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A TRANSCENDÊNCIA NO ROMANCE |
José Alberto
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Partiremos do conceito filosófico de transcendência no sentido da relação da nossa experiência com o supra-sensível e o inexperimentável: o núcleo essencial das coisas visíveis e todo o espiritual. Entenderemos então que buscar uma solução (ou só uma boa explicação) ao problema da morte, é entrar no campo do problema da transcendência, e que a imortalidade seria a conclusão lógica desta pesquisa. É por esta razão que trataremos ambos os termos como uma só questão.
O tema tem sido tratado de uma forma sistemática, e ao longo de toda a história, pela Filosofia e pela Teologia. Tem sido tratado -- para logo ser aceite ou negado -- em todos os tempos, sociedades e culturas. Unamuno, espírito reflexivo e meditabundo, como tem sido assinalado por quantos têm estudado a sua pessoa e obra, não podia deixar este tema fora das suas preocupações humanas e literárias. Consideramos que o romance em questão foi escrito como se fosse um ensaio, aproveitando no entanto as grandes vantagens que lhe dava um género como o romance.
Um tema tão profundo como este pode-se tratar com mais proveito se se enquadra num ambiente visível e palpável, ainda que ficcionado e com personagens que ajudam o leitor a tomar partido. Não se trata de destrinçar um tema com ideias próprias, mais ou menos polémicas -- isso têm feito filósofos de todos os tempos e latitudes -- como seria no caso do ensaio, mas de fazer com que o leitor se sinta, de repente, entre a espada e a parede: trata-se de uma ficção, mas o tema é sério, profundo, complexo e toca-nos a todos.
E o autor prefere atirar a pedra e esconder a mão, como quem diz: eu sinto-o assim...mas isso é um romance, é ficção, ninguém tem que acreditar que é assim, e não tem sequer que acreditar. É então o problema do autor ou uma invenção dele?
Nas próximas páginas trataremos de ver que se trata de um tema da Filosofia e da Teologia que, na realidade, é verdadeiramente o problema de Unamuno, homem e escritor.
Unamuno na sua obra não tenta dar respostas sistemáticas a este problema. Vai-o tocando e retocando de diferentes maneiras -- através da poesia, ensaio e romance -- como se esta forma repetitiva fosse a maneira menos arriscada de o ir resolvendo. Preocupa-se com a vida enquanto condição para entender a morte, e "esta é a sua verdadeira e angustiante questão"[2].
O problema da morte e a sua relação com o que vem depois, tem sido equacionado ao longo de toda a história humana. Para os gregos, sobretudo para osepicureus, a morte só sucede fora do homem: enquanto este vive, não existe a morte e quando esta chega, o homem já não existe, portanto já não tem realidade. Para muitos povos da África, por exemplo, a morte é um momento de transição ao mundo dos sábios antepassados, onde se adquire a sabedoria acumulada na tribo.
O materialismo histórico -- mesmo tratando de ignorar ou negar a transcendência -- aceita que a vida humana (sobretudo as acções do homem) se prolongam no povo: racionalização do culto dos heróis, dando assim sentido à vida e à morte, ou tratando de explicar a relação do homem com os mortos. Unamuno surpreendia-se -- e logo racionalizava a sua surpresa -- com a devoção dos portugueses às almas do Purgatório, porque isso representava um sentido social e colectivista em relação à concepção religiosa da salvação individualista. "Não é o indivíduo isolado; é a comunhão dos fiéis a que se relaciona com Deus por Cristo. Os méritos são transferíveis: [...] Daqui o culto aos santos, o culto às almas do Purgatório; daqui o valor dos mediadores"[3].
O próprio Unamuno segue, em parte, a teoria da sobrevivência no povo -- como veremos neste mesmo romance -- ainda que mais à maneira "helénica", referindo a imortalidade da alma "à sobrevivência do homem e da fama, à glória, e encontra, por outro lado, na paternidade um reflexo da durabilidade da carne"[4]. O tema da imortalidade, numa das vertentes assinaladas por Unamuno -- a vida que se continua a sonhar -- seria mais tarde magistral e repetidamente tratado por Jorge Luis Borges em contos como O Imortal e As ruínas circulares cuja trama central era exactamente a resposta ao problema da vida e da morte. Em cada um deles aparece uma solução diferente, mas sempre seguindo respostas como alguma das anteriores. Em As ruínas circulares, seguindo o subjectivismo de Berkeley, apresenta a imortalidade como o resultado de que tudo o que existe é sonhado por outro. Assim, a criatura, sonhada pelo seu criador, sonharia logo outra criatura e assim por toda a eternidade. O tema é ainda tratado por outro argentino, Adolfo Bioy Casares, em A invenção de Morel. Nesta obra, a imortalidade consistia na repetição eterna de umas cenas pré-gravadas. A pergunta final, como em Borges ou Angela Carballino, seria: tratar-se-á tudo isto de um sonho dentro de outro sonho, em círculos concêntricos, ou melhor, em espiral, até à eternidade?
