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Ciência e lei natural1. Noção de leiÀ evolução dum isolado,
chamaremos daqui em diante um fenómeno
natural. Fenómenos naturais são, portanto, o movimento dos corpos,
a vaporização da água sob a acção
do calor, a passagem duma corrente eléctrica num condutor,
a germinação duma semente, o exercício de direitos
políticos pelos cidadãos, etc.. Em virtude desta definição, explicar
um fenómeno é explicar a evolução dum
isolado. Essa evolução manifesta-se pela alteração
das qualidades dos componentes do isolado: logo, explicar um fenómeno
é dar o porquê da alteração das qualidades.
Mas, esse porquê como atingi-lo? Pode o homem estar certo de
nalgum instante ter alcançado a essência íntima
das coisas (para empregar, por um momento, a linguagem da metafísica)?
Tarefa vã! As coisas revelam-se-nos pelas suas relações
connosco -- nada mais podemos atingir que isso! O trabalho do cientista é, portanto, o de observar e descrever
os fenómenos e ordenar os resultados da sua observação
num quadro explicativo -- construção intelectual
-- coerente, e cujas consequências e previsões sejam
confirmadas pela observação e experimentação. A observação mostra que há certos fenómenos
que apresentam regularidades, isto é, comportamento
idêntico, desde que as condições iniciais sejam
as mesmas. A existência destas regularidades é extremamente importante
porque permite a repetição e a previsão,
desde que se criem as condições iniciais convenientes;
ora, repetir e prever é fundamental para o homem
na sua tarefa essencial de dominar a Natureza. Toda a técnica
se baseia nisso, e o leitor que pense um momento na possibilidade
e utilidade dessa técnica na vida corrente -- de um extremo
ao outro da aparelhagem técnica, da enxada ao ciclotrão
-- verificará sem trabalho que tal possibilidade e utilidade
se baseiam nestas duas coisas essenciais: repetir os fenómenos
tantas vezes quantas sejam precisas, prever os resultados. Daqui resulta que uma das tarefas mais importantes no trabalho de
investigação da Natureza é a procura de regularidades
dos fenómenos naturais. Definição. Chamaremos lei
natural a toda a regularidade de evolução dum isolado. Com esta definição, e do que anteriormente se disse,
fica estabelecido que o quadro explicativo que os homens procuram
construir deve assentar sobre leis naturais, e que na sua procura
e ordenação deve consistir o objectivo essencial da
Ciência. 2. Diferentes tipos de lei
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I) | Cada planeta descreve em torno do Sol uma elipse, da qual o Sol ocupa um dos focos (1ª lei de Kepler) (1). |
II) | Para todo o gás existe uma temperatura, chamada temperatura crítica, acima da qual ele não pode ser liquefeito; logo que a temperatura desça abaixo da temperatura crítica, o gás pode liquefazer-se, submetendo-o a uma pressão conveniente. |
III) | Entre dois corpos de massas m e m' desenvolve-se uma força atractiva que é directamente proporcional ao produto das duas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância dos dois corpos (lei da gravitação de Newton) (2). |
IV) | Toda a necessidade tende a provocar as reacções próprias a dar-lhe satisfação (1ª lei da psicologia funcional de Claparède). |
V) | Para todo o corpo em queda livre no vácuo, as alturas de queda são directamente proporcionais aos quadrados dos tempos de queda (lei da queda dos graves). |
Destas cinco leis naturais, a primeira e quarta podem ser consideradas
como leis qualitativas, a terceira e quinta como leis quantitativas,
com as restrições que acima pusemos à classificação.
Quanto à segunda, ela fornece o tipo que chamámos lei
qualitativa-quantitativa -- a manutenção da qualidade
estado gasoso está dependente de variações
quantitativas de pressão e temperatura, e o objectivo da lei
é, precisamente, acentuar essa ligação, determinando
as condições sob as quais a quantidade (de pressão)
se pode transformar em qualidade nova (estado líquido).
A Realidade existe independente da nossa vontade. Mergulhados na
fluência universal e tendo necessidade, para fins humanos, de
a explicar, lançamos, sobre ela, toda uma teia de leis - regularidades
dos fenómenos tais como se nos revelam.
