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A HERMENÊUTICA



J.-M. BESSE e A. BOISSIÈRE, Précis de philosophie. Paris: Nathan, 1998, p. 52-53

 
A hermenêutica é a arte de compreender, de interpretar, de traduzir de maneira clara signos inicialmente obscuros. A primeira função da hermenêutica foi entregar aos profanos o sentido de um oráculo. A hermenêutica progressivamente penetrou no domínio das ciências humanas e da filosofia.

A hermenêutica como técnica de leitura

A hermenêutica é, originariamente, uma disciplina filológica, isto é, uma técnica de leitura, orientada para a compreensão das obras da Antiguidade clássica (Homero) e dos textos religiosos (a Bíblia). As operações filológicas de interpretação desenvolvem-se em função de regras rigorosamente determinadas: explicações lexicais e gramaticais, rectificação crítica dos erros dos copistas, etc., e ainda interpretação alegórica e moral destinada a colocar em destaque o carácter de exemplaridade do texto. O horizonte desta técnica é o da restituição de um texto ou de uma palavra, mais fundamentalmente de um sentido, considerado como perdido ou obscurecido. Numa tal perspectiva, o sentido é menos para construir do que para reencontrar, como uma verdade que o tempo teria encoberto.

Hermenêutica e ciências humanas

– No início do século XIX, com o teólogo protestante Friedrich Schleiermacher (1768-1834), assiste-se a uma generalização do uso da hermenêutica. Esta, embora conservando os seus laços privilegiados com os estudos bíblicos e clássicos, visa a partir de agora todo o campo da expressão humana. A atenção está cada vez mais orientada não apenas para o texto mas para o seu autor. Ler um texto, é dialogar com um autor e esforçar-se por reencontrar a sua intenção, é procurar compreender um espírito por intermédio da decifração das obras nas quais ele se exprimiu.

– É, entretanto, com a obra do filósofo alemão  Wilhelm Dilthey (1833-1911) que a hermenêutica assume o estatuto de um método de conhecimento especialmente apto para dar conta do facto humano, irredutível em si mesmo aos fenómenos naturais. O texto a interpretar é a própria realidade humana no seu desenvolvimento histórico. Aplicado ao estudo da acção histórica, o acto hermenêutico deve permitir restituir por assim dizer “do interior” a intenção que guiou o agente no momento em que ele tomava tal decisão, e permitir assim alcançar a significação desta acção. Dilthey introduz com efeito um postulado: “A riqueza da nossa experiência permite-nos imaginar, por uma espécie de transposição, uma experiência análoga exterior a nós e compreendê-la...”. Se nos é possível compreender o outro, é porque temos a possibilidade de imaginar a sua vida interior a partir da nossa, por uma transposição analógica.

A hermenêutica como situação humana

O filósofo alemão Hans Georg Gadamer (nascido em 1900) mostra, em Verdade e Método (1ª ed., 1960), que a interpretação, antes de ser um método, é a expressão de uma situação do homem: o intérprete que aborda uma obra está já situado no horizonte aberto pela obra (é o “círculo hermenêutico”). A interpretação é antes de mais a elucidação da relação que o intérprete estabelece com a tradição de que provém.
 
 

DA EXEGÉSE À EXISTÊNCIA

O sentido da hermenêutica cristã

A hermenêutica cristã atribui-se a tarefa de restituir o sentido oculto da Bíblia. É assim que, a partir da Idade Média, se constitui a distinção de quatro níveis de significação, cuja exegese deve permitir aos fiéis aceder a uma verdadeira compreensão da mensagem divina:

– o sentido literal, ou sentido histórico, que circunscreve a significação primeira das palavras e estabelece os dados factuais;

– o sentido alegórico, onde se restitui o conteúdo espiritual escondido sob a letra, onde se revela que os textos sagrados dizem uma coisa diferente da que dizem à primeira vista;

– o sentido tropológico, ou moral, impõe-se a partir do momento em que a Bíblia é escolhida como livro de vida, quer dizer, orientado  para a conversão do coração;

– o sentido anagógico, ou místico, que reenvia para o movimento da alma em direcção à transcendência, para o além, e a inscreve no horizonte da salvação, que constitui as raízes da doutrina cristã.

Entretanto, este percurso dos diferentes planos de significação não é uma simples técnica de leitura. Deve ser ainda entendido como o aprofundamento de um exercício de meditação no seio do qual o leitor, que é também um fiel, acede progressivamente à compreensão da palavra divina.

Heidegger: uma hermenêutica da existência

Heidegger opera duas rupturas em relação à concepção de hermenêutica desenvolvida por Dilthey:

1. A hermenêutica não é já entendida no quadro de uma teoria do conhecimento. Ela não é simplesmente um problema de metodologia das ciências humanas. Não se trata já, como em Dilthey, de opor o acto de compreensão própria das ciências humanas ao movimento da explicação característica das ciências da natureza. A compreensão não é mais entendida, com Heidegger, como o acto cognitivo de um sujeito descomprometido com o mundo, mas antes como uma dimensão essencial da existência. Compreender é um modo de estar antes de ser um método científico.

2. Correlativamente, a questão da compreensão já não está, em Heidegger, ligada ao problema do reencontro do outro. Com Heidegger, a interrogação hermenêutica considera menos as minhas relações com o outro do que  a relação que eu estabeleço com a minha situação no mundo. O horizonte da compreensão é a captação e a elucidação de uma dimensão primordial, que precede a distinção sujeito/objecto: a do ser-no-mundo do homem. A hermenêutica, como dimensão da existência, está antes de mais orientada para o “mundo do eu” [no original: “monde du soi”].



(Tradução de A. Gomes)

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