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Com este texto comemorámos o centenário do nascimento de Bento de Jesus Caraça.

Ciência e lei natural

     

1. Noção de lei

À evolução dum isolado, chamaremos daqui em diante um fenómeno natural.

Fenómenos naturais são, portanto, o movimento dos corpos, a vaporização da água sob a acção do calor, a passagem duma corrente eléctrica num condutor, a germinação duma semente, o exercício de direitos políticos pelos cidadãos, etc..

Em virtude desta definição, explicar um fenómeno é explicar a evolução dum isolado.

Essa evolução manifesta-se pela alteração das qualidades dos componentes do isolado: logo, explicar um fenómeno é dar o porquê da alteração das qualidades. Mas, esse porquê como atingi-lo? Pode o homem estar certo de nalgum instante ter alcançado a essência íntima das coisas (para empregar, por um momento, a linguagem da metafísica)? Tarefa vã! As coisas revelam-se-nos pelas suas relações connosco -- nada mais podemos atingir que isso!

O trabalho do cientista é, portanto, o de observar e descrever os fenómenos e ordenar os resultados da sua observação num quadro explicativo -- construção intelectual -- coerente, e cujas consequências e previsões sejam confirmadas pela observação e experimentação.

A observação mostra que há certos fenómenos que apresentam regularidades, isto é, comportamento idêntico, desde que as condições iniciais sejam as mesmas.

A existência destas regularidades é extremamente importante porque permite a repetição e a previsão, desde que se criem as condições iniciais convenientes; ora, repetir e prever é fundamental para o homem na sua tarefa essencial de dominar a Natureza. Toda a técnica se baseia nisso, e o leitor que pense um momento na possibilidade e utilidade dessa técnica na vida corrente -- de um extremo ao outro da aparelhagem técnica, da enxada ao ciclotrão -- verificará sem trabalho que tal possibilidade e utilidade se baseiam nestas duas coisas essenciais: repetir os fenómenos tantas vezes quantas sejam precisas, prever os resultados.

Daqui resulta que uma das tarefas mais importantes no trabalho de investigação da Natureza é a procura de regularidades dos fenómenos naturais.

Definição. Chamaremos lei natural a toda a regularidade de evolução dum isolado.

Com esta definição, e do que anteriormente se disse, fica estabelecido que o quadro explicativo que os homens procuram construir deve assentar sobre leis naturais, e que na sua procura e ordenação deve consistir o objectivo essencial da Ciência.

2. Diferentes tipos de lei

Estamos de posse do conceito de lei; percebe-se que, conforme a natureza do isolado e da sua evolução, possa haver dois tipos fundamentais de lei:

lei qualitativa - aquela que diz respeito a variação de qualidade:
lei quantitativa - aquela que diz respeito a variação de quantidade.

Que estes dois tipos não podem ser rigidamente separados é evidente em virtude do que foi dito [nas páginas anteriores]; a utilidade da distinção está em que a lei acentua, por vezes, um ou outro aspecto da Realidade. Frequentemente, mesmo, a lei põe em evidência a ligação íntima da qualidade e quantidade, de modo tal que se não pode classificá-la em nenhum dos dois tipos; diremos então que se trata duma lei qualitativa-quantitativa (em rigor, todas o são).

Vejamos alguns exemplos de leis:

I) Cada planeta descreve em torno do Sol uma elipse, da qual o Sol ocupa um dos focos (1ª lei de Kepler) (1).
II) Para todo o gás existe uma temperatura, chamada temperatura crítica, acima da qual ele não pode ser liquefeito; logo que a temperatura desça abaixo da temperatura crítica, o gás pode liquefazer-se, submetendo-o a uma pressão conveniente.
III) Entre dois corpos de massas m e m' desenvolve-se uma força atractiva que é directamente proporcional ao produto das duas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância dos dois corpos (lei da gravitação de Newton) (2).
IV) Toda a necessidade tende a provocar as reacções próprias a dar-lhe satisfação (1ª lei da psicologia funcional de Claparède).
V) Para todo o corpo em queda livre no vácuo, as alturas de queda são directamente proporcionais aos quadrados dos tempos de queda (lei da queda dos graves).