Noutros casos fala-se também de eternidade pelas obras: Cervantes seria imortal porque seguiria vivendo no seu Quixote, e assim todos os criadores nas suas obras. Ou o indivíduo na comunidade que permanece depois da sua morte: "unir-se ao povo e viver; se isto se consegue, a alma salva-se na comunhão geral, inclusive se se acredita ou não se acredita"[5].
Para Unamuno, a transcendência implicava -- como definimos nós -- o problema da imortalidade, porque ele a concebe "com traços muito concretos"[6], e não só a questão da sobrevivência do espírito. Nisto reside a diferença entre imortalidade e ressurreição: a imortalidade é fazer perdurável a vida com tudo o que se é e tem; a ressurreição implica a morte. Unamuno não queria morrer: "não, não quero morrer, não, não quero, nem quero querê-lo, quero viver sempre, sempre, sempre, e viver eu, este pobre eu que sou e me sinto ser agora e aqui".
No final do romance -- e para Unamuno -- fica a recordação de São Manuel. Acompanharam-no nos seus últimos momentos, é certo, podem acreditar na sua imortalidade, a única coisa que fica na realidade, é o vazio, a ausência da pessoa que se amava. Aí surge o problema como o coloca Unamuno neste romance: a imortalidade pessoal, o saber se morremos de todo ou não. O pároco de Valverde está atormentado pela angústia da sobrevivência, querer acreditar e não poder.
Supostamente, tratar de acreditar em algo levaria a acreditar realmente, mas com Dom Manuel isso não sucedeu. E essa era a sua angústia. Dom Manuel entra, de imediato, a tratar o tema do sonho como sobrevivência: "Eu estou aqui para fazer que se sonhem imortais e não para matá-los" (46). Como diria o personagem de Borges em As ruínas circulares: Quem sabe se alguém também me está sonhando a mim!
E chegamos ao cume da angústia:
" -- Mas você, padre,
crê? Vacilou um momento e, repondo-se, disse-me:
-- Creio.
-- Mas, em quê, padre,
em quê? Crê você na outra vida?, Crê que
ao morrer não morremos de todo?, Crê que voltaremos
a ver-nos, a querer-nos no outro mundo que há-de vir? Crê
na outra vida? O pobre santo soluçava.
-- Olha, filha, deixemos
isso!" (50).
Mas não poder acreditar na vida duradoura, leva Dom Manuel à aparente contradição de não querer defender a vida enquanto a tem. É a tentação do suicídio: "A minha vida, Lázaro, é uma espécie de suicídio contínuo, um combate contra o suicídio, que é igual; [...] Sigamos, pois, Lázaro, suicidando-nos na nossa obra e no nosso povo, e que este sonhe vida como o lago sonha o céu" (53). Dom Manuel dá sentido à sua tentação de suicídio na medida em que a sua vida e obras são para dar vida ao povo e este se imortaliza no sonho, como o lago imortaliza o céu. O tema repetitivo do sonho. Como diz o próprio Unamuno: "A vida, que é tudo, e que por ser tudo se reduz a nada, é sonho, ou acaso não merece ser sonhada sob uma forma sistemática. Sem dúvida! O sistema -- que é a consistência -- destrói a essência do sonho e com isso a essência da vida". Esta ideia está intimamente ligada à teoria de Baruch Spinoza de que a essência de uma coisa consiste na sua tendência a manter o seu ser indefinidamente. O ser seria então um princípio de perduração.
A mesma ideia continua a desenvolver-se e faz-se mais concreta e crua na confissão: "inclinou-se ao ouvido [de Lázaro] e disse-lhe: Não há mais vida eterna que esta..., que a sonhem eterna..., eterna de uns poucos anos..." (61). Esta eternidade sonhada, não é o mesmo que uma eternidade criada ou acreditada. Dom Manuel cita Calderón para dizer que "o delito maior do homem é ter nascido". Como pode tê-lo parafraseado Jorge Luis Borges na sua ideia de que o mais trágico do homem é saber-se mortal; os animais, esses são imortais porque não têm consciência da sua morte. Dom Manuel tinha, mais que ninguém, consciência da sua morte. Mantinha uma firme crença de que a eternidade sonha-se: "Tu, Angela, reza sempre, continua a rezar para que os pecadores todos sonhem até morrer a ressurreição da carne e a vida duradoura...! (66).
