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O céptico do outro lado do espelho

O nº de Jan/2001 da revista magazine littéraire incluiu um dossier de 40 páginas com o título le retour des sceptiques. Dele se fez uma síntese publicada no Canto sob o título O regresso do cepticismo. A propósito da inclusão de Descartes no dossier António Valdemar Oliveira escreveu:


 
 

 

DESCARTES E O CEPTICISMO
 


O cepticismo é algo que me interessa. O texto do Canto é um resumo muito resumido e não consegui entrar no Magazine Littéraire, mas deixe-me dizer-lhe que meter ali o Descartes é um pouco radical!... Quanto ao cepticismo de Santo Agostinho ou de Nietzsche... Bem... Quem escreveu o artigo lá sabe, mas gostaria que me explicassem isso!...

Descartes nunca teve uma atitude céptica. Pelo contrário, todo o percurso é feito com o objectivo fundamental de atingir o conhecimento e nunca de o negar. Não sei de onde vem o hábito de ligar o termo "dúvida" cartesiana à dúvida céptica, mas penso que isso é um erro. A dúvida céptica é radical, é como que o "fim último" do filósofo; a dúvida cartesiana é completamente o oposto: é precisamente o início de todo o conhecimento!... A dúvida céptica é a conclusão depois da reflexão -- nunca é possível saber. Nada!... A dúvida cartesiana é o início da reflexão...

Mas deixe-me fazer uma pergunta que pode ficar no ar, sobre um assunto que me interessa em particular:

Há espaço para o cepticismo na filosofia contemporânea -- ou "pós-moderna" se quiser, as gavetas não me interessam --, quando o domínio dos campos científicos exploram todas as hipóteses até à exaustão e, apesar dos avanços, das negações, da derrapagem das verdades de hoje para as verdades de amanhã, explicam (quase) todos os domínios da natureza e do conhecimento?

Coloco a dúvida céptica do quase, porque há muito por explicar. Mas isso deve-se ao facto de não ter explicação ou apenas ao facto de a ciência ainda não ter explicado?

Veja-se a descoberta do genoma humano, da clonagem, dos alimentos transgénicos. O homem ultrapassa constantemente os limites que lhe foram impostos pela sua própria natureza. Ou seja: o facto de não conhecer é precisamente a mola que o leva a conhecer. Isso não anula todo o fundamento do cepticismo?....

(António Valdemar Oliveira)

 

É bastante consensual a referida distinção entre a dúvida céptica e a cartesiana. E o artigo (de Jean-Pierre Cavaillé) que no referido dossier analisa o pensamento de Descartes não rejeita essa análise; o que faz é sublinhar a dívida do pensamento cartesiano (e, nomeadamente, da dúvida) a uma ambiência céptica que atravessava o espírito da época e o filósofo explora conscientemente. Assim:

"É necessário insistir sobre tudo o que Descartes deve a esse cepticismo revigorado [por Montaigne, nomeadamente], que funda uma ética do eu sobre a dúvida e anula todas as autoridades e todos os preconceitos -- incluindo, para os mais radicais dos seus defensores, os que constituem a religião --, sobre tudo aquilo que ele deve também a esse cepticismo difundido pela cultura barroca que seculariza a ideia cristã da vaidade, inconstância e inconsistência do mundo. Se não, não se pode compreender porque é que o primeiro conhecimento é o do "eu existo", e porque é que o conhecimento de Deus depende deste -- um Deus de filósofo (Pascal nisso tem razão), um Deus da razão e não da -- porque é que enfim a realidade do mundo é nas Meditações um problema de tão difícil resolução.