Destas cinco leis naturais, a primeira e quarta podem ser consideradas como leis qualitativas, a terceira e quinta como leis quantitativas, com as restrições que acima pusemos à classificação. Quanto à segunda, ela fornece o tipo que chamámos lei qualitativa-quantitativa -- a manutenção da qualidade estado gasoso está dependente de variações quantitativas de pressão e temperatura, e o objectivo da lei é, precisamente, acentuar essa ligação, determinando as condições sob as quais a quantidade (de pressão) se pode transformar em qualidade nova (estado líquido).

3. Primado da qualidade ou da quantidade?

A Realidade existe independente da nossa vontade. Mergulhados na fluência universal e tendo necessidade, para fins humanos, de a explicar, lançamos, sobre ela, toda uma teia de leis - regularidades dos fenómenos tais como se nos revelam.

A tonalidade geral dessas leis, o tipo dominante delas, é qualitativo ou quantitativo? A qual dos dois damos o primado para a explicação? A história da Ciência dá a esta pergunta uma resposta nítida -- à medida que a Realidade se vai conhecendo melhor, o primado tende a pertencer ao tipo quantitativo.

Não é que a Ciência, no seu avanço, tenda a pôr de parte a qualidade, e isso seria, mesmo, absurdo, uma vez que as qualidades traduzem as relações de interdependência dos seres uns com os outros (anterior parág. 6), e a interdependência é, precisamente, uma das características essenciais da Realidade (anterior parág. 3). Mas a Ciência não se ocupa apenas de descrever, empreende a tarefa de explicar e, nesta, há um facto que se impõe com força cada vez maior -- para obter a explicação das variações de qualidade há que aprofundar o estudo das variações de quantidade.

A segunda lei que demos como exemplo no parágrafo 2 oferece-nos uma ilustração flagrante disto. Durante muito tempo, os físicos não encontravam explicação para o facto seguinte: -- a maioria dos gases podia liquefazer-se por um aumento conveniente de pressão, mas outros, denominados então gases refractários ou permanentes (oxigénio, hidrogénio, azoto e alguns outros), suportavam as maiores pressões sem se liquefazerem. Só em 1863, Andrews mostrou a existência, para cada gás, de uma temperatura crítica, acima da qual não se podia obter a liquefacção. Ora, dava-se a circunstância de que, para os gases de que já se obtivera a liquefacção, essa temperatura era relativamente alta (157º para o anidrido sulfuroso, por exemplo), e, por esse motivo, às temperaturas a que normalmente se operava estavam criadas as condições de liquefacção. Para os gases refractários, porém, a temperatura crítica é extremamente baixa (-119° para oxigénio, -147° para o azoto, -240° para o hidrogénio) e, portanto, só abaixo dessas temperaturas, eles podem ser liquefeitos por aumento de pressão. Vê o leitor como só uma variação de quantidade (temperatura) permitiu dar uma explicação do fenómeno -- alteração de qualidade -- até aí misterioso?

Exemplos como este oferece-nos a história da Ciência em abundância.

Mas há mais...

4. O perigo do verbalismo

É tão fácil pôr um nome a uma coisa! arranjar um rótulo, para encobrir a nossa ignorância! E tão generalizada a tendência, em certas épocas históricas, para elevar os rótulos à categoria de explicação!

O físico francês Pierre Duhem, referindo-se, no seu belo livro A teoria física, à querela entre os cientistas de espírito moderno do Renascimento e os filósofos tradicionais da Escolástica, diz: "Aquilo de que os filósofos do Renascimento acusavam, acima de tudo, os filósofos escolásticos era de inventarem uma qualidade nova cada vez que um fenómeno novo lhes chamava a atenção; de atribuírem a uma virtude particular cada efeito que não tinham nem estudado nem analisado; de imaginarem que tinham dado urna explicação onde se tinham limitado a pôr um nome e de transformarem assim a Ciência num calão pretensioso e inútil".

E dá um exemplo célebre de explicação... verbalista: "A luz, ou antes, a iluminação é um movimento luminar de raios compostos de corpos luminosos que enchem os corpos transparentes e que são movidos luminarmente por outros corpos luminosos" (3).

Está o leitor vendo? Mas há mais...

5. Um exemplo célebre

O fenómeno do movimento dos corpos foi daqueles que primeiro atraíram as atenções dos pensadores, como dissemos no cap. IV da Parte l; lá mostrámos como esse problema esteve intimamente ligado à evolução da Matemática e da Filosofia na Grécia clássica. Apontámos também, embora ao de leve, como circunstâncias determinadas, principalmente de carácter político e social, induziram na ciência grega posterior ao século IV a.C. o horror do movimento (4).

