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Este
texto desenvolve a entrada Teresa do dicionário de que é
extraído (N. do Canto)
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TERESA, A FILÓSOFA |
Fernando SAVATER
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O meu Dicionário FILOSÓFICO, p. 361-368 |
Sabes, leitora minha, que até há muito pouco tempo a denominação «livros filosóficos» incluía no catálogo de muitos livreiros as obras pornográficas? Esse honroso contágio provém do século XVIII, como tantas outras coisas boas. Naquela bendita época, ser filósofo significava habitualmente ser libertino, o mesmo que agora significa geralmente ser professor. O qualificativo tornava-se equívoco quando se aplicava a relatos ou novelas «filosóficas». Ainda mais, decerto, se estas narrações provinham de autores franceses... Existe uma pequena novela que é a antonomásia do género e da qual te falarei eu, porque nenhum outro dicionário de filosofia vai alguma vez atrever-se a mencioná-la. É filosófica em dois sentidos, no teórico e no erótico, e é libertina do princípio ao fim (enfim) pensamento, palavra e obra. A filosofia aparece até no seu título, Thérèse philosophe, um nome menos técnico, sem dúvida, mas mais simpático do que A raiz quadrada do princípio de razão suficiente, para dar um exemplo e fazer justiça, pelo menos nisso, a dona Joana, mãe de Schopenhauer.
Teresa é filósofa porque quer aprender a viver com corpo e alma. Para isso busca mestras e mestres que a levam da cama à secretária e, por vezes, convertem em secretária a cama. As reflexões teológicas misturam-se com o adestramento sensual e todas as lições desembocam como conclusão em que «a razão só serve para dar a conhecer ao homem qual é o grau de vontade que tem de fazer ou de evitar esta ou aquela coisa, combinado com o prazer ou desprazer que pode advir-lhe por fazê-la». O conjunto do relato -- que teve ao longo dos anos admiradores tão variados como o príncipe de Ligne, Dostoiewski, Apollinaire ou quem escreve isto -- é quase caricaturalmente oitocentista (a primeira edição, publicada como corresponde na liberal Holanda, é de 1748): percebe-se que as elocubrações doutrinais estejam calculadas para provocar no leitor uma excitação intelectual não menos coceguenta do que a estimulação glandular das descrições eróticas. Quase com toda a certeza, o autor da novela foi Jean-Baptiste de Boyer, marquês de Argens, um epicúrio provençal partidário de prazeres sem complexos nem sofrimentos, ousado no cochicho ao ouvido discreto, mas respeitoso da ordem social estabelecida e complacente apologista do onanismo -- sobretudo feminino -- como de uma derivação estrita e gratamente lógica do «amor-próprio».
A verdade é que Boyer d'Argens não possuiu ideias demasiado revolucionárias se compararmos com outros autores do seu fértil século (num dos seus livros, A filosofia do bom senso, define placidamente a voluptuosidade como «a tranquilidade do espirito e a saúde do corpo»), mas apresenta-se-nos como um homem inteligente e refinado que pensa para se livrar do assédio daqueles que pretendem amargurar-lhe os prazeres da vida com superstições. Não quer edificar outro sistema, mas sim impedir que os sistemas reinantes ou a própria mania sistemática que como filósofo por vezes partilha turvem os seus prazeres. É um projecto intelectual que conta com toda a minha simpatia, apesar das suas limitações. Ainda mais se tivermos em conta que figuras mais destacadas dessa época, como o imenso Kant, tinham em matéria sexual opiniões tão pacatas e penitencialmente continentes como as do pior pároco de aldeia. No entanto, em Teresa, há pelo menos um delineamento relativamente original: a negação da natureza. Esclareçamos que não se trata da negação da natureza dos materialistas puros do tipo de La Mettrie, segundo a qual todas as leis naturais e princípios providentes se reduzem a inércia e acaso [ver a palavra NATUREZA], mas uma negação por elevação, equivalente a uma sobrenaturalização da natureza. «Sim, ignorantes! A natureza é uma quimera. Tudo é obra de Deus. Dele recebemos as necessidades de comer, beber e gozar dos prazeres. Porquê corar ao cumprir os seus desígnios? Porquê recear contribuir para a felicidade dos humanos preparando-lhes pratos variados, próprios para contentar com sensualidade essa pluralidade de apetites?» Para Boyer d'Argens não há natureza, mas Deus: isto é, as exigências da necessidade material que constituem o nosso código fisiológico devem ser por nós cumpridas não com simples resignação desculpabilizada, mas com piedoso júbilo inocente e com devota imaginação hedonista. A religião do homem honrado é gozar o mais que pode, dado que os prazeres são mandamentos divinos, e obedecer às leis que contribuem para manter unida e hierarquizada a sociedade, dado que a autoridade terrena tem uma origem tão naturalmente divina como os nossos indomáveis desejos sensuais. O bem e o mal da moral são-no apenas em relação aos homens: a Deus não podemos causar dano nem benefício e no seu sistema universal cada um dos aparentes danos tem contrapartida na sua apropriada compensação positiva. No mundo de Boyer d'Argens até tem cabimento a superstição fradesca, sempre que uma elite tão discreta como bem informada possa escapar clandestinamente à sua influência. Na verdade, pensa o desembaraçado libertino, porquê ceder o prestigioso nome de Deus aos inimigos da natureza, podendo convertê-lo em santo e senha dos que jocundamente se submetem aos seus mandatos? Se podemos converter um relato pícaro em obra piedosa para gente inteligente, porquê privar-se desse prazer?
