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Texto
publicado n'O Canto em Maio/2001
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é também um texto político
San Manuel Bueno, mártir é uma novela publicada por Miguel de Unamuno em 1931 e republicada em 1933 com ligeiras alterações. E é interessante referir que a obra tem uma pequena história ligada a uma viagem efectuada pelo escritor à região do lago de Sanabria, na parte noroeste da província de Zamora (ligeiramente a norte da cidade portuguesa de Bragança). Corre ali uma lenda que conta como, antes de existir aquele lago, havia um pequeno lugar chamado Villaverde, onde em tempos muito antigos apareceu um peregrino cansado pedindo esmola e abrigo; a população cerrou-lhe as portas e escorraçou-o, mas umas mulheres que estavam a cozer pão prestaram-se a ajudá-lo, e tiraram um pouco de massa que colocaram a cozer com intenção de lha dar a comer depois. Essa massa cresceu de tal forma que não a conseguiram tirar do forno, e outro bocado que voltaram a preparar, voltou a crescer da mesma maneira, sendo necessário tirá-la aos pedaços. O peregrino era o próprio Jesus Cristo que quis castigar a falta de caridade daquela vila. Disse às mulheres que subissem a um ponto alto, porque ia inundar aquele lugar. Assim apareceu o lago de Sanabria que submergiu Villaverde. Diz ainda a lenda que todos aqueles que se aproximem do lugar e se encontrem na graça de Deus, na madrugada de S. João, ouvirão tocar os sinos da vila imersa. O simbolismo desta história impressionou Unamuno, mas -- a julgar pelo testemunho de alguns amigos -- foi a própria paisagem que mais o tocou: a enorme montanha sobranceira ao lago, a serenidade do local, a presença de pequenos povoados e dum convento cisterciense abandonado, compuseram um cenário que inspirou San Manuel Bueno, mártir. A história passa-se num lugar chamado Valverde de Lucerna (por analogia com o Villaverde da lenda), à beira de um lago e dominado por uma imensa montanha, que nele se espelha nas noites calmas de lua cheia. E tudo isto está carregado de figuras simbólicas aglutinadas por Unamuno: a montanha (a fé), o lago (a dúvida[1]), a aldeia (o povo ou a humanidade mergulhada na sua intrahistória[2]). Uma das imagens mais expressivas da novela tem a ver com o momento em que a neve invade este conjunto, caindo sobre o lago e sobre a montanha. Sobre o lago, para desaparecer ao tocar as águas, e sobre a montanha, tingindo-a de branco, transformando-a num conjunto uniforme e luminoso. Esta neve que é a vida do povo (pueblo) que precisa da fé para sobreviver e que, com ela, constrói montanhas, mas que se afunda na escuridão da morte se a perde nas águas escuras e fundas. É o próprio autor que nos sugere esta estrutura simbólica[3]. A novela tem uma narradora, uma personagem feminina (Ángela Carballino) que se apresenta como tendo de confessar o seu segredo, num momento em que soube que o bispo está a promover o processo de beatificação do falecido pároco de Valverde de Lucerna, Dom Manuel. Ángela lembra-se de que quando tinha dez anos, antes de ser levada para o colégio religioso onde fez os seus estudos secundários, o pároco - o seu santo ou San Manuel - teria uns trinta e sete anos e já "revelava" a sua santidade na forma como falava ao povo. O pároco era tudo o que se pode esperar de um homem que desempenha aquelas funções: a participação na vida social, a forma como conduz as cerimónias religiosas, como aconselha os aldeãos, enfim, a maneira de estar à frente daquela comunidade de crentes que dele precisam. Nessa altura, seu irmão (Lázaro) estava emigrado na América e enviava o dinheiro para sustento de toda a família. Lázaro não gostava de colégios de freiras, mas aceitou a situação porque "ahí - nos escribía - no hay hasta ahora, que yo sepa, colegios laicos y progresivos". A sua estadia no Novo Mundo fez dele um homem prático, liberto do que chamava de espírito medieval da Espanha rural, das crendices de toda a ordem e do domínio de uma igreja que considerava