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A
autora é prof. na Univ. Lusíada do Porto e na Esc. Sec. de
Almeida Garret
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Conceitos Fundamentais da Matemática, de Bento Jesus Caraça
Hoje, no ensino em geral e no da Matemática em particular, é fundamental que o professor saiba transmitir aos alunos o seu entusiasmo pela disciplina, sem o qual, por certo, dificilmente conseguirá motivar jovens que, à partida, têm uma variedade de interesses na qual não cabe, em geral, a Matemática. Mas esse entusiasmo e essa motivação são condicionados pelas concepções de Matemática que os professores foram construindo ao longo da sua formação e que em geral são concepções muito redutoras e parciais como seria a noção que teríamos de um cubo se dele apenas observássemos uma das faces. De facto à maioria dos professores de Matemática apenas foi mostrada a face limpa e depurada da Matemática que são as teorias formais, sem qualquer conhecimento dos caminhos tortuosos e cheios de percalços que foi necessário, tantas vezes, percorrer até chegar a essa pureza e desconhecendo, em absoluto, as razões/causas que levaram a essas teorias. As experiências de aprendizagem que são proporcionadas nas aulas de Matemática conduzem, em geral, a que ela seja vista como uma caixa fechada onde pode caber tudo (como a do Principezinho), de que muito poucos possuem a chave e na qual alguns conseguem observar umas "coisas" muito bem arrumadinhas e quase mágicas. A muito poucos foram proporcionadas experiências matemáticas que pudessem contribuir para a visão de uma actividade eminentemente humana, por isso, com erros, recuos e avanços, hipóteses não verificadas, verdades que deixaram de o ser, etc.. E no entanto quantas imperfeições e quantos saltos no vazio
levaram Arquimedes às espectaculares
descobertas que os matemáticos só conseguiram "purificar"
dois mil anos mais tarde provocando a seguinte afirmação
de Marcel Boll: Acerca do trabalho matemático numa das épocas mais ricas
da sua história - a da Revolução Francesa - citamos
(de cor) Lagrange: E quantas vezes escreveu Galois "não sei" na sua obra sobre Teoria de Grupos, um dos ramos mais importantes da Matemática, hoje com diversas aplicações, inclusive nas Ciências Humanas? E que dizer da exclamação de Cantor, a propósito das "coisas estranhíssimas" que descobriu no "reino" dos conjuntos infinitos: Vejo, mas não acredito!. Também Bento J. Caraça escreveria mais tarde que: No domínio do Infinito é perigoso entrar armado unicamente da intuição, do bom senso ... a lâmina da razão não pode aqui descansar. E as "catástrofes" que foram acontecendo sempre que as "verdades" - de que os homens tanto precisam para a sua segurança - foram sendo postas em causa, como aconteceu, por exemplo, com a descoberta dos incomensuráveis pelos pitagóricos; com a de que afinal não era o círculo a forma que, por excelência, regia o Universo, verificada por Kepler; com o ruir da única Verdade inquestionável (Kant), a da Geometria Euclidiana que, afinal, tinha irmãs tão legítimas quanto ela, não se sabendo hoje qual é realmente a geometria do Universo. *** Podemos, sem dúvida, afirmar que a Matemática está, ao longo da sua história, associada a atitudes/capacidades de interrogação, pesquisa, experimentação, verificação, reflexão e reformulação sem as quais ela, pura e simplesmente, não existiria. São essas, algumas das atitudes/capacidades que se pretende que os professores desenvolvam nos alunos. Como o podem fazer se, além de raramente as terem praticado na sua formação, desconhecem que elas são a essência da própria Matemática? Pensamos que pouco se mudará no ensino da Matemática se não mudarmos a forma como cada professor vê e entende essa Matemática e para essa mudança muito contribuiria o estudo e o debate, entre os professores, da obra de Bento Jesus Caraça - Conceitos Fundamentais da Matemática - recentemente reeditada [elementos bibliográficos]. De facto aí, além de nos apresentar, de forma excepcionalmente clara, o que é invulgar em bibliografia portuguesa, conceitos matemáticos cuja compreensão não é, em geral, fácil, B. J. Caraça mostra-nos uma Matemática de face humana, que se desenvolve em íntima relação com as sociedades de cada época cujas características influenciam, de forma clara, esse desenvolvimento. É através dessas relações que podemos encontrar respostas para questões como - porque é que a Matemática e a Física andam há muito mais tempo juntas que a Matemática e a Biologia? Como sabemos, durante muito tempo, o Homem preocupou-se, apenas, com a explicação do mundo exterior, dos fenómenos à sua volta, e só muito mais tarde com o seu próprio funcionamento (existindo mesmo entraves filosóficos ao estudo matemático do corpo humano) e dos outros seres vivos e ainda mais tarde com as suas reacções e comportamentos psíquicos, daí a existência tardia das Ciências Humanas e a muito recente aplicação da Matemática no seu estudo. *** B. J. Caraça mostra como o desenvolvimento