Quer isto dizer que ele foi posto totalmente de parte? De modo nenhum! Procurou-se dar dele uma explicação que o relegasse para o museu das múmias e o tornasse consequentemente inofensivo, embora, existente. E como há sempre um filósofo para cada tarefa, por mais retorsa e macabra, esse filósofo surgiu, na pessoa de Aristóteles.

Aristóteles, que aliás conseguiu realizações interessantes em alguns domínios do pensamento, deu do movimento uma definição e uma teoria qualitativa tão subtis(5) que conseguiu torná-las totalmente incompreensíveis a este pobre ente -- o homem de-todos-os-dias e de-todos-os-lugares -- que, com trabalho e sangue, muito sofrimento e algumas alegrias, um pouco de capacidade de entendimento e grande dose de ilusão, vai encontrando, às apalpadelas, o seu caminho nesta maravilhosa Realidade de trevas e luz em que está mergulhado.

Só duma coisa parece ter-se esquecido Aristóteles -- de observar o movimento! O que foi origem dum percalço de vulto -- afirmar (Física, livro IV 216a) que "a experiência mostra que os corpos, cuja força é maior, seja em peso, seja em ligeireza, todas as outras condições iguais quanto às figuras, atravessam mais depressa um espaço igual e na proporção que as grandezas (peso ou ligeireza) têm entre si", afirmação que equivale a esta -- os corpos caem com velocidades proporcionais aos pesos -- e que a Física experimental mais tarde havia de desmentir totalmente(6).

6. Primado da explicação quantitativa

O leitor pode ver, pelos exemplos que apresentamos, como é grande o perigo de deslizar no abuso da explicação qualitativa. Os construtores da Ciência moderna, do Renascimento em diante, apercebendo-se desse perigo, deram rumo novo à barca da Ciência, dedicando-se à observação e experimentação, procurando medir, tentando explicar por variações de quantidade, tecendo uma teia de leis quantitativas.

O novo rumo da barca da Ciência está cheio de triunfos. No cap. IV desta Parte trataremos mais demoradamente deste assunto, mas queremos dar, desde já, um exemplo frisante. A 1ª lei de Kepler (parág. 2) é uma lei qualitativa; pois muito bem: essa lei e as outras duas leis de Kepler (estas quantitativas) estão englobadas, como se demonstra sem grande dificuldade, na lei da gravitação de Newton (parág. 2, III), que é o tipo perfeito da lei quantitativa(7).

Por toda a parte, em todos os ramos do conhecimento, há esta tendência para o quantitativo, para a medida(8), de modo tal que pode afirmar-se que o estado propriamente científico de cada ramo só começa quando nele se introduz a medida e o estudo da variação quantitativa como explicação da evolução qualitativa. É o que está acontecendo nos nossos dias a uma ciência em formação - a Psicologia - e a uma outra que desponta - a Sociologia; ambas se estão emancipando da descrição verbal e procurando atingir, lentamente, a idade da adolescência científica.

Com o significado e as restrições referidos no começo do parágrafo 2, podemos portanto falar, plenamente, no primado da lei quantitativa no seio da Ciência Moderna.

notas

[1] João Kepler, astrónomo que pode ser considerado como um dos precursores da Astronomia moderna (1571-1630) [voltar ao texto]
[2] Isaac Newton (1642-1727), físico e matemático, uma das figuras dominantes da Ciência moderna [voltar ao texto]
[3] Duma carta dirigida a Pascal pelo jesuíta Padre Noël, antigo professor de Descartes no colégio de La Flèche [voltar ao texto]
[4] V. o cap. IV desta Parte [voltar ao texto]
[5] Vide Física de Aristóteles, livro III [voltar ao texto]
[6] Por obra de Galileo (1564-1642), o fundador da Física moderna e o verdadeiro iniciador do método experimental em Ciência [voltar ao texto]
[7] Essa demonstração é uma parte da obra de Newton, Princípios matemáticos da filosofia natural, um dos maiores monumentos científicos de todos os tempos [voltar ao texto]
[8] Inclusive na Geometria, para explicar as formas das figuras (coisa essencialmente qualitativa). Vide cap. IV [voltar ao texto]

(CARAÇA, Bento de Jesus - Conceitos fundamentais da Matemática, p. 112-117)

Leia ainda:
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