E o primeiro milagre da imortalidade aparece no romance quando "Ninguém neste povo quis crer na morte de Dom Manuel; todos esperavam vê-lo diariamente, e por acaso viam-no passar ao longo do lago e reflectido nele ou tendo como fundo a montanha; todos continuavam a ouvir a sua voz, e todos iam à sua sepultura, à volta da qual surgiu todo um culto." (69). De alguma maneira tinha-se realizado o seu sonho de continuar a viver em e com o seu povo. É a convicção de que as obras ultrapassam a vida física e algo prolonga a vida de quem as realizou. Da ficção à realidade chega-se a Dom Oscar Romero, que foi arcebispo de San Salvador, e que profeticamente tinha afirmado: "Se me matarem, ressuscitarei no povo". Angela não só sente que é assim, mas está convencida, pela "experiência da santidade alheia", que Dom Manuel Bom e o seu irmão Lázaro "morreram acreditando não crer no que mais interessa, mas sem querer acreditá-lo, acreditando-o numa desolação activa e resignada." (76). Aceita a piedosa fraude de Dom Manuel porque "cria e creio que Deus Nosso Senhor, por não sei que sagrados e insondáveis desígnios, fê-los crer-se incrédulos." (77). Angela, a confidente e confessora, já não sabe se crê ou não, se é realidade ou sonho o que está a passar. Vai mais longe no seu cepticismo e já não sabe sequer o que é crer e em quem acreditar.
"É que tudo isto é mais que um sonho sonhado dentro de outro sonho?"(29). O tema repetido do sonho como evasão ao problema que atormenta a vida "real". A crença como âncora indispensável para continuar a viver seria a resposta e explicação ao conselho de Lázaro ao novo pároco de Valverde de Lucerna: "Pouca teologia, hein?, Pouca teologia; religião, religião"(71).
De novo a preocupação do autor na boca de um personagem: é preciso buscar onde agarrar-se, mesmo que sejam só sonhos e ilusões. O importante é que a gente viva. "E agora crer em São Manuel Bom, Mártir, que sem afirmar a imortalidade os manteve na esperança dela." (79).
Brugger, Walter. Diccionario de Filosofía. Ed. Herder. Barcelona, 1975. [ed. portuguesa: Dicionário de Filosofia. São Paulo : Editora Herder, 1962. (Nota d'O Canto)]
Díaz-Plaja, Guillermo. Historia general de las literaturas hispánicas. Tomo VI. Editorial Vergara, Barcelona, 1967.
Marías, Julián. Obras. Vol. V. 5ta. Edición. Revista de Occidente. Madrid, 1960.
Rico, Francisco. Historia y crítica de la literatura española. Vol. VI. Madrid.
Unamuno, Miguel de. San Manuel Bueno, Martir. Alianza Editorial, 2da. edición, Madrid, 1968.
----. Por tierras de Portugal y de España. 6ª ed. Colección Austral, Espasa-calpe, Madrid, 1964. [ed. portuguesa: Por terras de Portugal e da Espanha. Lisboa : Assírio & Alvim, 1989. (Nota d'O Canto)]
Valbuena Prat, Angel. Historia
de la literatura Española. Tomo V. 9na. edición. Editorial
Gustavo Gili, S.A., Barcelona, 1983.
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Notas |
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(Nota
d'O Canto)
Doutorado em Filosofia e Letras (Filologia Espanhola), o autor é catedrático da Universidade Interamericana de Porto Rico, onde é professor de Filosofia (Lógica e Ética) e de Literatura (programa graduado). Página pessoal em http://pagina.de/lopesdasilva (Voltar ao texto) |
(1) | Ricardo Gullón, "Relectura de San Manuel Bueno", Historia y crítica de la literatura española, vol. VI, de Francisco Rico, p. 267 (Voltar ao texto) |
(2) | Julián Marías, Obras, vol. V, "Miguel de Unamuno", 5ª ed., Revista de Occidente, Madrid, 1960, p. 59. (Voltar ao texto) |
(3) | Miguel de Unamuno, Por tierras de Portugal y España, 6ª ed., Colección Austral, Espasa-Calpe, Madrid, 1964, p. 45. (Voltar ao texto) |
(4) | Julián Marías, Op. cit., p. 187. (Voltar ao texto) |
(5) | Ricardo Gullón, Op. cit. p. 274. (Voltar ao texto) |
(6) | Eusebio Colomer, "El pensamiento novecentista (1890-1936)", Historia general de las literaturas hispánicas, dir. Guillermo Díaz-Plaja, Tomo VI, Editorial Vergara, Barcelona, 1967, p. 249. (Voltar ao texto) |
Leia ainda,
sobre Unamuno:
e, dele, o poema En la mano de Dios. |
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