Esta disposição intelectual do autor de Teresa filósofa parece ir contra a vontade transgressora que se imbrica a partir do século seguinte com o afã pornográfico. Para Baudelaire, «a voluptuosidade única e suprema do amor jaz na certeza de fazer o mal» (Foguetes, III). Boyer d'Argens teria perguntado: «Fazer mal a quem? Fazer mal porquê?» Certamente, Baudelaire não é um beato que aceite sem mais os códigos clericais, mas um refinado esteta que os converte em aguilhão do desejo: que prazer podemos obter de cumprir religiosamente os mandatos da natureza sobrenaturalizada ou de um Deus naturalizado? A proibição do prazer é a chave que o estimula: a luz vermelha acende-se e com ela os meus desejos de atravessar a rua. Deus não nos faz falta para legitimar as nossas apetências, o que as torna tão insulsas como respirar ou defecar, mas para vetá-las e assim espoliá-las até ao delírio da rebelião sensual. Aparentemente, este ponto de vista opõe-se frontalmente ao pensamento libertino do século anterior: no século XVIII, a proibição era um obstáculo que vedava o regresso ao paraíso divinamente natural, convertendo-se depois na porta de acesso ao verdadeiro paraíso que é sempre artificial. Digo «aparentemente» porque os transgressores paraísos artificiais românticos estão embebidos de raivosa nostalgia em relação a uma inatingível natureza originária aniquilada pelos usos predatórios da modernidade. O romântico desfruta violando as proibições burguesas estabelecidas porque a ordem burguesa segregou-nos definitivamente do reino da inocência pristina: mas só desfruta violando-as, porque fora dessa escandalosa vingança já não há recompensas espontaneamente hedonistas ao seu alcance. O teórico que foi mais fundo nesta modalidade perversa do prazer (deixando de lado Freud, naturalmente) foi Georges Bataille, que a contrapôs explicitamente ao naturalismo oitocentista: «A transgressão difere do "retorno à natureza"»: levanta a proibição sem a suprimir.»(O erotismo.) A lei mantém-se como guardiã e indicadora do desejo pecaminoso que proíbe: e fora do pecaminoso, o desejo carece de incentivos e de orientação sensual. Certamente, este malditismo é um decidido regresso à mentalidade cristã fundacional, inimiga das jocundas espontaneidades corporais que associa com a nossa humilhante mas felizmente redimida condição mortal. Também para São Paulo a proibição é origem e revelação do pecado, cujo atractivo descobrimos graças a ela: Que diremos, pois? A lei é pecado? De modo algum. Mas eu só conheci o pecado através da lei; porque também não conheceria a cobiça se a lei não dissesse: não cobiçarás. Mas o pecado, ganhando oportunidade pelo mandamento, produziu em mim toda a cobiça: porque sem a lei o pecado está morto» (Rom. VII, 7?8). É a lei que me revela o afã pecador, porque o conteúdo da lei é «que na carne não mora o bem e que o mal está em mim» (ibidem). Oportunidade para o santo de renúncia e elevação espiritual, mas para o pecador de uma perdição deliciosa. A tal ponto que já não haverá para ele delícia sem ela. Aqui, há mais servidão que emancipação: ligar o próprio desejo à proibição alheia é a máxima submissão possível ao ideal de autoridade (sobre este assunto, ver também TEMPERANÇA).
