Ditos e ditotes Ele há cada um... Filósofo... em PESSOA
O mocho
Página inicial
Maledicências...  Ameaças de filósofos Outros cantos Com prazo de validade Ciberfilosofias



 
Logo EL PAIS DIGITAL
 
 
 
 
 
 
 

texto originalBandeira espanhola
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

DEBATESImagen GIF
A EDUCAÇÃO QUE QUEREMOS

Potenciar a razão 

FERNANDO SAVATER

Em primeiro lugar quero agradecer as palavras de apresentação de Emiliano Martínez, fruto da amizade mais do que da exactidão. Em segundo lugar, quero confessar que estou encantado por fechar este ciclo de conversas, tão comentado e tão brilhante pela importância dos demais palestrantes. 

Vou tentar fazer uma reflexão que no final desembocará em falar de filosofia, mas não queria começar a falar de filosofia desde o início. Isto é, eu creio que a educação é, entre outras coisas, mas muito principalmente, educação para a razão: educar é formar seres humanos, e nós os seres humanos somos ante de mais seres racionais. A razão não é uma tendência puramente automática, mas um resultado social, possibilitado por umas capacidades naturais, evolutivas, etc. De modo que gostaria de começar por falar da importância de potenciar a razão por meio da educação, e depois finalmente dizer algumas palavras sobre a filosofia como uma disciplina racional que obviamente tem o seu lugar em qualquer plano de estudos, e não um lugar tão central ou único como às vezes, com um pouco de fantasia ou entusiasmo corporativista, nós os filósofos queremos. Mas creio que, em qualquer caso, tem um papel importante para dar uma certa unidade de sentido a muitas das coisas que constituem um curriculum, um plano de estudos.

A razão – repito – não é simplesmente uma espécie de tendência automática. A razão está em boa medida baseada no confronto com os outros, quer dizer, raciocinar é uma tendência natural baseada, ou para nós fundada, no uso da palavra, no uso da linguagem; e o uso da linguagem é o que nos obriga a interiorizar o nosso papel social. A linguagem é sociedade interiorizada, e é curioso que alguns filósofos e outras pessoas ao longo dos séculos se tenham perguntado (por exemplo, o "penso, logo existo" de Descartes no famoso início do Discurso do Método, a que volta novamente nas suas Meditações): Estou aqui?, duvido de tudo, Estarei sozinho no mundo?, Existe este mundo?, É tudo uma ficção inventada por um deus maligno?.

De facto, a postura solipsista, quer dizer, a postura dos pensadores que duvidaram da existência de qualquer coisa e de qualquer outro ser humano que não fosse eles próprios, apesar de ser uma teoria de algum modo, digamos, bastante peregrina, foi muito avalizada e teve muitos seguidores. Bertrand Russell conta que um dia recebeu uma carta de um solipsista que dizia: "considero o solipsismo tão óbvio e tão provado racionalmente que estranho que não haja mais pessoas solipsistas". Na verdade o primeiro argumento que há contra esse solipsismo, ou contra formas menos toscas de nos considerarmos de alguma forma como que caídos de não se sabe onde, é precisamente o facto de que somos seres linguísticos. Somos seres linguísticos e manejamos uma linguagem que não inventámos, de que não somos donos, cujos registos não estão na nossa mão. O uso da nossa razão está condicionado precisamente por essa função da própria linguagem. 

Portanto, na educação, do que se pode tratar, do que se deve tratar, é de desenvolver o que é uma capacidade em princípio quase inevitável da vida em sociedade e da vida em comum; quer dizer, todos temos que raciocinar permanentemente para poder sobreviver. O elemento racional está em todos os nossos comportamentos, faz parte das nossas mais elementares funções mentais. Se alguém nos disser que ao meio-dia comeu uma feijoada(1e que a paella estava muito boa, imediatamente dizemos: "não pode ser; ou feijoada ou paella". O próprio acto de nos darmos conta de que há coisas incompatíveis, de que as coisas não podem ser e não ser ao mesmo tempo, ou que as coisas contraditórias não podem afirmar-se simultaneamente, ou que tudo deve ter alguma causa, supõe exercícios de racionalidade. Esse tipo de mecanismos elementares estão em todos nós e não poderíamos sobreviver sem eles. Há em todos os lados, em todas as culturas e em todos os tempos algumas disposições naturais para o desenvolvimento de modelos racionais. Gombricht, num dos seus livros, diz que há povos que não conhecem a perspectiva pictórica, como os egípcios, por exemplo. Efectivamente há povos que não conhecem a perspectiva, mas não há nenhum povo em que qualquer dos seus membros, quando quer fugir ou esconder-se do seu inimigo, se ponha à frente da árvore e não atrás.

