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Poesia e Metafísica
Heidegger diz algures que o poeta e o filósofo habitam montanhas muito próximas separadas por profundo abismo. Seria difícil caracterizar esta proximidade e esta separação. Poesia não é filosofia e filosofia não é poesia. A poesia move-se num campo de liberdade espiritual vedado à filosofia; esta, no seu modo austero, parece alheia aos sentimentos mais fundos da vida humana. Enquanto a poesia voa livre e cria o seu próprio movimento e até a própria verdade, a filosofia pretende cingir-se ao real, ser ciência da ultimidade, dos princípios inteligíveis do ser. Poesia e Filosofia opõem-se pela forma de pensamento e de expressão. E contudo a grande poesia, mesmo quando explicitamente não trabalha sobre motivos filosóficos, traz à luz a verdade dos grandes temas humanos. Será sem verdadeiro alento e sem resistência para a doença do tempo aquela poesia que não levar dentro as magnas preocupações dos homens. E aquela filosofia que não for portadora de vida e não suscitar as capacidades humanas de criar imagens e símbolos, não faz história. Fernando Pessoa é, talvez, o poeta de língua portuguesa em que a poesia e a filosofia mais se aproximam apesar do abismo que as separa, o que sugere várias considerações que parecem merecer atenção. Em primeiro lugar, uma questão de linguagem. O escritor que é poeta, e grande poeta, dá à língua em que se exprime uma ductilidade e maleabilidade que a torna apta para exprimir o pensamento. Um estudo da linguagem ontológica de Fernando Pessoa mostraria possibilidades expressivas da língua portuguesa, no domínio da ontologia metafísica, como não conheço em nenhum outro escritor que fale português. Não é minha intenção documentar agora esta afirmação. Em segundo lugar, penso ser caso único na literatura portuguesa, que o tema-base da obra poética de um grande autor seja a meditação metafísica sobre o ser. Creio até, e nisto nos detemos adiante breves momentos, que este é o centro da interpretação de toda a obra pessoana. Interpretação que não só projecta luz sobre a questão tão debatida dos heterónimos, mas sobretudo abre o acesso para a compreensão da temática poético-filosófica de F. Pessoa. Finalmente, a tentativa frustrada de escrever um drama, de que nos restam fragmentos nos Poemas Dramáticos do primeiro Fausto, encontra explicação no carácter fragmentário dos textos filosóficos em prosa e em verso, do Autor da Mensagem. Sendo um poeta tão estudado em Portugal e Brasil, como mostram as edições da obra poética e os estudos publicados, é de algum interesse compreender F. Pessoa para entrarmos na própria alma. Indiquei três tópicos: F. Pessoa como criador de linguagem filosófica e de imagens poéticas carregadas de sentido metafísico, o problema dos heterónimos que pode ser aclarado à luz da sua meditação sobre o ser, e a sua aspiração a compor um drama que condensasse a sua maneira de ver o mundo, o homem e a si mesmo. Fixar-nos-emos nos dois últimos aspectos que facilmente se reduzem a um só, pois que os heterónimos são os personagens desse drama. Ao mesmo tempo nos textos citados, apresentam-se exemplos do valor expressivo da sua linguagem poético-filosófica. Para sermos breves e claros, atemo-nos a um poema caracteristicamente metafísico de que salientamos os momentos decisivos. O poema é de Álvaro de Campos e intitula-se: «Ah, perante esta única realidade que é o mistério...». Neste poema, distinguimos quatro momentos. No primeiro, F. Pessoa situa-nos frente ao mistério do ser com um vocabulário que surpreende, porque se antecipa a Marcel, a Sartre, a Heidegger e conjuga a admiração grega com a vertigem, a angústia, o medo dos modernos, diante do enigma do ser. «Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Ser é mistério (Marcel), é abismo (Abgrund, Heidegger); mistério e abismo «por simplesmente ser». O mistério de ser e o horror perante ele é dos temas maiores de toda a obra de F. Pessoa: só um texto, de entre dezenas que se poderiam apresentar, para exprimir matizes da mesma ideia: «Mais que a existência
Mistério que perturba e enche de medo:
E F. Pessoa num segundo momento, mostra como «Perante esta única realidade terrível», as empresas humanas se apagam e se ergue em toda a grandeza enigmática a transcendência impossível: «—Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Porque tudo é, porque vidas, formas, Deuses, Deus, Destino são e F. Pessoa os situa na mesma linha, não pode compreender a transcendência. Seria além-ser, e além-Deus, «coisa tremenda e negra e impossível». Não se pode não pensar o ser; não se pode fugir ao ser; não se pode decifrar o mistério que nos envolve. F. Pessoa não entrevê a possibilidade de uma transcendência metafísica que o fascina porque alinha os seres numa série e não lhe ocorre a possibilidade metafísica da participação, apesar da meditação atenta e minuciosa em prosa e em verso sobre a cisão no ser, o intervalo, o interstício, o entre. “Por isso ser possível haver ser é maior que todos os Deuses» (Fim do poema). F. Pessoa pensa que ser possível haver ser é anterior a ser. Daí o pavor, o medo, a angústia, no terceiro momento do poema. «Minha inteligência tornou-se um coração cheio