A verdade é que, ao longo dos séculos, a atitude dos filósofos em relação aos prazeres eróticos foi de notável receio, quando não de aberto repúdio. A maioria dos pensadores não só nunca se dedicou a escrever uma novelazinha pornográfica como a Teresa do amável Boyer d'Argens, como reservaram o mais eloquente do seu estilo para desprezar, ridicularizar ou condenar os palpitantes espargimentos nela narrados. Afinal, assegura Cícero em De finibus, «a habilidade na prática do prazer nunca foi mencionada em nenhuma estela funerária». Dir-se-ia que para o egrégio senador os vivos devem desdenhar todas as actividades ou destrezas que não podem ser evocadas com encómio no dia do funeral. E referir-se em voz alta ao que Montaigne chama a «acção genital» já constitui por si só um atrevimento pouco decoroso... mesmo naquele século XVI tão dado à franqueza licenciosa. Porque evitam os discursos sérios e ordenados referir-se a este tema ou o tratam com vergonha, interroga-se Montaigne. «Pronunciamos audazmente: matar, roubar, trair; em contrapartida, aquilo, só nos atreveremos a mencioná-lo entre dentes? Quer dizer que, quanto menos o exalemos em palavras, tanto maior empenho poremos em aumentá-lo em pensamento?» As estelas funerárias que tanto preocupavam Cícero consignam com eufemismos mal velados as traições, roubos e crimes dos defuntos que através deles obtiveram renome, mas nunca os seus trabalhos de amor perdidos ou ganhos. Acontece que o escarcéu erótico não deixa nada construtivo atrás de si, salvo o desejo de reincidir: pertence à ordem do que morre com a vida e não à ordem do que vive com a morte, pelo que está a mais nos epitáfios. Mas, enquanto vivemos, as palavras podem calá-lo nos discursos sérios (e o mais sério de todos, infelizmente, costuma ser o filosófico) mas no pensamento cresce e cresce. Como os seus ensaios não são «sérios» nem «ordenados» mas sábios, Montaigne atreve-se a receitar-se com ironia descarada uma dose de tão mal vista medicina: «É uma ocupação inútil [fala da inominável "acção genital"], certamente, perturbadora, vergonhosa e ilegítima; mas, conduzindo-a desta forma [isto é, com prudência ou temperança, E S.] considero-a saudável; própria para desentorpecer um espírito e um corpo envenenados; e, se fosse médico, receitá-la-ia a um homem da minha forma e condição, com muito mais prazer que qualquer outra medicina, para o espevitar e mantê-lo em posição de vantagem ao longo dos anos e atrasar os achaques da velhice.»
Por sua vez, Lucrécio,
que naturalmente não é suspeito de proibicionismo supersticioso,
não partilha esta higiénica concepção do assunto
genital. Todo o seu poema didáctico está orientado para nos
libertar de preconceitos e miragens: o erotismo (isto é, não
a simples função sexual mas a paixão por ela e o afã
maníaco de a embelezar e refinar) tem parte de preconceito e parte
de miragem. Esta loucura amorosa, diz Lucrécio, é motivada
por um problema de congestão glandular -- sobrecarga nas gónadas
de licor seminal -- que afecta doentiamente o cérebro masculino
(do erotismo feminino não se ocupa o nosso filósofo, com
uma misoginia típica do grémio). Daí um preconceito:
o de que para aliviar essa congestão é preciso conquistar
uma pessoa especialmente desejada, não uma pessoa qualquer mas uma
única e insubstituível. Ridícula mas transtornadora
ilusão, porque na verdade a única satisfação
possível reside em livrar-nos de algo que nos sobra, não
em conseguir algo que nos falta. E aqui vem a ilusão, dado
que nem as carícias, nem os gulosos olhares, nem os mais apertados
abraços, permitem apoderarmo-nos da beleza alheia ou fundir duradouramente
o corpo desejado com o nosso. Por um instante, os membros entrelaçados
dissolvem-se na convulsão do prazer, mas depressa «volta a
mesma loucura, o mesmo frenesim, e lutam por conseguir o objecto das suas
ânsias, sem poderem descobrir artifício que vença o
seu mal; assim, em profundo desconcerto, sucumbem à sua chaga secreta»
(De rerum natura, liv. IV). Deste modo, Eros enlouquece-nos: e quanto
mais loucos estamos tanto mais paixão refinada pomos num assunto
que deveria resolver-se com a mesma higiénica sobriedade aconselhável
para qualquer outra urgência excretória.
