Pretexto
para este texto: o apoio à análise do GÓRGIAS
de Platão, de acordo com o
programa do 12º ano (ano
lectivo 2002/03) de Filosofia
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«Para que pode servir a filosofia
contemporânea? Para viver em conjunto da melhor
maneira: no debate racional, sem o qual não há
democracia, na amizade,
sem a qual não há felicidade,
enfim, na aceitação, sem a qual não há
serenidade. Como escreveu Marcel Conche a propósito
de Epicuro, "trata-se
de conquistar a paz (pax, ataraxia)
e a philia, quer dizer, a amizade consigo mesmo e a amizade
com o outro." Acrescentarei: e com a Cidade, o que é
político, e com
o mundo -- que contém o eu, o outro, a Cidade... --,
o que é sabedoria.
Dir-se-á que isso não
é novo... A filosofia nunca o é. A sabedoria
é-o sempre.»
(André Comte-Sponville)
(1)
De Sócrates a Platão : entre a Ágora e a
Academia.
O legado de Sócrates
chega até nós através dos seus discípulos,
fundamentalmente de Platão.
Sócrates nada escreveu, pelo menos
com relevo suficiente para dissipar as dúvidas entre o
Sócrates histórico e o Sócrates dos relatos
platónicos.
Na sua época, a transmissão
do saber era feita, essencialmente, pela via oral e, para Sócrates,
que adoptou a máxima Conhece-te a ti mesmo, a disposição
seria sempre dar mais ênfase à procura do que se
não sabe, do que transmitir o que se julga saber, privilegiando
a investigação permanente.
Sócrates assume-se como alguém
que sabe que nada sabe e, assim sendo... escrever para quê?
A escrita fecha o conhecimento, servindo-o de forma acabada, amarrando
o seu autor ao estrito contexto de afirmações inamovíveis:
se essas afirmações contemplam o erro, a escrita
não só o perpetua como garante a sua transmissão.
Porque Sócrates procura o saber, privilegia
o diálogo; se ele possuísse o saber, por certo daria
prioridade à escrita, como veículo da sua transmissão.
Porque Sócrates investiga permanentemente
o conhecimento de si com os outros, a metodologia -- incompatível
com a escrita -- só podia ser a ironia e a maiêutica.
Assim, ele pratica uma ascese que, ao mesmo tempo que o purifica,
o afasta do erro e do mal que germina no seio da ignorância
que cresce onde não há nem diálogo nem dialéctica.
Sócrates precisa do outro, dos outros, para dialecticamente
descobrir que o nosso sentido é um sentido com os outros
e que a verdade resulta da força e da coerência dos
argumentos, e não do poder dos seus proprietários:
um sintoma da democracia nascente que Sócrates se esforçou
por fortalecer.
Na leitura, o outro, quando existe, é
passivo; o livro não dialoga com o seu leitor...
Platão procura ultrapassar a tradição
oral e, embora mantenha reservas profundas em relação
à escrita, dado que a não considera um meio de adquirir
conhecimento, opta por uma estratégia de compromisso: escreve,
mas em diálogo, por entender ser essa uma metodologia de
investigação. De forma subtil, regressa a Sócrates,
fazendo do papiro a sua Ágora.
Tudo se passa no papel como se acontecesse na realidade. A linguagem
escrita mantém a vivacidade e as marcas de oralidade, como
se fosse uma representação, quase conseguindo na
Academia (na escola), o que
Sócrates procurava encontrar na rua, na praça pública.
Mas esta estratégia é já uma crítica
à democracia e uma opção clara, não
por todos os homens, mas pelos melhores.
[1] in COMTE-SPONVILLE,
A.; FERRY, L. La Sagesse des Modernes: Dix questions
pour notre temps. Paris: Robert Laffont, 1998, p. 520 [voltar
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