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As fogueiras da Inquisição
semeiam o terror
A acção passava-se em Sevilha, quando as fogueiras todos os dias
se acendiam para glória de Deus e se queimavam os hereges em magníficos
autos-da-fé. Ivan Karamazov dá vida ao cenário
da velha Lenda do Grande Inquisidor, uma personagem que ele descreve
a seu irmão Aliocha como um velho quase nonagenário, grande
e direito, de rosto ressequido, os olhos cavados fundo nas órbitas,
de onde brota um clarão incandescente, como fogo. Sevilha, a
bela andaluza colonizada pelos castelhanos depois da Reconquista, onde Cristóvão
Colombo arma a sua expedição, onde Américo Vespúcio,
o Florentino, sonha com o novo mundo. É em Sevilha, no século
XVI, que Dostoievski resolve fazer Jesus
Cristo regressar à terra. Jesus faz alguns milagres e outras tantas
magias. A multidão reconhece-o, mas trai-o quando o cardeal grande
inquisidor ordena à sua polícia que o prenda.
Então, no calabouço onde Jesus está aprisionado
na véspera de ser condenado à fogueira, começa um
longo monólogo que é, na pena do escritor russo, um dos mais
belos pedaços da literatura anti-romana. Por que vieste inquietar-nos?,
pergunta o grande inquisidor. Porque Tu vieste inquietar-nos, sabe-lo
bem. Amanhã vou condenar-Te a arder na fogueira como pai dos hereges,
e este povo que hoje beijou os teus pés precipitar-se-á,
amanhã, ao menor sinal meu, para atear as chamas da tua fogueira,
estás ciente disso? (...)
A liberdade da fé deles em Ti era o que, a Teus olhos, havia
de mais precioso há quinze séculos. Não foste Tu quem
disse: «Quero tornar-vos livres»? Ora aí está,
já viste os homens livres (...) Sim, isso custou-nos caro, mas levámos
essa obra até ao fim em Teu nome. Durante 15 séculos, esta
liberdade deu-nos que fazer, mas agora acabou-se, acabou-se de vez. Não
acreditas que se acabou de vez? Olhas-me com doçura e nem sequer
te dignas insurgir-te? Mas fica sabendo que é agora, mais do que
nunca, que os homens estão convencidos de que são totalmente
livres, e no entanto foram eles próprios que nos entregaram a sua
liberdade, depositando-a docilmente a nossos pés. Essa foi obra
nossa, mas era esta a liberdade que Tu desejavas?
A moral da história é mais ou menos esta: os homens
preferem estas certezas tranquilizadoras, e a disciplina cega, aos tormentos
da liberdade, e é por compaixão por eles que a Igreja cumpre
o ofício de esmagar toda a heresia, todo o pensamento heterodoxo,
todo o comportamento desviante, e de impor o seu magistério e a
sua verdade. Esta explicação vale, sem dúvida,
para todas as ditaduras do mundo, mas a Santa Inquisição,
lançada na Idade Média contra as heresias dos cátaros
e dos valdenses, contra os judeus e os iluminados (alumbrados) na
Espanha dos Reis Católicos, ou contra a república teocrática
de Savonarola em Florença, foi uma das mais aterradoras.
Os autos-da-fé do monge Torquemada
Na procissão lúgubre conduzida pelas autoridades civis e
o cabido da catedral, os monges e os penitentes transportam tochas acesas
na procissão lúgubre encabeçada pelas autoridades
civis e pelo cabido da catedral. No estandarte da Santa Inquisição,
o brasão negro e branco da ordem dominicana confunde-se, sobre damasco
carmesim, com as armas reais bordadas a ouro. Ouvem-se já o murmúrio
das preces e a ladainha dos cânticos entoados pela imensa multidão.
Na praça principal, ergue-se o cadafalso. Pendurados estão
já os barretes, as mordaças, as cogulas, as cordas, as efígies
dos condenados à revelia. Os caixões estão expostos.