Portanto é evidente que a função racional está constantemente em nós. O que acontece é que o ser humano actual, o ser humano que queremos desenvolver, o ser humano civilizado que faz parte do final de um século e da passagem ao outro, que vai ter que se entender com máquinas muito complexas, que vai ter que usar registos muito diferentes, que talvez não vá gozar da mesma estabilidade no seu próprio desempenho laboral e corporativo mas vai ter que mudar de postos de trabalho, etc., tem que desenvolver uma capacidade racional que evidentemente não é algo puramente instintivo nem automático, e que também se não confunde com a mera informação. 

O pressuposto de que ser racional é estar bem informado é um dos problemas da nossa época, em que se considera que ter acesso a muita informação desenvolverá a razão. A informação é útil precisamente para quem tem uma razão desenvolvida. Não é o mesmo, e Giovanni Sartori e outros doutores insistiram nisto, informação e conhecimento. Eu penso que há uma distinção importante entre ambos os conceitos. O conhecimento é reflexão sobre a informação, é capacidade de discernimento e de discriminação relativamente à informação que se possui, é capacidade de hierarquizar, de ordenar, de generalizar, etc., a informação que se recebe. E essa capacidade não se recebe como informação. Quer dizer, tudo é informação excepto o conhecimento que nos permite aproveitar a informação. 

A educação não pode ser simplesmente transmissão de informação, entre outras razões porque a informação é tão ampla, muda tanto, existem tantas formas de aceder a ela, e cada vez mais, de uma maneira on-line, permanente, que seria absurdo que a função educativa consistisse simplesmente em transmitir conteúdos informativos. O que faz falta é transmitir modelos de comportamento que permitam utilizar e rentabilizar ao máximo a informação que se possui. Esse é um dos pontos fortes das finalidades da educação em geral e de qualquer disciplina em particular. 

Considero que qualquer disciplina..., e aqui entroncamos nesta disputa, que tanta tinta tem feito verter aqui e noutros países, em torno do humanismo opondo as disciplinas humanísticas às científicas. Disseram-se por vezes coisas muito disparatadas, como se realmente a ciência não fosse humana, ou não desenvolvesse a humanidade… O característico do humanismo é haver um modo humanístico de ensinar qualquer disciplina. Mais do que o facto de umas disciplinas serem humanistas e outras não, é o modo como se ensinam as disciplinas que pode ser humanista ou não humanista. Pode ser um modo meramente informativo, meramente descritivo, ou pode ser um modo que, através de qualquer disciplina, procure desenvolver a capacidade de conhecimento, quer dizer, a capacidade de ordenar, de relacionar, de criticar, de discernir, etc., dentro de uma linha determinada, dentro de um tema determinado. Todas as disciplinas deveriam estar orientadas à potenciação, no seu campo, da capacidade de conhecimento, da capacidade de continuar por se próprio a aprendizagem, contra a pura tendência para assumir informação. 

Uma das características da razão é que serve para ser autónomo, quer dizer, os seres racionais são mais autónomos que as pessoas que não desenvolveram a sua capacidade racional. É evidente que autonomia não quer dizer isolamento, falta de solidariedade, solipsismo, mas serve pelo menos para cada qual se autocontrolar, se autodirigir, optar entre opções diferentes, proteger as coisas que se consideram importantes, empreender empreendimentos, etc. Creio que a autonomia é fundamental, e essa autonomia é exactamente o que a razão permite. O não desenvolvimento da razão faz-nos dependentes. De facto, as crianças muito pequenas e as pessoas que, por qualquer desgraça, perderam alguma das faculdades racionais a primeira coisa de que sofrem é uma dependência dos outros. De maneira que educar para a razão é educar para a autonomia, para a independência. E aqui há um ponto nuclear da verdadeira educação, e é que, nós os que nos dedicamos ao ensino, educamos para que as pessoas a quem educamos, os nossos alunos, possam prescindir de nós. Não há pior mestre do que aquele que se torna imprescindível toda a vida. O mestre que, de alguma forma, continua a ser sempre mestre, já não por uma veneração à sua pessoa, ao seu saber, mas porque se faz imprescindível, quer dizer, porque a matéria que explica ou a matéria que procurou oferecer aos outros está tão vinculada à sua pessoa que não se pode ele separar dela de nenhum modo nem os outros podem jamais aceder ao conhecimento sem ter essa pessoa para os guiar e iluminar, numa palavra, o gurú, é o contrário do mestre. 