da Matemática na Civilização Grega, na Idade Média, no Renascimento, na Revolução Francesa, etc., se processou orientado por questões e métodos de trabalho ditados pelas características sociais, económicas e culturais de cada época. Percebemos que a Matemática foi sempre a ferramenta com que filósofos e cientistas, desde as primeiras escolas filosóficas (Thales de Mileto) procuraram entender e modelar o mundo em que viviam fazendo com que em todas as épocas se evidenciasse uma "Ordenação Matemática do Cosmos": Os pitagóricos (séc. VI a.C.) explicavam o Mundo à custa dos números, mostrando que até as formas geométricas ou uma coisa tão etérea como a música era produzida por números, até que o modelo ruiu com a descoberta dos incomensuráveis. Das críticas à teoria pitagórica que levou a contradições como os paradoxos de Zenão, e da luta entre as escolas filosóficas que opunham ideias de permanência e estabilidade a ideias de contínua mudança e fluência, resulta a teoria platónica das Formas e das Ideias em que a Geometria é a essência do Universo. Devido ao falhanço da teoria pitagórica e na procura de uma identidade permanente e contra a fluência de Heraclito, Platão cria um sistema filosófico que toma a Figura, sobretudo o triângulo, como elemento base de explicação do Universo como pode ver-se lendo Timeo, um dos seus últimos Diálogos. Os 4 elementos (Terra, Ar, Água e Fogo) que se crê formarem toda a matéria, são associados a 4 dos sólidos platónicos (Cubo, Octaedro, Icosaedro e Tetraedro) reservando-se o Dodecaedro para o próprio Universo. B. J. Caraça caracteriza assim a sociedade grega:
Neste sistema, Idealista e de Elite, a Verdade não pode adquirir-se usando os sentidos, mas apenas o pensamento puro, sendo, por isso, vedada à maioria dos humanos. Arquimedes que usa processos experimentais e mecânicos e raciocínios que não se enquadram na filosofia da época não tem seguidores até cerca de vinte séculos mais tarde. A Matemática que se desenvolve é então uma matemática geométrica, finita e estática como se verifica nas definições seguintes de Euclides:
B. J. Caraça mostra-nos como a sociedade medieval de características diferentes vai já fazendo antever a mudança que se tornou mais real e efectiva a partir dos séc. XV/XVI.
As necessidades da nova sociedade não se compadecem com filósofos de tradição platónica, tranquilos, de situação privilegiada, discorrendo sobre a natureza metafísica e poliedros regulares, com desprezo pelo manual e mecânico. É antes necessário estudar os materiais com que devem ser fabricadas as armas para mais eficazmente se defenderem dos senhores feudais e os instrumentos que usarão nos seus ofícios e no estudo necessário às viagens cada vez mais usadas entre as diversas cidades. O filósofo antigo protegido pelo desprezo altivo pelo manual e mecânico é substituído pelo cientista novo que constrói os seus próprios instrumentos de trabalho que, tal como a luneta de Galileu, hão-de pôr fim a vinte séculos de filosofia estéril. E verifica-se um novo rumo para a Ciência:
Com Kepler e Galileu, a forma circular (concepção finitista) deixa de ser a forma adequada ao Universo e o lugar do movimento natural passa a ser a recta (concepção infinitista) (p.216/217). Renasce o ideal de Ordenação Matemática do Cosmos mas agora com o movimento elíptico e a quantificação dos fenómenos. Descartes ao explicar quantitativamente as formas junta definitivamente a álgebra e a geometria e Newton, reforçando o referido ideal com a lei de Gravitação Universal, dá ainda um novo impulso ao conceito filosófico de fluência apresentando o método dos limites e fazendo renascer Arquimedes e Heraclito (p.252). É admirável como B. J. Caraça nos faz ver surgir conceitos como o de variável, infínitésimo ou limite de uma forma tão natural e integrada nas questões da época, que parece não poder ser de outro modo. Percebemos também de forma clara como, sempre que se dá uma crise como a descoberta da incomensurabilidade, se faz (sempre lentamente, como nas crises sociais) a integração dos novos conceitos de forma a que se mantenha todo o sistema de forma coerente. Aconteceu com a integração dos irracionais, dos negativos, etc., alargando sempre o conjunto numérico de forma a que não se verifiquem incompatibilidades. *** Poderíamos estender a perspectiva de integração
da Matemática nas sociedades em que se desenvolveu pensando no
desenvolvimento da geometria projectiva com os pintores do Renascimento,
ou no desenvolvimento da geometria descritiva na Revolução
Francesa - Napoleão fazia-se acompanhar, nas suas campanhas, de
eminentes matemáticos como Monge, Carnot e Fourier, devendo-se
ao primeiro a criação de l'École Polithecnique, berço
dos maiores matemáticos dos anos seguintes. A questão que
se nos coloca é, se nos temas em estudo na Matemática actual
se podem estabelecer o mesmo tipo de relações ou se, pelo
contrário, esse estudo se faz mais ou menos divorciado das restantes
actividades humanas.
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