A tonalidade geral dessas leis, o tipo dominante delas, é
qualitativo ou quantitativo? A qual dos dois damos o primado para
a explicação? A história da Ciência
dá a esta pergunta uma resposta nítida -- à
medida que a Realidade se vai conhecendo melhor, o primado tende a
pertencer ao tipo quantitativo.
Não é que a Ciência,
no seu avanço, tenda a pôr de parte a qualidade,
e isso seria, mesmo, absurdo, uma vez que as qualidades traduzem as
relações de interdependência dos seres uns com
os outros (anterior parág. 6), e a interdependência
é, precisamente, uma das características essenciais
da Realidade (anterior parág. 3). Mas a Ciência não
se ocupa apenas de descrever, empreende a tarefa de explicar
e, nesta, há um facto que se impõe com força
cada vez maior -- para obter a explicação das variações
de qualidade há que aprofundar o estudo das variações
de quantidade.
A segunda lei que demos como exemplo no parágrafo 2 oferece-nos
uma ilustração flagrante disto. Durante muito tempo,
os físicos não encontravam explicação
para o facto seguinte: -- a maioria dos gases podia liquefazer-se
por um aumento conveniente de pressão, mas outros, denominados
então gases refractários ou permanentes (oxigénio,
hidrogénio, azoto e alguns outros), suportavam as maiores pressões
sem se liquefazerem. Só em 1863, Andrews mostrou a existência,
para cada gás, de uma temperatura crítica, acima
da qual não se podia obter a liquefacção. Ora,
dava-se a circunstância de que, para os gases de que já
se obtivera a liquefacção, essa temperatura era relativamente
alta (157º para o anidrido sulfuroso, por exemplo), e, por esse
motivo, às temperaturas a que normalmente se operava estavam
criadas as condições de liquefacção. Para
os gases refractários, porém, a temperatura crítica
é extremamente baixa (-119° para oxigénio, -147°
para o azoto, -240° para o hidrogénio) e, portanto, só
abaixo dessas temperaturas, eles podem ser liquefeitos por aumento
de pressão. Vê o leitor como só uma variação
de quantidade (temperatura) permitiu dar uma explicação
do fenómeno -- alteração de qualidade -- até
aí misterioso?
Exemplos como este oferece-nos a história da Ciência
em abundância.
Mas há mais...
É tão fácil pôr um nome a uma coisa! arranjar
um rótulo, para encobrir a nossa ignorância! E tão
generalizada a tendência, em certas épocas históricas,
para elevar os rótulos à categoria de explicação!
O físico francês Pierre Duhem, referindo-se,
no seu belo livro A teoria física, à querela
entre os cientistas de espírito moderno do Renascimento e os
filósofos tradicionais da Escolástica,
diz: "Aquilo de que os filósofos do Renascimento acusavam,
acima de tudo, os filósofos escolásticos era de inventarem
uma qualidade nova cada vez que um fenómeno novo lhes chamava
a atenção; de atribuírem a uma virtude particular
cada efeito que não tinham nem estudado nem analisado; de imaginarem
que tinham dado urna explicação onde se tinham limitado
a pôr um nome e de transformarem assim a Ciência num calão
pretensioso e inútil".
E dá um exemplo célebre de explicação...
verbalista: "A luz, ou antes, a iluminação é
um movimento luminar de raios compostos de corpos luminosos que enchem
os corpos transparentes e que são movidos luminarmente por
outros corpos luminosos" (3).
Está o leitor vendo? Mas há mais...
O fenómeno do movimento dos corpos
foi daqueles que primeiro atraíram as atenções
dos pensadores, como dissemos no cap. IV da Parte l; lá mostrámos
como esse problema esteve intimamente ligado à evolução
da Matemática e da Filosofia na Grécia clássica.
Apontámos também, embora ao de leve, como circunstâncias
determinadas, principalmente de carácter político e
social, induziram na ciência grega posterior ao século
IV a.C. o horror do movimento (4).
Quer isto dizer que ele foi posto totalmente de parte? De modo nenhum!
Procurou-se dar dele uma explicação que o relegasse
para o museu das múmias e o tornasse consequentemente inofensivo,
embora, existente. E como há sempre um filósofo para
cada tarefa, por mais retorsa e macabra, esse filósofo surgiu,
na pessoa de Aristóteles.