O mestre, ou os pais quando educam os seus filhos, educam-nos para que se ponham a andar, educam-nos para que prescindam deles. Na verdadeira profissão do ensino há uma certa dimensão suicida, porque educamos para que os outros possam prescindir de nós, e nós os pais também devemos educar para o mesmo, o que às vezes é duro. Todos os pais, por um lado queremos reforçar a autonomia dos filhos, mas por outro lado preferiríamos que continuassem a manter connosco qualquer tipo de vínculo, de dependência. Isto é, do ponto de vista educativo malsão, porque há que educar para a autonomia, quer dizer, para a razão. 

Precaver-se contra explicações racionais, guardar chaves da capacidade racional(2é a melhor maneira de manter independência nos outros. E o facto de hoje os conhecimentos humanos serem tão amplos e tão complexos, e estarem tão dispersos, a todos nos obriga a estar dependentes de razões alheias, quer dizer, verdadeiramente ninguém pode saber de tudo. Se, em qualquer época, era raro um Aristóteles que provavelmente sabia de tudo o que se podia saber na sua época (evidentemente nem sequer Aristóteles abarcava todo o saber da época), hoje seria impensável, porque o tipo de conhecimentos actuais exclui a possibilidade de alguém com um saber tão 'omniabarcante'. Então, todos dependemos de outras razões e isso é o que nos dá às vezes a sensação de estar angustiados, de que todo o conhecimento é ínfimo, é desinteressante, porque há tanto que saber… Por isso há que procurar potenciar a capacidade racional de assumir inclusive as limitações do nosso próprio conhecimento. Uma das características da razão é assumir os limites do conhecimento e não acreditar que, por mera acumulação, se pode estender até ao infinito. Às vezes, aos racionalistas censura-se-lhes o facto de acreditarem na omnipotência da razão; não conheço nenhum racionalista que acredite numa coisa tão irracional como a omnipotência da razão, quer dizer, a gente pode acreditar na razão e na importância da razão e conhecer os seus limites, do mesmo modo que eu acredito na digestão mas não acredito que qualquer coisa possa ser digerida. Precisamente porque estou convencido de que a digestão é importante e de que há que digerir e que não há outra forma de nos alimentarmos senão pela via da digestão, para os seres humanos normais também acredito que a digestão tem os seus limites e que os pregos ou o ácido prússico são difíceis de digerir.

Com certeza que a razão tem os seus limites. O que não há é outras vias alternativas de conhecimento, não há é outro tipo de conhecimento que não seja racional mas que seja muito  melhor que a razão. Evidentemente, a razão não pode dar conta absolutamente de tudo, e de facto nem sequer, e isso é um tema filosófico que daria pano para mangas, sabemos porque é que a razão pode compreender algo. Einstein, por exemplo, dizia que "o mais incompreensível da natureza é que nós possamos, pelo menos em parte, compreendê-la". O facto de a natureza ser em parte compreensível constitui ou tem uma dimensão obscura para nós. Evidentemente, é provável que compreendamos a natureza porque somos parte da natureza e portanto deve haver em nós modelos não apenas intelectuais mas de todo o tipo que nos vinculam a possíveis soluções, a possíveis propostas de compreensão racional da natureza.

Mas, de qualquer modo, o facto de que possamos entender realmente algo é complexo, mas é assim. O que seria mais absurdo seria supor que há outro tipo de conhecimento que, sendo conhecimento, não tenha nada que ver com a razão. Devemos afirmar isto, apesar do predomínio que há na nossa época do entusiasmo pelos milagres e pelas coisas paranormais. No fundo o que há é uma busca de algo que alivie a necessidade de pensar e de raciocinar, que evidentemente é algo cansativo porque a razão não dá saltos, não tem atalhos, quer dizer, a razão desenvolve-se sempre a partir do trabalho, do estudo, da reflexão, da reiteração, dos controlos, nunca tem essa espécie de visão intuitiva e mágica da realidade das coisas. E, no entanto, há uma espécie digamos de sonho permanente de conhecer a realidade fantástica como a verdade enquanto que, por outro lado, a razão se dedica sempre a inferiores mesteres intelectuais.

