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Da Filosofia à Ciência
1.°) Na antiguidade, a filosofia confundia-se com a ciência; ou melhor, a ciência não se distinguia da filosofia; a ciência moderna — com seu ideal de medida e verificação e seus métodos rigorosos — ainda não havia nascido, e já a palavra filosofia designava o conjunto do saber. Aristóteles, por exemplo, declarava: "Concebemos o filósofo, primeiro que tudo, como possuindo a totalidade do saber, na medida do possível". No século XVII, a palavra filosofia ainda é, comumente, sinónimo de "ciência física". Por exemplo, a obra fundamental em que Newton expõe sua mecânica intitula-se "Princípios matemáticos de filosofia natural". Em página muito célebre de seus "Princípios de Filosofia", Descartes declarava que "toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física e os três ramos principais a mecânica, a medicina e a moral". Assim, não só a metafísica ou filosofia primeira (estudo de Deus, da alma, do conhecimento em geral) e a moral são para Descartes, como para nós, disciplinas filosóficas; mas "ciências" no sentido moderno — como a física, a mecânica ou mesmo as técnicas — ciências aplicadas como a medicina, fazem parte da filosofia. Aliás, as quatro partes de que se compõem os "Princípios de Filosofia" intitulam-se respectivamente: "Dos princípios do conhecimento humano", "Dos princípios das coisas materiais", "Do Mundo visível" etc. e, finalmente, "Da Terra". |
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2.°) No decorrer da história, entretanto, as diversas ciências
que se confundiam com a filosofia separaram-se, como ramos de um tronco
comum, dessa filosofia inicialmente considerada como saber universal. Muito
cedo, a matemática, com a geometria de Euclides
e a mecânica de Arquimedes libertaram-se
da tutela filosófica; depois a física, com Galileu
e Newton, abandonou totalmente a metafísica de que dependia. Em
seguida, foi a vez da química, que se constituiu em oposição
à alquimia (recorde-se a procura
da "pedra filosofal"), com Lavoisier.
Finalmente, no século XIX, a biologia iria conquistar sua independência,
anunciada, desde 1802, por Lamarck e realizada
por Claude Bernard.
Irá a "filosofia" conservar um domínio que propriamente lhe pertença? Alguns seriam tentados a reservar-lhe o estudo do homem. Já Sócrates, deixando o universo aos deuses, via na reflexão sobre si mesmo a vocação própria da filosofia: "Conhece-te a ti mesmo". Mas as ciências, actualmente, penetraram no domínio humano. Comte, desde a metade do século XIX, considerava-se o fundador de uma "sociologia" científica. A sociologia e a psicologia propõem-se, actualmente, a aplicar aos factos humanos o método experimental e a medida. A psicologia, no curso secundário francês, ainda é estudada no curso de filosofia; mas todas as universidades estrangeiras ligam o departamento de psicologia à faculdade de ciências... A própria "orientação de consciência", com a psicanálise, tende a tornar-se uma técnica científica! Assim, o domínio da filosofia seria, progressivamente, restringido até desaparecer. Augusto Comte pensava que o conhecimento científico representava a maturidade do espírito humano. No início de sua história os homens adoptavam explicações teológicas (a tempestade seria explicada como um capricho do deus dos ventos Éolo); mais tarde, substituíram os deuses por forças abstractas, tendo-se, desse modo, a explicação metafísica (a tempestade explicada pela "virtude dinâmica" do ar). Finalmente, a explicação moderna, positiva ou científica, renuncia a imaginar o por que último das coisas, limitando-se a descrever como se passam os factos. Trata-se de unir os fenómenos entre si, de descobrir "leis naturais invariáveis" às quais estão sujeitos. O vento, por exemplo, é um deslocamento de ar das camadas de alta pressão para as de baixa pressão atmosférica (as observações barométricas das diversas estações meteorológicas permitem, assim, a previsão das tempestades). O espírito positivo teria, portanto, afastado, sucessivamente, a teologia e a metafísica da matemática (que ainda era, com Pitágoras, magia e mística do número), da astronomia, da física, da química, da biologia e da sociologia, tornando-se positivas as ciências nessa mesma ordem, que é a da complexidade crescente. 