inquisitorial, responsável pelo atraso económico e cultural do país. Quando regressou a Valverde de Lucerna, trazendo uma fortuna suficiente para sustentar toda a família, quis mudar-se para a cidade, mas a mãe não conseguia deixar aquela terra, por causa do povo a que estava habituada, da montanha, do lago e, sobretudo, por San Manuel. Lázaro reconhecia que aquele padre era diferente dos outros, mas nada o atraía para a igreja. Não acreditava em Deus nem na vida eterna. O seu contacto com San Manuel era esporádico até à morte da mãe, altura em que o padre esteve em sua casa e onde tiveram ocasião de trocar algumas palavras mais do que as saudações do dia a dia. Ficou, deveras, impressionado e, a partir de então, passou a ser frequente passearem juntos, conversando largamente. Lázaro passou a ir à igreja e um dia decidiu receber a comunhão, com grande alegria da irmã e do povo (pueblo) que interpretaram o facto como uma conversão, e mais uma obra do seu santo. Nesse mesmo dia, quando chegou a casa, disse à irmã que era senhor de um segredo que ela teria de ouvir e guardar: ele continuava a não acreditar na vida eterna, apesar de ter passado a ir à missa e de ter recebido os sacramentos. Mais até: San Manuel também não acreditava e apenas fazia o que fazia porque isso era fundamental para o equilíbrio e felicidade do seu povo. É este o segredo que Ángela se sente na obrigação de revelar, quando o bispo quer promover a beatificação do pároco. A santidade da personagem está consagrada na sua própria acção pelo povo de Valverde de Lucerna. "Entonces - prosiguió mi hermano [Lázaro] - comprendí sus móviles y con esto comprendí su santidad.". Sim, trata-se de uma causa santa dentro da lógica da novela que é a lógica de Miguel de Unamuno. San Manuel é, além disso, mártir, porque sacrificou a sua vida nessa causa. Morreu acreditando que morria, mas fê-lo de forma a que os outros continuassem a acreditar que os esperava a eternidade. "Yo estoy para hacer vivir a las almas de mis feligreses, para hacerles felices, para hacerles que se sueñen inmortales y no para matarlos" - diz San Manuel a Lázaro. Mario Valdés diz no seu estudo sobre San Manuel Bueno, mártir o seguinte: "obra maestra de Miguel de Unamuno, considerada como su testamento espiritual. La novela muestra un espacio no descritivo en el que se asientan los símbolos clave de la dialéctica entre fe y duda, el lago, la montaña, la nieve, la villa sumergida, etc.. Don Manuel asume esta lucha y se convierte en mártir en tanto toma sobre sí la duda y la sufre por toda la comunidad que, sumida en el engaño, avanza cohesionada por esa supuesta verdad no cuestionada". O ponto fulcral da novela continua a ser a angústia do fim ou a ânsia de imortalidade que aflige todos os homens e que os faz acreditar numa vida além túmulo. É também a velha angústia de Unamuno, o sentimento do fim e do nada, que faz da vida a agonia de um relógio de areia que escorre e desaparece. Unamuno chegava agora a um novo compromisso: a ânsia de acreditar -- de Unamuno e San Manuel Bueno -- acalma e conforma-se tomando para si a missão de não deixar que chegue ao seu pueblo. Esta forma encontrada pelo escritor -- a sua última solução de compromisso -- sugere como ele próprio se resignou revelando uma espécie de função social da religião, indispensável ao equilíbrio e ao bem estar do povo. Esta fórmula não alterou o carácter trágico da visão da morte num ser inteligente[4], exacerbando até a impossibilidade de uma solução racional para esse problema - ideia que o autor vem corroborando há tempos e que está bem clara na obra mais significativa que publicou sobre este assunto, em 1913[5]: Del Sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos -, mas encontra uma nova saída na figura de um "herói trágico". San Manuel Bueno "carrega o fardo[1]" do seu pueblo da mesma forma que já o tinha carregado Don Quijote, mas existem diferenças significativas entre eles: diferenças que têm a ver com uma nova forma de encarar o sentimento trágico da vida, com outra imagem do povo espanhol, naturalmente, ligado ao circunstancialismo político que tem a ver com a implantação da República em 1931 e com o clima de violência que se lhe seguiu. Mesmo no final da novela, há uma conversa entre Lázaro e sua irmã onde é dito o seguinte:
Antes do mais pensemos qual foi a fé que San Manuel deu a Lázaro? Não foi a fé na imortalidade, que tanto preocupara Unamuno durante longos anos e que só saíra do centro do seu pensamento ou da sua produção literária, quando foi demitido de reitor da Universidade, em 1914. A imortalidade foi para o escritor uma imensa dúvida, desde o momento em que concluíra pela incapacidade da ciência em preencher todas as suas exigências de ser consciente e sensível. Expressou-o[8] em Vida de Don Quijote y Sancho (1905), onde faz uma apologia do sonho, e definiu-o com muita clareza em Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y los pueblos. Contudo nunca lhe dera o desfecho que lhe deu em San Manuel Bueno, mártir. Até 1931 não existe fé no "consuelo de la vida", porque esta fé no "consuelo de la vida" tem a ver com uma definição clara do papel da religião na sociedade[9]. Unamuno combateu a Monarquia Espanhola suportada por uma casta religiosa que era a Igreja Católica. A Igreja real é aquela que controla o povo e persegue inquisitorialmente os que dela se desviam. É a igreja constituída pela primeira classe de homens perigosos, denunciada por Lázaro neste diálogo: uma igreja que não se atém ao seu papel religioso e pretende enquadrar o mundo que devia ser civil[10]. E esta faceta da sua luta foi linear até certo ponto. O seu inimigo era a Monarquia e, naturalmente, a Igreja que lhe estava associada, mas agora surgia uma segunda classe de homens perigosos, aqueles que se esforçam em negar ao povo o consolo de crer noutro mundo. Até regressar do exílio, o tal "progressismo" de que se "curou" Lázaro - a crença de que a ciência pode resolver todos os problemas do homem - foi um problema filosófico, pessoal, secundário em termos de militância política; mas agora não o era, porque a República tinha trazido à vida pública espanhola um "cientifismo" radical que promovia o assassínio de padres e a queima de edifícios religiosos, numa fúria persecutória tão bárbara como tinha sido a da própria inquisição. Aliás, como se sabe, desde os primeiros momentos da República que a violência política se instalou na vida quotidiana da Espanha, sendo vulgares os assassinatos em massa e as destruições de toda a ordem. Quase toda a esquerda de inspiração marxista ou anarquista se empenhou na perseguição à igreja de uma forma que afrontava as crenças profundas dos povos, e que Unamuno considerou como não fazendo parte da República por que ele tinha lutado com tanto afinco. Contudo, também não aceitava que a Igreja imputasse as culpas da perseguição de que era alvo à liberdade ou ao liberalismo político. Em 1931, a Revista Popular (católica) publicava uma sucessão de conferências proferidas por D. Félix Sardá y Salvany, com o título, El liberalismo es pecado, onde (entre outras coisas) se dizia o seguinte: "de consiguinte (salvo los casos de buena fe, de ignorancia y de indeliberación), ser liberal es más pecado que ser blasfemo, ladrón, adúltero u homicida, o cualquier otra cosa de las que prohíbe la ley de Dios y castiga su justicia infinita"[11]. O texto correu a Espanha e incendiou ânimos por toda a parte, merecendo um artigo crítico que Unamuno publicou no jornal El Sol (Madrid) em 10 de Dezembro de 1931, onde acusava a própria Igreja, dizendo " toda aquella campaña de verdadera guerra civil es la que ha traído a la ajesuitada Iglesia oficial española a su estado actual". A sua posição sobre a religião é muito clara. O mesmo homem que se identifica em San Manuel e em Lázaro (duas facetas de um mesmo personagem), ou seja o homem que afirma não acreditar na vida além túmulo, de maneira nenhuma encara a hipótese de banir a religiosidade da vida pública espanhola. A religião faz parte da intrahistória da humanidade e o