Os senhores terão reparado que nas nossas televisões praticamente não há programas com um mínimo conteúdo científico, para não dizer já filosófico; compreendo que isso já seja pedir demais – imagine-se o rating que teria um programa de filosofia –, mas não somente isso não acontece, como, pelo contrário, oferece-se uma quantidade de programas de pseudofilosofias, pseudociências, etc., verdadeiramente desolador. Quer dizer, não há tempo para explicar a ninguém o que pensava Platão, mas, por outro lado, o que pensa um senhor que falou com Nostradamus e a quem Nostradamus contou todo o tipo de notícias, o que vem e o que virá…, isso é muito comum. Tudo isto é realmente preocupante, porque, além disso, esses programas costumam adquirir a apresentação exterior de algo muito racional e muito científico. Tal como antes se dizia que "a hipocrisia era uma homenagem que o vício fazia à virtude, revestindo os aspectos da virtude", da mesma forma também as pseudociências fazem uma homenagem ao conhecimento ou à razão à custa de adquirir um pouco os seus hábitos.

Há uns meses atrás vi um programa de televisão que tratava da combustão espontânea, coisa de que eu não tinha ouvido falar mas que, a julgar pelo que se vê, é muito comum, já que há gente que sai à rua e começa a arder sem mais delongas. No meio das explicações (que isto estava organizado pelos extraterrestres... ou por algum outro tipo de amigos da pirotecnia...), havia um professor de química, um catedrático, que ao apresentar uma série de objecções, recebia os qualificativos de dogmático e intransigente. Em determinado momento, o gurú máximo dos partidários da combustão espontânea disse-lhe: "olhe, a ciência contemporânea baseia-se em dois princípios: o da relatividade de Einstein, que diz que tudo é relativo, e o de Heisenberg, que diz que de nada podemos estar seguros e nada podemos conhecer do todo, com o qual…" Portanto, com a relatividade e a incerteza já se pode ir a qualquer lado.

Este tipo de coisas realmente funciona, ouve-se, fomenta-se, e a mim parece-me um tanto perigoso porque isso pode atingir também a própria educação. Na educação existe também a ideia de que o que se está a ensinar é sempre pobre, aborrecido, comparado com outras verdades ocultas que às vezes estão escondidas por razões políticas, como, segundo se diz, se escondeu essa coisa dos marcianos para não assustar a gente… tudo isto pode ser anedótico, mas em certas idades dá uma versão profundamente errónea do que é o conhecimento e, a prazo, pode ser inclusive prejudicial.

A razão não somente é idêntica em todos os campos, e creio que uma das principais missões da razão é estabelecer os diversos campos de verdade que existem. É claro que a razão tem que ver com a verdade. A ideia pós-moderna de que nada é verdade… Evidentemente, da verdade absoluta, com maiúscula e um nimbo de luz à volta, ao facto de que nada seja verdade, e que portanto qualquer coisa é mais ou menos tão igualmente certa quanto outra, há um longo percurso. Quer dizer, a razão busca verdades, opiniões mais reais, mais próximas ao real, com mais carga de realidade que outras. Não está igualmente próxima da realidade qualquer tipo de forma de ver, de entender, de operar. A razão é essa busca de verdade, essa busca de maior realidade, com tudo o que a descoberta da realidade comporta. Nem sempre a descoberta da realidade é gratificante, porque, enquanto que os nossos sonhos, os nossos anseios, posto que fomos nós quem os inventou, são-nos sempre favoráveis ou gratificantes, a razão dirige-se a uma realidade que não depende de nós, que não nos compraz, que não espera agradar-nos. Portanto, às vezes as descobertas da realidade são bastante mais desagradáveis que as ilusões que sobre ela possamos construir.