A argumentação da dúvida, em todos os textos em que Descartes desenvolve a sua metafísica (Recherche, Discurso do método, Meditações, Princípios) explora deliberadamente um cepticismo profundamente entranhado na cultura da época: os sentidos não são "enganadores" de que se deve desconfiar? A evidência fenoménica, que era a única certeza do antigo pirronismo, é de repente posta em causa através da suspeita de "embuste", alimentada por uma concepção das artes visuais como falsa aparência [trompe-l'oeil] e do mundo sensível como artifício. A eventualidade da loucura, que de facto não é afastada senão para ser radicalizada pela do sonho (loucura total dos homens mais sábios), repousa naturalmente sobre os jogos de inversão e de confusão da loucura e da sabedoria, cultivados no século precedente por Erasmo (Elogio da loucura) e levados ao paroxismo pelo teatro contemporâneo (por exemplo A loucura do sábio [La folie du sage] de Tristão o Eremita). O argumento do sonho, como o da loucura, estava fundado em Sexto sobre a igual dignidade fenoménica das impressões de ambos os estados considerados (sonhos/vigília) e portanto sobre a evidência da sua distinção. Descartes, depois de Montaigne, apoia-se na experiência contrária da sua confusão e, muito significativamente, reenvia o seu leitor para o lugar comum da ilusão teatral: "nunca ouviram esta frase de espanto, nas comédias: estarei acordado ou a dormir? Como é possível estar certo de que a vida não é um sonho contínuo?" (Recherche de la vérité. Lembramo-nos evidentemente de A vida é sonho de Calderón, mas o tema está omnipresente no drama europeu do século XVII). Vê-se bem, portanto, que estas razões cépticas que permitem a Descartes estender larga e profundamente a dúvida -- o argumento do sonho na Recherche e no Discurso é suficiente para alimentar a hipótese de uma falsidade geral de todos os pensamentos -- efectivamente vêm em primeiro lugar de uma experiência particular do mundo, comum ao autor e ao seu público, na partilha de uma mesma cultura, que se apropriou da (e transformou a) tradição céptica. O mesmo se pode dizer dos famosos argumentos que Descartes diz ter querido acrescentar nas Meditações às "objecções habituais dos cépticos", para acabar de mergulhar "o homem nas maiores dúvidas" (Entrevista com Burnan): Deus que poderia enganar-me, dada a sua omnipotência, e um qualquer génio maligno, "muito poderoso e muito manhoso", que "utiliza toda a sua astúcia para me enganar constantemente" (primeira e segunda Meditações). Estão bem presentes nos escritos de teologia e de apologética do século XVII: a refutação de um possível embuste divino, antes de servir para fundar a ciência (como em Suarez), serve geralmente para fazer frente às razões cépticas e ímpias dos libertinos que investem ironicamente contra este velho tema da teologia do século XIV para mostrar quão pouca confiança nos merecem os livros revelados por um Deus capaz de mentir. E o génio maligno, apresentado como uma ficção destinada a manter o esforço da dúvida radical, estabelece subtilmente uma relação irónica com o grande conflito em torno da realidade dos bruxos e dos espíritos demoníacos que opõe a ortodoxia da Contra-reforma aos espíritos fortes de todos os lados.

Descartes coloca-se assim muito deliberadamente, incluindo a sua maneira de duvidar, entre o cepticismo, libertino ou cristão, e as diversas formas de dogmatismo empenhadas na refutação externa daquele, seja para proteger o velho edifício aristotélico, seja para introduzir a nova ciência galilaica, seja ainda para salvar a fé em perigo. Entre e sobretudo contra eles: porque é pela sua prática original da dúvida que ele mostra a insuficiência dos dogmatismos que invocam os sentidos, a razão ou a fé contra o cepticismo sem ousar submeter-se à prova da dúvida -- como também a fraqueza dos cépticos, que a seu ver se comprazem numa incerteza e indecisão sem saída ("não duvidam apenas por duvidar", diz o Discurso do método). De facto o céptico não duvida o suficiente: bastar-lhe-ia levar um pouco mais além a sua dúvida, pôr em questão não apenas as representações mas as próprias coisas, duvidar da existência de todas as coisas e até da sua própria, para a partir daí constatar a impossibilidade de tal dúvida e abraçar a primeira certeza.

Uma tal dúvida, claramente metafísica, que repousa sobre uma decisão, e postula a liberdade da vontade, é funcionalmente estranha ao cepticismo antigo. Sexto Empírico constatava passivamente a igualdade de forças dos fenómenos e dos númenos, opostos de todas as maneiras possíveis. Instrumento voluntário, forjado como meio "para rejeitar a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha e a argila" (Discurso do Método), a dúvida cartesiana é uma máquina, como lhe censura Gassendi, o grande objector céptico das Meditações, isto é, um artifício metodológico proposto sem consideração das evidências fenoménicas. Mas é exactamente uma tal máquina que Descartes quer construir: para estabelecer a verdade, trata-se, como ele explica no Discurso, de rejeitar "como absolutamente falso" tudo aquilo em que ele possa imaginar a menor dúvida. O céptico coerente abstém-se de considerar que seja falso ou verdadeiro o que lhe aparece na dúvida: o seu juízo está suspenso e não finge saber quando não está seguro de nada. Limita-se a constatar o desacordo, a discordância das impressões e dos argumentos, mantendo-se assim em equilíbrio isostático. Não é que Descartes, fingindo que tudo é falso, transgrida arbitrariamente a suspensão dubitativa; pelo contrário, suscita-a artificialmente, até envolver na dúvida as coisas de cuja verdade não haveria a menor dúvida, dada a sua probabilidade: por exemplo, que há um mundo, que eu tenho cabeça, mãos, que dois e três são cinco, que há um Deus todo-poderoso e cheio de bondade... (primeira Meditação). Na verdade, longe de decretar a falsidade daquilo que é apenas duvidoso, apenas a simula, para chegar ao "inabalável", àquilo cuja falsidade é impossível fingir: de facto, não seria capaz de fingir a falsidade da proposição "penso, existo", a partir do momento em que a pronuncio e a penso."


 
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