Os autos-da-fé são estas liturgias faustosas e macabras
que evocam mais as teatrais perseguições de Nero do que a
modernidade de Espanha. Do século XVI ao século XVIII,
vão ser celebradas periodicamente, de dois em dois ou de três
em três anos, às vezes com mais frequência, nas 14 cidades
onde o Tribunal da Inquisição tem sede. A corte está
em Madrid e há gente que vem de longe para assistir ao espectáculo.
Os tambores e as trombetas anunciam o início da cerimónia.
À luz dos círios, o inquisidor-geral profere um longo sermão.
Os de Melchior Cano atraem multidões. Depois, os hereges arrependidos
vêm abjurar os seus erros. São expostos meio nus e
vergastados. São também ditadas outras sentenças mais
pesadas: prisão perpétua, confiscação dos bens,
galera ou, para os mais felizes, peregrinação de penitência
a Jerusalém. É desta forma que os arrependidos se
reconciliam com a Igreja.
Quanto aos condenados à morte — os relapsos, reincidentes
ou hereges obstinados —, são entregues ao braço secular.
Desde os tempos mais longínquos da Inquisição medieval
que a Igreja não quer manchar as mãos de sangue. Deixa ao
príncipe e aos seus executantes o ofício do carrasco. Os
condenados, vivos ou em efígie, são então içados
para uma fogueira, assediados por um capelão, que procura uma derradeira
confissão ou arrependimento, e finalmente queimados. Diante dos
corpos que se retorcem nas chamas, elevam-se, da multidão, litanias
e gemidos.
Na peça que Victor Hugo consagra, em 1869, àquele que
foi, de 1483 até à sua morte, em 1498, inquisidor-geral de
Espanha, Tomás de Torquemada profere estas palavras terríveis:
Para que o inferno se feche e o céu se abra, é
necessária esta fogueira.
Porque
O inferno de uma hora anula o inferno eterno
O pecado arde com o vil andrajo carnal
E a alma sai, esplêndida e pura, da sua chama
Porque a água lava o corpo, mas o fogo lava a alma.
A obsessão da purificação pelo fogo é tal que
em Espanha, tal como na época do esmagamento dos cátaros
na Idade Média, ou mesmo em terras protestantes (em Basileia), se
desenterram os cadáveres, que são arrastados em cortejo antes
de serem, também eles, queimados.
O monge Torquemada será o monstro que o romantismo de Hugo legou
à História? Nascido em 1420, a sua competência teológica
e a sua reputação de incorruptível valem-lhe a nomeação
como superior do convento dominicano de Segóvia e confessor da corte.
Faz a aprendizagem de inquisidor em Castela, antes de reinar sobre
Aragão e a Catalunha, de abrir tribunais em Sevilha, Toledo, Córdova,
etc. É ele que cria a Suprema, a Inquisição
suprema e geral, que aterroriza os tribunais de província, destitui
os inquisidores demasiado brandos propostos por Roma e, ultrapassando o
papa, se torna instrumento dócil da política régia.
Torquemada impõe-se uma disciplina de ferro, ignora qualquer privilégio
de classe, de sangue ou de estatuto.
Os seus autos-da-fé são a encenação mais
refinada de um sistema de terror destinado a impressionar a imaginação
e a educar a população. Os manuais dos inquisidores
da Idade Média que inspiraram Torquemada admitiam já que
o objectivo não era tanto salvar as almas como aterrorizar as multidões. De
acordo com esta pedagogia, os culpados que escaparam à fogueira
são condenados a usar o sanbenito, uma casula amarela enfeitada
por uma cruz vermelha, encimada por um chapéu pontiagudo, uma espécie
de mitra pintada de diabos e de chamas. O nome dos culpados é bordado
em letras gordas no tecido do sanbenito, túnica de infâmia
imortalizada por Velázquez e Goya, cuja aplicação
é impiedosamente controlada em cada aldeia, passada a pente fino
pela polícia inquisitorial. Uma vez executada a pena, o sanbenito
é retirado, mas continua pendurado na igreja do lugar de residência
do condenado, para que os fiéis nunca esqueçam o seu crime.