É importante estabelecer campos diferentes de verdade. A verdade que se pode encontrar no campo das matemáticas não é a mesma do campo da história. Há campos diferentes que é importante estabelecer. Em muitas cidades espanholas e de outros países da Europa, às portas da cidade, na época medieval, existia o chamado Campo da Verdade, onde tinham lugar os ordálios ou juízos de Deus, os torneios que decidiam quem tinha razão numa disputa ou o que era verdadeiro numa questão – se era certo que uma fulana era bruxa ou não o era, etc.–. Esses campos da verdade onde se dirime, inclusive por confronto, o que é certo, estão também em as outras verdades, em as verdades racionais. Há campos de verdade distintos. Há campos de verdade em que os termos operam de uma maneira diferente conforme os lados. Se falamos, por exemplo, do Sol, num registo podemos dizer que é um astro de grandeza mediana, com umas características determinadas; noutro registo podemos dizer também que o Sol é um deus, uma divindade, para alguém que o adore ou siga a teoria heliocêntrica. Podemos dizer também que o Sol é o rei do nosso sistema solar, e dessa forma introduzimos uma linha de metáfora, de comparações literárias, etc. Em cada um desses registos há as suas próprias verdades. Quer dizer, é verdade que, entendendo rei num determinado sentido, o Sol é o rei do Sistema Solar; pois é, como o rei, o astro mais importante, central, que determina a existência de vida ou a não existência nos outros astros. Se o entendermos em sentido literal e pensarmos que o Sol é o rei dinasticamente coroado, não entenderemos o assunto.

A razão serve para estabelecer esses campos de verdade diferentes. Às vezes, por exigir a verdade que pertence a um campo a outro campo diferente, perdemos a substância racional que pode haver numa proposta explicativa. Vem-me à memória um episódio que aconteceu a uma pessoa que está nesta sala e que é Caietano López, bom amigo e além disso catedrático de Física e especialista em determinadas questões, e que uma vez, há já uns anos, numa altura em que era moda falar do big bang, os jornalistas começaram a telefonar para El País, onde então trabalhávamos, a perguntar o que era o big bang. Depois de falar com um deles, Caietano estava espantado porque o jornalista lhe tinha dito "está bem, mas diga-me se existe ou não existe Deus no big bang", ao que, evidentemente, não pôde responder. Esse salto de um campo, em que se está a traçar um tipo de verdades, a outro campo em que as verdades são diferentes, é tentar misturar coisas que não têm nada que ver, estar constantemente a baralhar os planos e a buscar um tipo de verdade onde não pode ser encontrada. É um dos perigos que temos no caminho especulativo actual. Não estamos muito seguros de quais são os campos em que se podem pedir determinadas verdades. Preparar ou educar para a razão é também ajudar ou ensinar a discernir que tipo de verdades e que tipo de requisitos de verdade se podem exigir em cada um dos campos, e que tipo de níveis de aceitação da verdade.

Outra das obrigações no desenvolvimento da razão é o confronto com a ideia da opinião como última ratio de tudo o que há. Vivemos numa época em que se ouve a opinião, para mim disparatada, de que todas as opiniões são respeitáveis. Como é que podem ser respeitáveis todas as opiniões?! Se algo caracteriza as opiniões é o facto de não serem todas respeitáveis. Se todos tivéssemos acreditado que todas as opiniões são respeitáveis, ainda não teríamos descido da primeira árvore. Todas as pessoas são respeitáveis, sejam quais forem as suas opiniões, mas nem todas as opiniões são respeitáveis. Uma pessoa que diz que dois e dois são cinco, não pode ser encarcerada, não pode ser objecto de nenhuma represália, mas o que é evidente é que a ideia de que dois e dois são cinco não é tão respeitável como a ideia de que dois e dois são quatro. A mitificação da opinião própria conduz a considerá-la como algo que se subtrai à discussão, em vez de algo que se põe sobre a mesa, algo que não é nem meu nem teu mas que temos que discutir – discutere é, em latim, ver se uma árvore tem raízes, se as coisas têm raízes –, ver se está enraizada em algo. Quando se propõe uma opinião, não se propõe como quem se fecha num castelo, como quem se encouraça, não se supõe que todas as opiniões são igualmente válidas, mas pelo contrário que estão abertas a confrontar-se com provas e dados. Se não, não são opiniões, são dogmas. A ideia de que todas as opiniões valem o mesmo, de que a opinião do aluno do infantário vale tanto, em questões matemáticas, como a do professor de aritmética, não é verdade. E a ideia de que é um sinal de democracia ou de liberdade que qualquer ideia valha tanto como qualquer outra e que é indiferente que quem a sustenta ignore os mecanismos do assunto, não possa aduzir nenhuma prova, não tenha dados, seja incapaz de raciocinar a sua postura, que essa vale tanto como a opinião de quem conhece o assunto, parece-me preocupante.