de pavor,
A tensão quebra-se e Fernando Pessoa (A. de Campos) submerge-se no reino escuro da morte e da inconsciência. É o quarto e último momento. Primeiro, o Homem face ao mistério que interroga à busca de uma resposta; depois a reacção de admiração ou de angústia perante o «abismo de tudo ser um abismo», perante «o mistério do mundo»: “O íntimo, horroroso, desolado / Verdadeiro mistério da existência, / Consiste em haver esse mistério /, (Poemas dram. XXIII); é o fracasso do conhecimento. Fugir ao ser, impossível: Fugir ao pensar, só não pensando. E parece-me estar aqui a raiz do heterónimo Alberto Caeiro: A alternativa da metafísica é a recusa do pensar, porque o pensamento é uma doença. Em vez do pensar, o que lança o homem na vertigem do impossível da transcendência, vertigem grandiosamente descrita na Ode marítima em que a multiplicidade devora a unidade que por sua vez tudo invade e provoca a admiração no I Fausto: «Ah, que diversidade, / E tudo sendo» (Poemas Dramáticos, XXIII), A. Caeiro vê. A. de Campos pensa: e pensar impede de ver. Há uma autêntica dialéctica ver-pensar. As possibilidades abertas à inteligência pela questão ou pelo mistério do ser, originaram as personagens heterónimas de F. Pessoa, enquanto A. de Campos pensa, A. Caeiro vê e F. Pessoa ele-mesmo é o espectador e comentador lírico de todo este drama metafísico. (Exemplos de não pensar, cfr. A. Caeiro. XXIV, XXXIV, XXX, etc. Ver: XXIV). A documentação pormenorizada desta diversificação de atitudes filosóficas, não tem lugar nestes minutos. Mas basta ler Alberto Caeiro e fixar a recusa sistemática do pensar, a insistência na afirmação de que cada coisa é o que é e nada mais, notar o carácter formal, distintivo e realizante de cada conceito, para se compreender o finitismo não-metafísico de Caeiro como posição dialéctica frente à metafísica de A. de Campos na dupla tendência transcendentista e imanentista. Finitismo que só na aparência é não metafísico. Deste modo, tanto A. de Campos, como Caeiro representaram duas possibilidades fundamentais de solução do problema do ser: Soluções que não satisfazem nem A. Caeiro nem A. de Campos. Fernando Pessoa ele-mesmo, nesta leitura filosófica dos heterónimos, ocuparia o papel do comentador lírico, um pouco como o coro comentava os acontecimentos no teatro grego. E Ricardo Reis? Sob o ponto de vista filosófico, R. Reis vive as ideias de Caeiro. Ele é o comentador pagão, o lírico de uma metafísica do finito que, dolentemente, recorda a fragilidade da vida, e medita no fluir do tempo, deus que seus próprios filhos devora. Exs. A. Caeiro, XXV, XXIII, XXIV, XI. R. Reis (315); (332); (380); (400); (426). Nos apontamentos para a composição do Primeiro Fausto, F. Pessoa classifica-o como luta entre a Inteligência e a Vida. A Inteligência quer compreender a vida e sai derrotada do combate; só compreende que não pode compreender a vida. Tema deste primeiro acto seria o mistério do mundo, aliás é o tema de todo o drama da Inteligência. Em seguida, a Inteligência quer dirigir a vida e sofre igual desaire. Depois, a Inteligência tenta adaptar-se à Vida pelo amor; mas também o amor fracassa. No combate que prossegue, a Inteligência tenta dissolver a vida; esta reage caindo no Hábito, no Prazer mais próximo e na Indiferença para com os grandes fins. Entre estes actos do drama, previa F. Pessoa entreactos líricos em que ou se repetem as conclusões dos desenvolvimentos anteriores, ou se resume a lição que o acto põe humanamente, ou fica por determinar a natureza dos entreactos. Fernando Pessoa fala, a propósito dos entreactos, de lirismo metafísico, de tendência dionisíaca da Inteligência que a leva a dissolver a vida. Só quisemos aduzir estas referências às notas em que F. Pessoa descreve o projecto do Fausto para confirmar a Ideia de que a sua obra se pode interpretar como tentativa de um drama filosófico centrado sobre o mistério do ser e do mundo em que as possibilidades de solução se dispersam pelos heterónimos A. de Campos e A. Caeiro. O primeiro com a vertigem metafísica da Ode marítima e da maior parte dos seus poemas, o segundo com o naturismo finitista, disfarçadamente metafísico, enquanto R. Reis, no quadro filosófico de Caeiro, repetiria, em tom lírico, a tristeza pagã do fluir do mundo e da vida. Além da expressão de linguagem rica em matizes verbais e imagens que condensam poeticamente experiências, além da comunhão de verdade que o esforço reflexivo da filosofia partilha com a intuição poética, desveladora de mistérios e condensadora de vida, a aliança entre poesia e filosofia pode, inclusivamente ajudar o espírito a sentir os problemas metafísicos. O problema do ser só toca a alma, quando é sentido: e a inteligência só nele se compromete quando vê que o destino da vida se joga no pensamento. E pensamento é pensamento do ser.
Celestino Pires
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