Obsessivos em matéria de legislação, os inquisidores
codificaram todos os procedimentos, inclusive o emprego habilmente doseado
da tortura. A sua máquina judicial assenta na confissão e
na delação. Em cada cidade por onde passa, o inquisidor proclama,
numa missa solene, um édito da fé, um catálogo
dos desvios religiosos, e estabelece um período de graça
durante o qual os culpados devem apresentar-se e a população
deve denunciar os suspeitos. Este período é obra piedosa.
O delator beneficia de indulgências e até da garantia de salvação
eterna. Se o herege se entrega, goza do segredo da fase de instrução,
enquanto os outros são perseguidos, presos, interrogados sem nunca
conhecerem as acusações que impendem sobre eles nem os testemunhos
que nunca poderão refutar.
É verdade que a justiça civil ordinária não
é mais indulgente, mas esta forma de inquirir, de julgar, de torturar,
de absolver ou de condenar faz da Inquisição espanhola um
instrumento único no mundo. Michel Foucault confessava-se impressionado
com a tortura inquisitorial, que julgava cruel, mas não selvagem,
mais próxima dos ordálios medievais do que dos interrogatórios
musculados da época moderna. Três
tipos de suplícios tinham, então, a preferência das
masmorras da Igreja: a garrucha, roldana que ergue e solta o corpo
violentamente; o porro, cavalete sobre o qual se amarra o supliciado
por meio de cordas que lhe rasgam a carne; a toca, túnel
para o afogar. Mas a espessura das cordas, o peso das roldanas, a intensidade
do sofrimento obedecem a procedimentos determinados pela capacidade de
resistência do culpado e pelo número de acusações
que sobre ele recaem.
Os historiadores insistem no carácter excepcional destas práticas,
salvo nos primeiros anos — a partir de 1480 — de loucura assassina. Mas
elas não deixam, por isso, de ser indefensáveis, tendo em
conta que se está perante delitos de opinião, de costumes,
de religião. Esta catalogação criminal de todo o tipo
de pensamento desviante verga as vontades, esmaga os corações,
extingue a chama das ideias, desespera uns para tranquilizar os outros,
escreve Bartolomeu Benassar. Uma tal inquisição de Estado
tinha sido autorizada por Sisto IV, um papa grotesco que, com uma bula
de 1478, havia cedido uma parte dos seus poderes judiciais aos Reis Católicos,
Fernando e Isabel.
Em três séculos, a Espanha terá mais de 45 inquisidores-gerais.
Em 16 anos, sob o mandato do primeiro, Torquemada, são levantados
cerca de 100 mil processos, seguidos de cerca de duas mil execuções.
De acordo com os números do historiador Juan Llorente, foram queimados
297 condenados em Toledo, entre 1483 e 1501; 124 em Saragoça, entre
1485 e 1502. Antes de 1530, a Inquisição de Valência,
uma das mais severas, tinha instruído 2354 processos, proferido
perto de duas mil sentenças, queimado em efígie 155 condenados
à revelia e entregue 54 ao braço secular para aplicação
da pena capital.
Os judeus são as principais vítimas.
Dizimados pela peste negra e pelos motins anti-semitas de Aragão
ou de Sevilha, no século XIV muitos judeus apenas encontram salvação
na conversão, pelo menos aparente, à fé cristã.
Chama-se-lhes conversos ou marranos e continuam a praticar
clandestinamente os seus ritos. Tidos por ricos e influentes, estes criptojudaizantes
depressa serão acusados de ameaçar a integridade do reino.