Vergonha, loucura, ilusão... e, sobretudo, cumplicidade com
a dor e a morte. Schopenhauer, um dos poucos
filósofos que se ocupou em profundidade da questão sexual,
analisa-a com fascinado horror, como a expressão mais cabal em nós
dessa vontade cega que perpetua a eterna reprodução do sofrimento
à escala cósmica. Freud e Bataille fazem mais finca-pé
na vinculação entre sexo e morte. É Georges Bataille,
outro filósofo que escreveu novelas pornográficas para que
a atrevida estirpe não se extinguisse com Boyer d'Argens (recordemos
O azul do céu, O Abade C, A minha mãe,
O morto, etc.), que melhor expressa condensadamente este parentesco:
«A sexualidade e a morte não são mais que os momentos
agudos de uma festa que a natureza celebra com a massa inesgotável
dos seres, uma e outra têm esse sentido de ilimitado esbanjamento
com o que a natureza age, contra o desejo de durar que é próprio
de cada ser.» (O Erotismo.) Na morte e na sexualidade humilha-se
até à aniquilação a individualidade do sujeito
humano: negativa e definitivamente na primeira, positiva e transitoriamente
na segunda. Daí a vergonha assustada e confusa que o tema provoca
em muitos filósofos destacados: a acção genital causa
mais embaraços entre os pensadores do que em muitas damas descuidadas...
Mas na vinculação entre sexo e morte Bataille encontra precisamente
cimentos para a sua reivindicação do erotismo. O habitual
é que a negra irmandade entre sexualidade e mortalidade permaneça
oculta, talvez para não desanimar os amantes na sua tarefa. É
conhecida desde sempre e os moralistas de todas as religiões não
deixaram de a assinalar, mas os gozadores vulgares preferem transitoriamente
pô-la de lado quando sobem para a sua cama de prazeres: é
mérito de don
Juan assumi-la com lucidez e sem tremer até às suas últimas
consequências. Em tal aceitação revela-se precisamente
a diferença entre o mero sexo
e o erotismo: o primeiro fica aturdido quanto à sua relação
com a morte ou procura alegação na reprodução
para a resolver satisfatoriamente (vivemos nos nossos filhos, o que certifica
a nossa morte prolonga a nossa vida!), enquanto que o segundo a olha de
frente e até obtém prazer dela. O erotismo, diz Bataille,
é a aceitação da vida até na morte. Esta aceitação
não é mera resignação nem sequer uma simples
astúcia da vontade de viver, como diagnosticou Schopenhauer, nem
uma ilusão ao modo assinalado por Lucrécio. O erotismo é
a função intelectual da sexualidade: brota desta e necessita
de se apoiar nela mas transcende-a, do mesmo modo que o pensamento necessita
do cérebro, se apoia nele e o transcende. Apesar do
amor ser o reino do engano e do mal-entendido,
há nele uma possibilidade insubstituível de lucidez: pelo
erotismo pode chegar-nos a visão decisiva. É isto
que Bataille garante: «No fundo, nada é ilusório na
verdade do amor: o ser amado equivale para o amante, sem dúvida
só para o amante, mas que importa isso, à verdade
do ser. O acaso quer que através dele,
uma vez desaparecida a complexidade do mundo, o amante perceba o fundo
do ser, a simplicidade do ser.» (O Erotismo.)
Não nos iludamos pois dos esforços filosóficos de Teresa, nem sorriamos perante as argumentações a que Boyer d'Argens se entrega com paixão racional na alcova. Há algo comovedoramente inteligente até à obscenidade que parece vil ao delicado, até na imundice mais deliberada que repugna e sobressalta a carne débil dos tentados por ela. A filosofia demasiado respeitável equivoca-se quando tapa os ouvidos com desdém idealista perante a música erótica que muitas sereias perturbadoras -- masturbadoras... -- nunca deixam de fazer soar. Sobre esta pode dizer-se o mesmo que Luis Cernuda deixou escrito para sempre sobre outra musiquinha insistente que através das acácias em flor do jardim lhe chegou numa noite tíbia de Maio: «Não era a voz da melodia imortal, que nos persuade de que em nós, como nela, algo não irá acontecer; esta, frágil e inconsistente, falava à nossa dúvida, incitando-nos a gozar, acentuando que a noite e a ocasião tornavam dramático, como nos adverte a voz que, através de um ridículo véu, seria profunda, apaixonada.» (Ocnos.)
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