No entanto, há uma mitificação da opinião igual a essa espécie de encastelamento de quem se sente ofendido quando contrariado, como se as opiniões se pudessem ferir, e como se cada qual pudesse sentir feridas as suas opiniões. A ideia de que as opiniões formam um corpo connosco, e que o dizer "é a minha opinião" dá um grau de razão superior ao da opinião do vizinho, parece-me preocupante, sobretudo porque se considera um sinal de liberalidade intelectual reconhecer as opiniões de cada um, quando a única liberalidade que existe é reconhecer que as opiniões devem estar fundadas na razão e que ninguém tem direito a expor as suas opiniões se não tem razões para as justificar. A posição autenticamente livre, aberta e revolucionária é sustentar que é a razão que vale e que as opiniões devem submeter-se-lhe, e não que são as opiniões que por si mesmas, por ter uma pessoa por trás, se convertem em invioláveis porque a pessoa o é.

Ensinar estas coisas e ensinar a diferença que há entre o respeito pelas pessoas e os modelos de uma capacidade de escuta, a razão não se nota somente quando alguém argumenta como também quando alguém compreende argumentos. Ser racional é poder ser persuadido por argumentos, não apenas persuadir com argumentos. Ninguém pode aspirar à condição de racional se as suas razões, as vê muito claras, mas nunca vê claramente nenhuma razão alheia. Ver as razões dos outros faz parte, necessariamente, da racionalidade. Aceitar ter sido persuadido por razões costuma ser muito mal visto, como se dar mostras de racionalidade fosse algo muito mau, quando o facto de alguém mudar de opinião demonstra que a razão lhe continua a funcionar. O mundo está cheio de pessoas que se orgulham de pensar o mesmo que pensavam aos 18 anos; provavelmente não pensavam nada, nem agora nem aos 18 anos, e graças a isso mantêm-se invulneráveis a todo o tipo de argumentação, razões, conhecimento do mundo, etc.

Educar para que as pessoas sejam vulneráveis aos raciocínios também faz parte da educação racional, e isto entra na distinção fundamental entre o racional e o razoável. A razão cobre um campo que abarca o meramente racional, no qual nos entendemos com as coisas o melhor possível, e o razoável, no qual nos entendemos com os sujeitos. É razoável incluir na minha própria a razão própria de outro sujeito, a possibilidade de aceitar os seus fins, de aceitar os seus objectivos, a sua própria busca da experiência como parte da minha própria razão. O funcionamento racional e o funcionamento razoável estão ligados, e há que educar em ambos. O razoável será esse outro uso que eu consiga dar aos conhecimentos racionais que tenho. Naturalmente que os usos também estão ligados à razão, mas a outra função diferente, isto é, ao reconhecimento de que não me movo só entre objectos, mas também entre sujeitos. E que o característico dos objectos é que eu posso impor-lhes os meus fins; e dos sujeitos, que eu devo conhecer os seus fins para de alguma forma os contrastar com os meus e buscar a possível cooperação.

Essa é uma distinção importante porque às vezes, por exemplo em questões de economia, dá-se uma visão da razão e considera-se o racional como o único que conta, e não o razoável. Buscam uma maximização de benefícios mas não a dimensão razoável, o reconhecimento de outros objectivos, de outros fins, de outras formas de vida que devem ter-se em conta. Porque uma razão meramente racional mas não razoável é inumana, está mutilada das suas características básicas. E esta é uma tendência actual, que pode tornar antipática e odiosa a invocação da razão por só se fazer a partir do nível racional e não do razoável. Tudo funciona como se fosse um jugo de objectos, sem reconhecer que também há sujeitos e isto é profundamente irracional. Muitas vezes os apelos à racionalidade são no fundo apelos à irracionalidade porque se trata de uma razão mutilada da sua dimensão razoável. Do mesmo modo, nem tudo o que pode racionalmente fazer-se é razoável que seja feito, é uma posição bastante contrária à verdadeira razão, que tem as duas dimensões. Não vivemos só num mundo de objectos, mas também de sujeitos. Não entende racionalmente o mundo quem crê que tudo são objectos, do mesmo modo que a chave do sentido é o que se compartilha com outros sujeitos. 