Aristóteles, que aliás conseguiu realizações
interessantes em alguns domínios do pensamento, deu do movimento
uma definição e uma teoria qualitativa tão subtis(5)
que conseguiu torná-las totalmente incompreensíveis
a este pobre ente -- o homem de-todos-os-dias e de-todos-os-lugares
-- que, com trabalho e sangue, muito sofrimento e algumas alegrias,
um pouco de capacidade de entendimento e grande dose de ilusão,
vai encontrando, às apalpadelas, o seu caminho nesta maravilhosa
Realidade de trevas e luz em que está mergulhado.
Só duma coisa parece ter-se esquecido Aristóteles -- de observar o movimento! O que foi origem dum percalço de vulto -- afirmar (Física, livro IV 216a) que "a experiência mostra que os corpos, cuja força é maior, seja em peso, seja em ligeireza, todas as outras condições iguais quanto às figuras, atravessam mais depressa um espaço igual e na proporção que as grandezas (peso ou ligeireza) têm entre si", afirmação que equivale a esta -- os corpos caem com velocidades proporcionais aos pesos -- e que a Física experimental mais tarde havia de desmentir totalmente(6).
O leitor pode ver, pelos exemplos que apresentamos, como é
grande o perigo de deslizar no abuso da explicação qualitativa.
Os construtores da Ciência moderna, do Renascimento em diante,
apercebendo-se desse perigo, deram rumo novo à barca da Ciência,
dedicando-se à observação e experimentação,
procurando medir, tentando explicar por variações
de quantidade, tecendo uma teia de leis quantitativas.
O novo rumo da barca da Ciência está cheio de triunfos.
No cap. IV desta Parte trataremos mais demoradamente deste assunto,
mas queremos dar, desde já, um exemplo frisante. A 1ª
lei de Kepler (parág. 2) é uma lei qualitativa;
pois muito bem: essa lei e as outras duas leis de Kepler (estas
quantitativas) estão englobadas, como se demonstra sem grande
dificuldade, na lei da gravitação de Newton (parág.
2, III), que é o tipo perfeito da lei quantitativa(7).
Por toda a parte, em todos os ramos do conhecimento, há esta
tendência para o quantitativo, para a medida(8),
de modo tal que pode afirmar-se que o estado propriamente científico
de cada ramo só começa quando nele se introduz a medida
e o estudo da variação quantitativa como explicação
da evolução qualitativa. É o que está
acontecendo nos nossos dias a uma ciência em formação
- a Psicologia - e a uma outra que desponta - a Sociologia; ambas
se estão emancipando da descrição verbal e procurando
atingir, lentamente, a idade da adolescência científica.
Com o significado e as restrições referidos no começo do parágrafo 2, podemos portanto falar, plenamente, no primado da lei quantitativa no seio da Ciência Moderna.
notas |
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[1] João
Kepler, astrónomo que pode ser considerado como um dos
precursores da Astronomia moderna (1571-1630) [voltar
ao texto]
[2] Isaac
Newton (1642-1727), físico e matemático, uma das
figuras dominantes da Ciência moderna [voltar
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[3] Duma carta dirigida a Pascal pelo
jesuíta Padre Noël, antigo professor de Descartes
no colégio de La Flèche [voltar ao texto]
[4] V. o cap. IV desta Parte
[voltar ao texto]
[5] Vide Física de Aristóteles,
livro III [voltar
ao texto]
[6] Por obra de Galileo (1564-1642), o
fundador da Física moderna e o verdadeiro iniciador do método
experimental em Ciência
[voltar ao texto]
[7] Essa demonstração é uma
parte da obra de Newton, Princípios matemáticos
da filosofia natural, um dos maiores monumentos científicos
de todos os tempos
[voltar ao texto]
[8] Inclusive na Geometria, para explicar as formas
das figuras (coisa essencialmente qualitativa). Vide cap. IV
[voltar ao texto]
(CARAÇA, Bento de Jesus - Conceitos
fundamentais da Matemática, p. 112-117)
Leia
ainda:
A Matemática à luz de Conceitos Fundamentais da Matemática, de Bento de Jesus Caraça. |
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