cristianismo faz parte da intrahistória de Espanha. Vai até ao ponto de dizer o seguinte: "Y aunque se diga y se repita hoy mucho que el pueblo español es indiferente en religión, o más bien, que es irreligioso, somos algunos los que creemos que con la revolución que llamam política se está cumpliendo, en los hondones del alma popular, una revolución religiosa[12]". E quando, em Outubro de 1931, Miguel Azaña (então chefe do governo) declara que o povo espanhol tinha deixado de ser católico iniciando-se uma série de medidas legislativas de laicização do estado, Unamuno declara que isso não corresponde ao sentir dos espanhóis e, além disso, a religião não pode suprimir-se por medidas legislativas. Era uma questão delicada: parecia-lhe que as medidas tomadas iriam provocar uma "fragmentación irreparable en los estratos más hondos de la nación". Era o clima de guerra civil, em que se tinha transformado a República: "Guerra civil? Sí, guerra civil, aunque incruenta, y por esto más íntimamente trágica. Guerra más que civil [ ]. Guerra intestina familiar, doméstica, no pocas veces[13]". Guerra religiosa porque -- na sua opinião -- eram convicções religiosas que estavam em causa. Acreditar que existe uma visão científica (que ele classificava de cientifismo pedante) da História onde se pode encontrar um caminho irreversível para um sonho, seguindo determinado caminho (igualmente científico), como pretendiam anarquistas e comunistas, era o mesmo que acreditar num mundo para além da morte nos moldes em que o prometia a Igreja Católica. O fascio italiano ou o nacional socialismo alemão eram -- da mesma forma -- religiões que exaltavam os povos a buscar na terra a resolução da sua angústia da morte. E todos estes movimentos, precisamente porque tinham um núcleo comum na promessa de recuperação do paraíso perdido, exaltavam a violências extremas que Unamuno classificava como um estado de demência generalizado e suicida. Diria ele: "Seguimos percutiendo y auscultando a este espíritu público español, atacado hoy de hiperestesia, de histeria y hasta de epilepsia. [ ] Muchas de las explosiones públicas no son más que ataques epilépticos[14]". E são ataques epilépticos que põem em causa o futuro da Espanha[15], porque, na sua opinião, destruíam a hispanidade. O cristianismo fazia parte da intrahistória espanhola e sem ele não era possível um futuro espanhol[16]. Unamuno lutou por uma República que assentava na liberdade, achando que era nessa liberdade que podia ser edificada uma Espanha nova, mas encontrou um clima de loucura total, onde se gritavam "vivas y mueras" sem se perceber o que queria ver morto ou vivo. San Manuel Bueno, mártir é um grito contra esta loucura, mas é ainda um grito de esperança. Anos mais tarde, quando o exército franquista ocupava Salamanca, a sua decepção era completa. A imagem de uma Espanha em guerra civil (guerra que ele classificava de incivil) representava a impossibilidade de se realizar como herói trágico. E a destruição da Espanha era muito mais do que a destruição de si próprio, era a destruição de Valverde de Lucerna apesar do martírio de San Manuel Bueno.
[1] Onde
está a vila emersa pelo castigo de Jesus [voltar
ao texto]
ARTOLA, Miguel, dir. - Historia de España, vol 7, Madrid, Alianza Editorial, 1986. EGIDO, Luciano G. - Agonizar en Salamanca. Unamuno - Juliu, Diciembre 1936, Madrid, Alianza Editorial, 1986 MARÍAS, Julián - España ante la Historia y ante sí misma (1898 - 1936), Madrid, Espasa Calpe, 1996.
NIETZSCHE, Frederico - A Origem da Tragédia, 5ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988. PARÍS, Carlos - Unamuno. Estructura de su Mundo Intelectual, Barcelona, Editorial Anthropos, 1989. SALCEDO, Emilio - Vida de Don Miguel (Unamuno, un hombre en lucha con su leyenda), 3ª ed., Salamanca, Anthema Ediciones, 1998. THOMAS, Hugh - A Guerra Civil de Espanha, 2 vols., Lisboa, Pensamento, 1987. UNAMUNO, Miguel de - La Agonia del cristianismo, Madrid, Alianza Editorial, 1992.
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