O aparecimento de José
Gomes Ferreira na literatura portuguesa deu um impulso novo
ao problema da «sinceridade», que nele como em Fernando
Pessoa, por exemplo, é um problema de fundo.
Pessoa disse: «o poeta é um fingidor».
E a partir deste velho conceito assim reformulado, fingiu, entre
outras coisas, a existência de mais três ou quatro poetas:
os célebres heterónimos.
Cada heterónimo fingiu, por sua vez, um estilo próprio,
uma técnica inconfundível de levar a cabo o fingimento
que é toda a poesia. Porém,
no processo de Pessoa, há qualquer coisa ainda (pudor, comedimento,
preconceito?) que o impede de abrir de lado a lado a porta da oficina.
Alberto Caeiro, Ricardo
Reis ou Álvaro de Campos,
transformados em criadores independentes, tomam o papel a sério.
Nunca mostram o jogo, rodeiam de segredo o seu trabalho poético.
Fingem que não fingem.
Com a Poesia-I de José Gomes Ferreira,
surge finalmente o «falsificador» convicto, que não
se serve de comparsas e assume a responsabilidade de todas as contradições
e paradoxos. Ao desdobramento de
Fernando Pessoa para fingir melhor, que é ainda uma forma
de autodefesa literária, prefere José Gomes Ferreira
que tudo lhe recaia nos ombros (num único estilo, num único
nome). Pessoa é o mestre da «mise en scène»:
actores, subtilíssimas cortinas, etc. A mágica resulta
em cheio, mas há nos bastidores uma presença invisível,
tutelar. José Gomes Ferreira está sozinho no palco.
Sem ajudantes nem ensaios prévios, faz o seu número
de prestidigitação. O espectador pode vê-lo
reinventar o riso, a cólera, a ternura. Deixar cair de quando
em quando uma ou outra máscara acidental e tropeçar
para apanhá-la. Desgrenhar-se. Gritar, murmurar, trocar o
passo. E soluçar, se for preciso. É o «one man
band». O artista solitário, que constrói e destrói
a própria solidão, pedindo a cumplicidade da plateia
(vejam como isto se fabrica) e manejando ao mesmo tempo a imprecação,
a metáfora torrencial, os
comícios políticos e existenciais, o contraponto do
monólogo em voz baixa, os dísticos para despistar
(ou talvez não).
Evidentemente, a importância de José
Gomes Ferreira não se resume à simples coragem de
escrever em público. Melhor: essa coragem é um gesto
denso de implicações, pressupostos, consequências.
Para compreendermos bem os pormenores e o significado do espectáculo,
que o poeta envolve num halo feérico de espanto, tomemos
nota do seguinte:
a) o surrealismo,
o neo-realismo e certo existencialismo
é ele que os antecipa entre nós;
b) a sua obra galvaniza numa percepção
originalíssima da modernidade vários fios condutores
que vêm de trás e estabelece a mais complexa rede de
energia poética que circula em versos portugueses de hoje:
c) verso a verso, poema a poema, série
a série, os volumes da Poesia comentam a época tumultuosa
que vivemos e as suas zonas de paz pobre, podre, com a exuberância
dum panfleto, enquanto algures, na misteriosa ambiguidade em que
se movem os artistas maiores, «um pássaro qualquer»
essencialmente «canta, explica as flores»;
d) certos momentos mais intensos amplificam
esta voz da Terra, mas nada lhe responde: estamos cercados por astros
silenciosos e indiferentes;
e) não esquecer, enfim, que a prosa de
José Gomes Ferreira (vagabundagens, invenções,
memórias, diários verdadeiros ou imaginados, um admirável
romance para crianças grandes e pequenas) é o prolongamento
da sua poesia. O mesmo toque chaplinesco,
a mesma descoberta do «irreal quotidiano», o mesmo sobressalto
diante das estrelas.
- De José
Gomes Ferreira e para comemorar o 25
de Abril, o
Canto publicou (inserido num conjunto de poemas sob o
título A cor da liberdade),
o poema Ah! Como te invejo.
- Uma
das mais conhecidas canções heróicas
de Fernando Lopes Graça tem poema de J. Gomes Ferreira:
Acordai. Encontra-a
aqui
(em formato mp3, 1.91MB).
- O conhecido
poema Autopsicografia
de F. Pessoa (cujo 1º verso é o citado "O
poeta é um fingidor") encontra-se aqui.
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