentido cibernético, e a música de Stravinsky tem sido tão filtrada pelos grandes e pelos pequenos écrans, que reacções primárias como aquela que relatámos não podem deixar de admirar. Para o público e para a crítica oficial de Paris, a «reabilitação» desta obra não tardou: um ano depois, foi executada em forma de concerto, isto é, sem bailado. «Para a Sagração», escreve ainda Stravinsky nas Crónicas da minha vida, «foi uma esplêndida reabilitação. A sala estava repleta. O público, já não distraído pelo espectáculo, ouviu o meu trabalho com uma atenção concentrada e aplaudiu-o com um entusiasmo que me emocionou muito e que estava longe de esperar. Alguns críticos, que anteriormente tinham depreciado a Sagração, confessaram abertamente o seu erro». Admitindo que essa conversão fosse autêntica isto é, que a compreensão não passasse de mero hábito as suas razões são naturalmente complexas e não tencionamos analisá-las aqui. Pelo contrário, o que nos interessa é revelar, em conclusão, como a ligação com o ballet foi e continua a ser importante, em todos os sentidos, para esta música. Como o mítico e poético fauno mallarmiano para Debussy, a visão ritual que a cenografia derrama sobre a música leva, contrariamente ao que Stravinsky pensava, a aceitar inovações musicais que, de outro modo, seriam menos aceitáveis. Se virmos com atenção, aquilo que uma lógica tradicional do discurso musical considerava grosseiro e primitivo na Sagração, era uma gestualidade musical, ou melhor, músico-dramático semelhante à do Verdi popular (que Stravinsky tanto apreciava) e que, mais tarde, virá a ser a poética de um Berio (em óptimas relações tanto com Verdi como com Stravinsky). Ora, se esta música traduz e sugere hoje como na sua época o primitivismo bárbaro do bailado «com uma força e uma capacidade de representação únicas», como escreve Gentilucci, isso não fica a dever-se ao facto de o revolucionário músico ter inventado tudo, como acontece hoje com algumas obras que, baseadas em códigos particularíssimos, são impenetráveis para o grande público. Em nossa opinião o «primitivo» stravinskiano resulta, sim, do facto de o músico apelar para arquétipos gerais e também pré-musicais que são fundamentais na nossa cultura e que, mais ou menos, todos nós cultivamos. Arquétipos que aliam estruturas rítmicas, dinâmicas, de timbre, etc., a determinados campos da experiência sensorial e intelectual. Por exemplo, uma massa sonora em registo grave surge aos nossos ouvidos como sombria; se essa massa for composta por sons que não distinguimos, torna-se tenebrosa e se, ainda por cima, for forte e cheia de ressonâncias, torna-se ameaçadora. A Sagração está repleta de situações sonoras deste género, situações inventadas pelo autor, e por isso não codificadas antecipadamente, mas que nós interpretamos como interpretaremos qualquer acontecimento natural ou cultural novo que se nos apresentem: com os meios que possuímos. É baseando-se nesses meios que o próprio Stravinsky organiza, com uma margem de invenção, é certo, os materiais sonoros tradicionais, criando assim uma música nova em muitos aspectos. E é precisamente esse recurso aos códigos comuns, transpondo os mais especificamente musicais, que constitui talvez o principal motivo de escândalo de 1913 para as elites culturais, ao mesmo tempo que constitui seguramente a razão dessa impressão de vitalidade e de actualidade que a obra continua a exercer sobre o público. É assim que esta música tem um sentido de «primitivo», isto é, de arquétipo; um sentido que o bailado acaba por justificar mas também por limitar de modo que sabemos. Se a Sagração da Primavera já não choca, não deixou todavia de ser uma proposta que se mantém em aberto e uma proposta feita ao público, isto é, a todos os utentes dos códigos de base. Procuremos em conjunto o «moderno» da Sagração, ou seja, a origem de tantos dos nossos comportamentos culturais de fundo, para além da linguagem musical tradicional uma origem relativa e histórica, entenda-se. Assim ficará mais aberto o caminho para a compreensão, numa segunda fase, da contribuição original de Stravinsky para a nossa cultura, contribuição que precisaremos melhor com a ajuda dos especialistas. (Gino STEFANI - Compreender a música. Lisboa: Presença, 1987, p. 78-84)
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