Para os soberanos católicos de Espanha e para Torquemada, que forçaram
a mão do papa a fim de reorganizar a Inquisição, os
judeus são as vítimas perfeitas. Calcula-se em pelo menos
dois mil o número de conversos que terão morrido em
Espanha pelo fogo, e em 15 mil os que sofreram outro castigo — apreensão
de bens ou prisão —, antes que, a 31 de Março de 1492, o
poder régio considerasse mais eficaz expulsar de Espanha todos os
judeus.
Doravante, a loucura não terá limites. A Inquisição
submete os mouriscos a idêntico jugo — primeiro, os mouros
convertidos depois da queda de Granada (1492); depois, os místicos
e os iluminados (Teresa de Ávila e Inácio de Loyola
foram hostilizados); os fiéis suspeitos de pactuar com ideias da
Reforma protestante. Em seguida, passa-se dos desvios religiosos aos simples
desvios. A Inquisição pune a fornicação, o
incesto, a sodomia, a bigamia, etc. Esta violência continuará
em crescendo até 1550, data a partir da qual as condenações
à fogueira se tomarão mais espaçadas. Mas os autos-da--fé
prosseguem até ao século XVIII. Como se, prisioneira de uma
engrenagem fatal, a Espanha não conseguisse parar de purgar a sua
sociedade, mediante uma exclusão programada, e de defender a cidadela
católica, cercada, simultaneamente, pelo início da Reforma
— na Alemanha, em França, na Inglaterra — e pelo islão da
Sublime Porta.
A cruzada contra os cátaros e os valdenses
Os soberanos de Castela e de Aragão tinham tido os melhores mestres.
A Inquisição à moda espanhola não constitui
uma excepção na História, nem é fruto de circunstâncias
locais. Ela mergulha bem fundo as suas raízes nas práticas
de uma Igreja que impõe pelo ferro e pelo fogo o seu dogma e a sua
disciplina. Durante a Idade Média, as heresias alastram entre uma
população exasperada com os privilégios e costumes
do clero, pela cumplicidade entre a Igreja e os poderosos.
Evangelismo puro e duro, sonho de pobreza radical, divisão entre
os perfeitos e os impuros: assim nascem as seitas que querem
restaurar os primeiros tempos cristãos. Os
valdenses são os discípulos de Pedro Valdo, rico comerciante
francês do Delfinado (Leste de França) que, no século
XII, dá todos os seus bens aos pobres e reúne os fiéis
dispostos a lutar contra o luxo e a opulência do clero. Espalham-se
na região de Lião, depois na Provença, até
ao Norte de Itália e à Catalunha. Valdo e os pobres de
Lião, que apenas reconhecem a autoridade dos Evangelhos, são
excomungados em 1182.
Quanto aos cátaros — também chamados
bons homens ou perfeitos —, reivindicam uma filiação
nos apóstolos e rejeitam todos os sacramentos da Igreja à
excepção do baptismo. Como os valdenses, espalhar-se-ão
pelo Sul de França, na Toscânia, na Lombardia. Os cátaros
vão transformar-se na grande questão dos papas da Idade Média,
que enviam para as regiões contaminadas as suas tropas de choque
— monges de Cister e dominicanos —, ultrapassam os bispos considerados
demasiado indulgentes, solicitam os exércitos regulares do rei de
França e, finalmente, erguem tribunais especiais que desafiam o
bom senso cristão, mas também a mais elementar justiça.
A Inquisição dará tão boas provas ao longo
da Idade Média que bastará a todos os Torquemadas da terra
copiar as receitas dos Guillaume Raymond, Pierre Durand, inquisidores em
Narbonne; de Bernard Gui, geral dos dominicanos, inquisidor em Toulouse,
cuja Prática da Inquisição é um best-seller,
tal como o são O Martelo das Bruxas, de Sprenger e Instituris,
em 1487.
