É
difícil encontrar mais do que um punhado de vozes em todo o mundo
cuja Arte se mantenha inultrapassável por mais de três
décadas. São poucas as que nos conseguem surpreender ao
longo de uma carreira tão grande, mesmo usando ferramentas aparentemente
simples. E só um pequeno número de escolhidos consegue
atingir um tal nível de paixão que acorda em quem os ouve
a crença de que, afinal, a alma humana é muito mais rica
e profunda do que pareceria à primeira vista.
Tentemos
nomear alguns desses escolhidos: Sinatra, Ella, talvez mais dois ou
três ao todo, não mais de dez ao longo do século
XX. E Amália - como esta compilação prova sem
margem para dúvidas! - é um deles.
Embora
a sua carreira tenha começado em 1939, foi só em 1945
que ela começou a gravar, e até 1951 apenas registara
cerca de 50 faixas (o equivalente a 3 CD's actuais). 1952 marcou o
início de uma nova era: Amália começou a gravar
para a Valentim de Carvalho, correndo cada vez mais riscos, buscando
algo mais, algo de diferente, na sua escolha de repertório
e arranjos, no seu modo de cantar. Mas sem nunca abdicar de ser a
sua alma a guiá-la nessa busca - partilhando a tragédia,
a alegria ou a ansiedade, sem preocupações de ter de
provar o que quer que fosse.
Alguns dos seus contemporâneos poderiam ser mais leais ao classicismo
do Fado - mas o Génio nunca é leal a regras! Outros
podem ter preferido acompanhar as modas - mas a Alma nunca aceita
tais ditaduras. O facto é que nenhum outro Artista Português
conseguiu manter-se tão vibrante, tão vivo, tão
significativo, tão Português - e contudo tão universal!
- ao longo de uma tão longa e tão extraordinária
carreira.
Em todas
estas faixas pode notar-se uma ressonância fadista, embora algumas
não sejam Fados. "Coimbra", "Uma Casa Portuguesa"
ou "Lisboa Antiga" são exemplos de clássicos
da canção popular portuguesa. É o espírito
e a elegância de Amália que os fazem transcender o seu
estatuto de cançõezinhas alegres e orelhudas que faziam
sucesso nos teatros dos anos 50.
Os Fados
tradicionais são temas como "Povo que Lavas no Rio",
"Estranha Forma de Vida", "Maldição"
ou "Primavera": melodias que já foram cantadas vezes
sem conta por outras vozes, mesmo com letras muito diferentes. E contudo
nunca se encontraram melhores palavras para estas Músicas!
Nenhuma outra voz conseguiu atingir um tal nível de perfeição
clássica e de emoção apaixonada.
A terceira
categoria de reportório é o "novo Fado" -
Fados que começaram por ser considerados heresias, desvios
da tradição. São os casos de "Ai Mouraria",
"Gaivota" ou "Foi Deus " - ainda hoje é
difícil catalogá-los com uma "etiqueta" que
pare todas as discussões. Mas a sua qualidade já há
muito ultrapassou todas as barreiras - e é natural que a voz
de Amália tenha tido alguma coisa a ver com isso!
Embora
não tenha escrito as letras da maior parte dos seus clássicos,
Amália nunca aceitou ser uma mera intérprete das ideias
e das emoções de outros. Nos anos 40, ela comprava dezenas
de poemas a letristas populares para depois escolher apenas os melhores
para cantar. A maior parte eram histórias de amor (muitas vezes
com finais infelizes!) que se limitavam ao convencionalismo dominante
na altura. Amália, contudo, queria mais - e começou
a pedir aos seus guitarristas para musicar poemas que ela tirava de
livros ou de jornais. Até que, um dia, houve poetas que começaram
a escrever propositadamente para a sua voz. Independentemente de terem
sido eles a escolhê-la ou ela a escolhê-los, o facto é
que a qualidade da música atingiu novos cumes - e revelou igualmente
uma nova Amália: mais complexa, irónica ou trágica,
muitas vezes usando símbolos e metáforas, passando da
descrição do amor infeliz a questionar a possibilidade
do próprio amor, ou mesmo o destino humano. Fado.
Esta
compilação reúne gravações dos
anos 50 - "Barco Negro", "Há Festa na Mouraria",
"Lisboa Antiga " e "Foi Deus", por exemplo, mostram-nos
uma voz mais jovem - bem como temas da sua obra-prima de 1970, "Com
que voz" ("Gaivota", "Maria Lisboa", "Havemos
de Ir a Viana" e "Com que Voz"), e muito material dos
anos 60. O tema final, "Foi Deus", vem da sua primeira sessão
de gravação com Rui Valentim de Carvalho, feita em 1952
nos estúdios londrinos de Abbey Road. "Foi Deus (...)
deu-me esta voz a mim." Quem poderia duvidar?