3.°) A evolução indicada por Augusto Comte é exacta em suas linhas gerais. Devemos concluir daí, com os partidários do cientificismo, que a filosofia não tem mais objecto, que as ciências são o suficiente? Essa não era a opinião de Augusto Comte, que deixava à filosofia um lugar essencial. O filósofo é, para ele, o "especialista das generalidades", aquele que focaliza o conjunto da evolução Emancipa ências. Ademais, para Comte, as ciências mais "complexas" dependem das mais simples. É preciso ser matemático para fazer física, químico para fazer biologia. O sociólogo que estuda esse "organismo complexo e dependente" que é "a humanidade", necessita, pouco a pouco, conhecer as outras ciências que estudam, precisamente, as condições de existência da humanidade (por exemplo: a biologia que estuda nosso corpo, a física e a química que estudam o meio externo). Enfim, o sociólogo-filósofo conhece todas as ciências e faz a síntese de seus ensinamentos, para poder dirigir a humanidade racionalmente. Certamente, é hoje impossível pedir ao filósofo que seja um sábio em todas as especialidades. Podemos, ao menos, exigir dele uma cultura geral que não seja uma ignorância enciclopédica. Inicialmente, podemos ver na filosofia uma reflexão de conjunto sobre a história das ciências e os problemas suscitados pelo conhecimento científico — note-se que dizemos uma reflexão e não uma soma de conhecimentos. A filosofia não é a adição das ciências, ela, dizia Thibaudet, "não é a ciência de tudo, mas a ciência do todo"; isto é, uma visão unificada do mundo que encontra seus elementos nas diversas ciências que exploram, cada uma, um domínio particular. Mas também é desejável que o filósofo estude, de maneira mais precisa e mais profunda, esta ou aquela ciência. Podemos especializar-nos na filosofia da história, na filosofia da biologia, na filosofia do direito. Disse um contemporâneo, e muito justamente, que "toda boa matéria lhe é estranha", entendendo com isso que a filosofia não deve ser uma meditação vazia, mas uma reflexão alimentada por informações precisas sobre este ou aquele domínio do real. Portanto, se as ciências positivas se desprenderam progressivamente das especulações filosóficas (o que, em contrapartida, criou uma disciplina especializada da filosofia), resta que a filosofia não poderia perder o contacto com a evolução das ciências e das técnicas, a qual fornece temas preciosos para suas reflexões. Todavia, a ciência não pode substituir a filosofia: ''A filosofia", dizia Brunschvicg, "é a ciência dos problemas resolvidos". Dito de outra maneira: a solução de uma questão científica levanta, para o filósofo, outro problema, que é o problema filosófico do conhecimento científico. A ciência procura e encontra verdades. Mas a pergunta: "Qual é a essência da Verdade ou das verdades?" é uma questão filosófica. Fazer filosofia da matemática não consiste em demonstrar teoremas, em descobrir novas propriedades dos números ou das figuras. Isso é contribuição do matemático. Fazer filosofia da matemática é perguntar como raciocina o matemático, que é uma demonstração, qual a origem das noções matemáticas, qual o fundamento dos postulados que nos pedem que admitamos. A ciência constrói todo um edifício de teorias. A filosofia escava sob suas construções para explicar seus fundamentos. Enquanto o sábio procede por construções, o filósofo procede por escavações. A conduta da filosofia é reflexiva. Ademais, não se trataria de reduzir a filosofia a uma reflexão sobre a ciência. Ela também medita sobre a arte, sobre a vida quotidiana, sobre todas as experiências vividas. "Nada de humano pode ser estranho" à filosofia. Paul Valéry escrevia: "Considero filósofo todo homem, qualquer que seja seu grau de cultura, que procura, de tempos em tempos, dar a si mesmo uma visão de conjunto, uma visão ordenada de tudo o que sabe". Mostraremos nos capítulos seguintes, por exemplo, que a filosofia também pode meditar sobre a conduta humana, na medida em que é dirigida pelo desejo do "bem", sobre a conduta moral. |
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