Nem toda a praxis é unicamente instrumentalidade. A escola de Frankfurt e outros falaram da razão instrumental face à razão compreensiva da subjectividade e não apenas de maneira objectiva. É aí que entra o papel da filosofia. É importante num mundo cada vez mais disperso: a filosofia pode ter uma função mental tonificante. Pode tê-la ou não, depende de como se ensine. Primeiro, o que é que se vai  ensinar como filosofia? A ideia de que a filosofia produz efeitos taumatúrgicos no ser humano e converte cada qual num ser crítico, não corresponde à realidade. Toda a minha vida me movimentei entre professores, catedráticos e alunos de filosofia, e raramente encontrei seres dotados desta maravilhosa autonomia e capacidade intelectual. Esta ideia de que a filosofia, o aproximar-se dela, dota dumas aptidões críticas, não é verdade.

A primeira coisa a ver é o que se vai a dar em filosofia, que papel pode ter a filosofia num mundo onde, quando queremos saber algo, acudimos à ciência. Uma vez respondida cientificamente uma pergunta, não temos que voltar a colocá-la, fica enjaulada nas soluções, mais completas ou mais incompletas, que a ciência dá. Mas há perguntas que não se podem cancelar, como o que é a liberdade, o que é a beleza ou a morte, ou a verdade. Não há uma resposta definitiva, mas respostas que nos permitem conviver com essas perguntas. São temas que têm tal quantidade de registos que tocam no fundo da nossa condição humana, que cancelá-las seria cancelar-nos, fechá-las seria fechar a nossa humanidade. A filosofia não fecha nenhuma pergunta, pelo contrário, a resposta filosófica acompanha a pergunta. A história da filosofia é a história das perguntas e das respostas que as acompanham e que podem continuar, e que podem ajudar-nos a conviver com essas perguntas. São temas que têm tal quantidade de registos, que tocam no próprio fundo da nossa cognição humana com tal força, que cancelá-las seria cancelar-nos, fechar a nossa própria humanidade, a nossa capacidade de sentir e conviver. A filosofia não nos faz esquecer as perguntas, pelo contrário recorda-no-las, enquanto que a ciência pretende ir deixando para trás uma série de perguntas de modo que possamos avançar para outras. 

Essa é a sua função diferente: a filosofia mantém abertas algumas perguntas que é por onde nos entra a nossa própria humanidade e essas perguntas são como janelas que dão o oxigénio à nossa humanidade, e portanto manter abertas essas perguntas é importante, mas não como num pasmo vazio, antes procurando respostas tentativas, que sabemos que serão sempre circunstanciais, que estão limitadas pela nossa situação, pela nossa condição histórica, pela nossa personalidade, porque a filosofia trata de tornar extensivo o ponto de vista do indivíduo e o ponto de vista da objectividade. O difícil do jogo filosófico é que tenta alcançar uma objectividade que não perde de vista o sentido subjectivo que tem, enquanto que a ciência busca uma proposta meramente objectiva para a qual a subjectividade do científico não conta. É importante assinalar esta dimensão e assinalar que esta dimensão existe em todos. Não é certo que todos os homens sejam filósofos – ainda que as crianças sejam espontaneamente metafísicos e façam perguntas metafísicas espontâneas que tratamos de lhes tirar da cabeça arreganhando-lhes os dentes – já que a filosofia tem uma dimensão de estudo. Como disciplina académica, está bem conhecer as opiniões, as tradições, o mecanismo de debate, etc.. Mas o que não é certo é dar a impressão de que a filosofia é uma questão à qual só se pode aceder quando já se conhece um tipo de gíria, quando se têm já algumas explicações íntimas. Uma pessoa que se dedique à filosofia tem a obrigação de poder discutir inteligentemente um tema filosófico com quem quer que seja. Naturalmente, se essa pessoa quer aprofundar ou quer inteirar-se, antes ou depois deve ler obras de filósofos, ou de grandes pensadores, ou talvez de grandes letrados, que possam ampliar essa preocupação, esse desígnio de manter aberta a pergunta. Mas não é verdade que um filósofo não possa falar de nada com os outros senão quando os outros possuírem a mesma gíria e conheçam o que significa analítica transcendental... E também não é verdade o que os professores de filosofia no Secundário(3), com a melhor intenção do mundo, dizem com entusiasmo: "Eu consegui que os moços compreendessem o sistema de Aristóteles, o de Hegel". É verdade que às vezes a compreensão das respostas dos filósofos é importante, mas a filosofia não consiste em compreender os sistemas dos filósofos, os sistemas dos filósofos é que servem para compreender o mundo. Então o que é interessante é utilizar os conhecimentos, as ideias, os sistemas dos filósofos para compreender o mundo, não converter o conhecimento dos filósofos na finalidade da filosofia.