É no século XI que se acendem as primeiras fogueiras,
na Alemanha, em Itália, em França, mas a repressão
das heresias assemelha-se ainda a ajustes de contas locais. Perante bispos
de rigor desigual e um fanatismo popular que não recua diante das
execuções em massa, os príncipes e os papas harmonizam
os seus esforços. Mandam enviados e monges pregar a reconquista,
mas depressa se revelam incapazes de colmatar as brechas. Em 1184, em Verona,
o papa Lúcio III e o imperador Frederico Barba Ruiva definem princípios
comuns de perseguição, investigação e condenação.
Os Decretais de Lúcio III criam uma espécie de polícia
internacional de combate à heresia. As penas previstas vão
da excomunhão até à morte.
No século XIII é contra os albigenses
— os cátaros implantados na região de Albi (Sul de França)
— que experimentam as suas disposições com um encarniçamento
difícil de imaginar. O todo-poderoso papa Inocêncio III compara
a heresia ao crime de lesa-majestade, que equivalia, desde o tempo dos
romanos, à condenação à morte. Depois do assassínio
de Pedro de Castelnau, um dos seus mandatários, o papa prega a cruzada
de 1209 contra os albigenses. Raimundo VI de Toulouse, o protector dos
cátaros, é esmagado por Simão de Monfort, chefe dos
cruzados. Mais tarde, este será substituído pelo próprio
rei de França, Luís VIII, que lança o seus exércitos
contra os príncipes da Ocitânia. Mas depois de vinte anos
de resistência, Raimundo VII de Toulouse submete-se. Como seu pai,
é excomungado e deve penitenciar-se na nova catedral de Paris, onde
é publicamente vergastado pelo cardeal legado do papa.
No plano religioso, a heresia está longe de ser vencida. O IV
Concílio de Latrão, em 1215, abençoa a perseguição
aos hereges, a delação e a suspeita, os interrogatórios
sem audição de testemunhas, os processos sem defesa. As penas
redobram de gravidade, indo do banimento à morte. É nesta
data que são confiados poderes especiais a pregadores dominicanos
reputados de mais seguros e rudes do que os bispos locais, incapazes de
enfrentar a progressão da heresia. Tornam-se verdadeiros profissionais
do arquivo e da informação. Em 1233, uma bula do papa Gregório
IX consagra solenemente o nascimento da Inquisição pontifícia.
Já muito antes de prodigalizadas em Espanha as penas de infâmia
que o uso da cruz nas roupas se tornara obrigatório para o recalcitrante.
É na mesma altura que são inventadas as peregrinações
expiatórias, cuja distância é proporcional à
gravidade da falta. A confiscação dos bens faz parte do arsenal
de penas mais vulgares e alimenta os cofres reais e feudais. Como mais
tarde farão os tribunais de Sevilha e de Madrid, a sentença
capital é proclamada e executada de acordo com um cerimonial destinado
a impressionar. O herege obstinado ou o relapso é entregue ao
braço secular, isto é, ao magistrado, que, sem outra
forma de julgamento, o submete à pena do fogo. Os restos de um homem
morto depois de ter recebido o consolamentum cátaro são
exumados, arrastados ao som de trombetas pela cidade e depois queimados
publicamente.
Na região de Toulouse, os primeiros tribunais da Inquisição
são montados logo a seguir à publicação da
bula papal de 1233. São numerosas as execuções e exumações
de cadáveres. Robert le Bougre, ex-cátaro em funções
na Charité-sur-Loire entre 1233 e 1239, envia para a fogueira 187
hereges. Depois, a força cega dá lugar à repressão
metódica. De 930 condenações pronunciadas por Bernard
Gui em Toulouse entre 1308 e 1323, 42 correspondem a penas de morte. Os
tribunais revelam-se terrivelmente eficazes. A heresia cátara é
erradicada em meados do século XIV nas províncias do Sul
de França. Em Março de 1244, a tomada de Montségur,
último bastião de resistência, decapita o movimento.
Quanto aos valdenses do Languedoc, acabam por emigrar para a Europa Central,
onde os seus descendentes irão engrossar as fileiras da Reforma.
De Galileu a Savonarola
Na Lenda do Grande Inquisidor, Dostoievski
não se enganava: a escolha entre a liberdade do homem e a verdade
do dogma acaba sempre por perverter o cristianismo, bem como outras confissões.
O integrismo, de que a Espanha de Torquemada ou a cruzada contra os cátaros
dão testemunho, esmaga qualquer pensamento dissidente, qualquer
tipo de infidelidade (judeus, muçulmanos), de afastamento
da regra social, de crítica da norma científica, de protesto
contra o sistema eclesiástico. Galileu, Savonarola, Bruno, Lutero
e Erasmo não são, em bom rigor, vítimas dos tribunais
da Inquisição. Mas, através do índex, das excomunhões
e, para alguns, das penas da fogueira (Savonarola e Giordano Bruno) também
tiveram de pagar por esta concepção de uma verdade
que, porque revelada, nunca pode adaptar-se ao tempo e à liberdade.
Numa obra de 1543, contemporânea da Inquisição espanhola
e da Contra-Reforma, o polaco Nicolau Copérnico
destrói a concepção tradicional do mundo. Não
é o Sol que gira em torno da Terra, mas a Terra que gira em torno
do Sol. Esta tese contradiz a leitura à letra dos textos bíblicos,
nomeadamente a descrição de Josué parando a rota do
Sol: Sol, pára sobre Gabaão, Lua, sobre o vale de Ayalon.
E o Sol parou e a Lua imobilizou-se.
Roma pôs a obra de Copérnico no índex em 1616 —
até que seja corrigida. Galileu, que a retoma, é também
ele condenado em 1633. E, contudo, ela move-se,
exclama ele quando do seu processo. Ser-lhe-á fixada residência
até ao fim da vida, e hão-de passar três séculos
até que seja reabilitado pelo Vaticano. Também próximo
das teses de Copérnico, acusado de magia, o filósofo panteísta
Giordano Bruno morre na fogueira em Roma, em 1600. Antes dele, ainda em
1533, Michel Servet, teólogo espanhol suspeito de negar o dogma
da Santíssima Trindade, morrerá igualmente na fogueira, condenado
não por Roma, mas pelo austero magistério calvinista de Genebra.
Obsessão do fogo. As pregações inflamadas do monge
Jerónimo Savonarola contra o papado valem-lhe, em 1498, a mesma
sorte. As suas imprecações visam o papa Alexandre VI, Bórgia,
conhecido por levar uma vida dissoluta. Tu profanaste os sacramentos
pela simonia, clama ele à sua Igreja. A tua luxúria
fez de ti uma prostituta. És um monstro abominável. Criaste
uma casa de devassidão. Transformaste-te, de alto a baixo, em casa
de infâmia. E o que faz a mulher pública? Acena a todos os
que passam; quem tiver dinheiro pode entrar e fazer o que lhe apeteça.
Mas quem quer o bem é expulso. Foi assim, Igreja prostituída,
que desvendaste a tua vergonha aos olhos do universo inteiro e o teu hálito
envenenado se elevou até ao céu.
Superior do Convento de São Marcos de Florença desde 1491,
a fé do irmão Jerónimo é ardente, e severa
a sua doutrina. Depois do doce Francisco de Assis, que seduzira Inocêncio
III, e antes de Martinho Lutero, que porá a força do seu
temperamento ao serviço da Reforma, também Savonarola se
escandaliza com a decadência do papado. Em contraponto a uma Roma
corrompida, ele quer fazer de Florença, a sua cidade, uma nova
Jerusalém, uma contra-sociedade sem depravação,
sem luxúria, sem crime, uma monarquia teocrática cujo
rei, sem coroa, será Cristo. Tomam-no por profeta quando, antes
da ocupação de Florença pelo rei de França,
Carlos VIII, anuncia a chegada de um novo Ciro para reerguer a Itália.