Esta sensação de esterilidade, de circularidade, de aborrecimento que a filosofia às vezes dá, aparte a maldade dos ministros e das forças da ordem pública que nos perseguem, é um pouco culpa dos próprios professores de filosofia, que às vezes andamos a converter a celebração dos filósofos no objectivo da filosofia. Introduz-se o adolescente na filosofia e diz-se-lhe que a filosofia é importante porque dela se ocupavam Platão, Aristóteles, etc.. Não é verdade. Quer dizer, Aristóteles e Platão eram importantes porque se ocupavam de filosofia, eram importantes pelas coisas que diziam dos temas importantes. Não é que a filosofia seja importante porque dela se ocupou gente tão importante como Kant. Parece-me que converter os filósofos, a linguagem dos filósofos, os utensílios filosófico, na última ratio da aula de filosofia é profundamente estéril. Evidentemente, apesar de que isto é importante, e é importante que os mecanismos desta tradição se conheçam, assim como o porquê de determinadas expressões, é fundamental que se veja a relação de tudo isso com a vida, com o mundo, e com o mundo e com a vida que vive a pessoa que se está a dedicar a isso. Se a filosofia é apenas arqueologia das coisas que se disseram, que se pensaram noutras épocas, eu creio que os jovens não se interessarão por elas e eu, sinceramente, também me não interessaria por elas se não fosse por acreditar que têm uma relação com coisas mais palpitantes.

A função da filosofia deve ser manter um dos pólos desta educação racional, quer dizer, o pólo mais aberto, o pólo também que marca os limites de qualquer razão humana, o pólo que trata do próprio mecanismo que nos leva a raciocinar, das formas do nosso raciocínio, de como a razão é algo que damos uns aos outros, que recebemos uns dos outros e não apenas algo que jorra de cada um. Esse papel da filosofia, essa espécie de teoria geral da razão, de último refúgio da razão enquanto relacionada com a vida, enquanto relacionada tanto com o racional como com o razoável, isso julgo eu que poderia ser a função da filosofia, mas naturalmente a educação racional não é somente filosofia, não se centra exclusivamente na filosofia mas em todos os campos educativos, desde os mais pequenos até aos mais altos, o processo de desenvolvimento da razão é a base. Não poderíamos encontrar outra base mais importante que essa transmissão de modelos racionais.

Isto é um pouco o que eu lhes queria expor, em parte para dizer que a educação deve potenciar a razão e portanto ensinar a rebelar-nos contra a sem-razão – porque naturalmente uma das dimensões da razão é a rebelião contra a sem-razão –, quer dizer, as pessoas racionais não o são só porque se comportam racionalmente, mas também porque lutam por viver numa sociedade racional e razoável, porque lutam por que não predominem os dogmas irracionais, as superstições, os fanatismos, aquilo que de alguma forma ira contra a razão. De modo que a razão é uma mostra de convivência, mas também uma fonte de dissidência e de rebelião. Potenciar isto é o caminho da educação e para isso deveria contribuir a própria disciplina de filosofia no Secundário(4e inclusive como prática universitária. 
 

  • Conferência pronunciada a 1 de Dezembro de 1998. 



  •  
    (Tradução de  A.R.Gomes)

    notas d'O Canto


    (1) feijoada: no original, fabada (favada: prato de feijões com toucinho e morcela, típico das Astúrias, em "contraposição" à paella, típica de Valência).
    Voltar ao texto

    (2)Precaver-se contra explicações racionais, guardar chaves da capacidade racional: no original, Guardarse claves racionales, guardar claves de la capacidad racional.
    Voltar ao texto

    (3) no Secundário: no original, en el bachillerato (grau que obtém -- e os estudos para o obter -- quem terminou o ensino médio espanhol).
    Voltar ao texto

    (4) Ver nota anterior.
    Voltar ao texto
     


     
     
    Página inicial d' O Canto da Filosofia
    Com Prazo de Validade