A sua popularidade cresce. Denuncia a tirania dos Médicis que governam
a sua cidade, reclama uma reforma da Constituição, da justiça,
da fiscalidade. O Palácio da Senhoria (governo) cede perante a sua
intransigência.
Durante quatro anos (1494-98), Savonarola impõe em Florença
um severo regime de austeridade, proíbe jogos e festas profanas.
Mas esta ditadura moral depressa cansa a população, dividida
entre os arrabiati (enraivecidos) que combatem Savonarola e os seus
amigos, conhecidos por piagnoni (chorões). O vento muda.
O seu confronto com o papa acaba mal. Em 1495, é acusado de insubordinação
e proibido de pregar. Roma tenta ora afastá-lo ora comprar o seu
silêncio com uma mitra de cardeal. Mas, com a sua habitual veemência,
Savonarola replica ao papa. Não quero nenhuma mitra, grande ou
pequena. Apenas quero o que tu deste aos teus santos: a morte. Um chapéu
vermelho, de sangue: é esse o meu desejo.
A máquina infernal está lançada. Em Maio de 1497,
Savonarola é excomungado por heresia. Em Fevereiro do ano seguinte,
é preso com dois outros irmãos, Silvestre de Florença
e Domenico de Pescia. A sua última carta ao papa, assina-a com as
palavras servo inútil de Jesus Cristo. Prega pela última
vez a 18 de Março, no zimbório de São Marcos. A 12
de Abril, a Senhoria recebe uma ordem papal que a autoriza a agir contra
Savonarola e os dois companheiros. A 22 de Maio, juntamente com eles, é
condenado à morte pelo tribunal civil, na presença de dois
delegados eclesiásticos. Os irmãos Jerónimo, Silvestre
e Domenico são torturados, estrangulados e, finalmente, queimados,
a 23 de Maio de 1498.
A reabilitação de Jerónimo Savonarola pela Igreja
Católica está em curso, o que mostra o caminho de arrependimento
que o papa João Paulo II quer fazer a sua Igreja percorrer. Mas
se as fogueiras fazem parte da história passada, a verdade é
que a questão da liberdade de consciência, de pensamento e
de crítica no interior da Igreja nunca deixou de ser debatida. Sobretudo
no seio do catolicismo, onde no século XIX os papas intransigentes
nunca deixam de combater aquelas que são, para eles, as novas heresias
— o cientismo, o liberalismo, o socialismo —, bem como os padres ou teólogos
que a elas aderem. Voltaremos a este tema. Em pleno final do século
XX, o mesmo João Paulo II sanciona toda e qualquer dissidência
no sistema de ensino e de produção teológica da sua
Igreja. Ao fazê-lo, pensa estar a defender uma ortodoxia católica
ameaçada, segundo ele, pelos desafios da modernidade, a que chama
subjectivismo, individualismo, relativismo ético, absolutismo de
uma liberdade incapaz de impor limites a si própria.
A Igreja romana rompeu com as suas práticas de intolerância
de antigamente, mas os teólogos suspeitos de desvio doutrinal são,
ainda hoje, sancionados ou condenados. Eram muitos no tempo de Pio XII
— Henri de Lubac, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu —, antes de serem
reabilitados. Mais recentemente, os nomes de Hans Küng, de Leonardo
Boff, de Eugen Drewerman fizeram correr muita tinta. A proibição
do debate e da palavra e a penalização da dissidência
teológica não têm, naturalmente, nada de comum com
as épocas que precederam o Vaticano II (1962-65). Mas não
deixam de parecer tanto mais estranhos quanto a Igreja Católica
passou a fazer seu o combate pela afirmação dos direitos
da consciência e da liberdade.
(Os
Génios do Cristianismo, p. 97-109)
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