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Tolerância,
intolerância, intolerável - três dimensões
que atravessam o nosso quotidiano, cruzam o tempo, misturando-se
como ingredientes expressivos da acção
humana. Conceitos nem sempre
compreendidos e muitas vezes usados para justificar ou injustificar
o mesmo acto. É hora de os iluminar com a transparência
-- que só a luz do conhecimento
e da reflexão crítica
lhes pode devolver. Para tanto, regressamos a John
Locke e à sua ainda actual e perturbadora Carta
sobre a Tolerância, num percurso que convoca para
o debate Simon Blackburn, Fernando
Savater, François Jacob, a UNESCO,
Agostinho da Silva, André
Comte-Sponville [ver o seu texto A tolerância]
e Eduardo Lourenço, entre outros.
(Jerónimo Costa)
"Tolerância
- abstermo-nos de agir contra o que reprovamos, contra o que nos
é politicamente contrário ou contra o que é
diferente de nós. A tolerância em matéria
religiosa é um dos bastiões
do estado democrático
moderno; neste aspecto, a Carta sobre a Tolerância,
de Locke (1689), é a autoridade basilar, embora o próprio
Locke excluísse os católicos
da sua área de protecção, com a justificação
de que a sua verdadeira fidelidade era para com a Igreja e não
para com o governo. O problema filosófico central consiste
em compreender como pode um princípio de tolerância
coexistir com a convicção moral
e religiosa genuína."
(BLACKBURN, Simon - Dicionário
de Filosofia)
"Filosofar
não deveria ser libertar-se das dúvidas,
mas entrar nelas. É verdade que muitos filósofos --
e mesmo dos maiores! -- fazem, por vezes, formulações
peremptórias que dão a impressão de ter encontrado
já respostas definitivas para as perguntas que nunca podem
nem devem fechar-se intelectualmente por completo. Agradeçamo-lhes
as suas contribuições mas não lhes sigamos
os seus dogmatismos."
"Porque
não é apenas o interesse que leva os homens a matarem-se
mutuamente. É também o dogmatismo. Nada é
tão perigoso como a certeza de se ter razão. Nada
causa tanta destruição como a obsessão duma
verdade considerada absoluta.
Todos os crimes da história são consequência
de algum fanatismo. Todos os massacres foram cometidos por virtude,
em nome da verdadeira religião, do nacionalismo legítimo,
da política idónea, da ideologia justa; em suma, em
nome do combate contra a verdade do outro, do combate contra
Satanás. A frieza e a objectividade,
que se reprovam tantas vezes nos cientistas, talvez sejam mais úteis
que a febre e a subjectividade
para discutir certos assuntos humanos. Porque não são
as ideias da ciência que provocam as paixões. São
as paixões que utilizam a ciência para sustentar a
sua causa. A ciência não
conduz ao racismo e ao ódio. É o ódio que faz
apelo à ciência para justificar o seu racismo. Podem
criticar-se certos cientistas pelo ardor com que por vezes defendem
as suas ideias. Mas nenhum genocídio
foi ainda perpetrado para fazer triunfar uma teoria
científica. No final deste século XX deveria ser claro
para todos que nenhum sistema
explicará o mundo em todos os seus aspectos e todos os seus
pormenores. Ter contribuído para pôr termo à
ideia duma verdade intangível e eterna
talvez não seja um dos menores títulos de glória
do método científico."
(JACOB, François
- O jogo dos possíveis, p.10-11)
"No
final deste século XX deveria ser claro para todos que nenhum
sistema explicará o mundo em todos os seus aspectos e todos
os seus pormenores. Ter contribuído para pôr termo
à ideia duma verdade intangível e eterna talvez não
seja um dos menores títulos de glória do método
científico." O autor destas linhas é o biólogo
François Jacob, prémio Nobel de Medicina. Neste seu
livro, "O jogo dos possíveis", o humanista alia-se ao homem
de ciência para convidar a uma apaixonante reflexão
sobre a história do vivo e os mecanismos ainda misteriosos
da evolução. Como surgiu a sexualidade?
Como explicar o envelhecimento? E, o que é mais extraordinário,
o desenvolvimento do embrião a partir de um ovo fecundado?
François Jacob insiste no valor e na importância da
diversidade dos indivíduos, que é, por assim dizer,
uma garantia para o futuro da espécie.
Quanto mais um domínio científico
se aproxima das coisas humanas, tanto mais se arrisca a entrar
em conflito com as tradições a as crenças.
A diversidade dos indivíduos
que a reprodução sexual engendra raramente é
tomada por aquilo que é: um dos principais motores da evolução,
um fenómeno natural, sem o qual não estaríamos
aqui. Por um curioso equívoco,
procura-se confundir identidade,
conceito biológico, com igualdade, conceito social. 'Como
se a igualdade não tivesse sido inventada precisamente
porque os seres humanos não são idênticos.'"
(Gradiva, Ciência Aberta)
Uma Procura Universal
de Tolerância
1995 Ano das Nações
Unidas para a Tolerância
Tolerância: virtude ameaçada
Como fazer frente à intolerância?
1 - A luta contra a intolerância requer leis
2 - A luta contra a intolerância requer educação
3 - A luta contra a intolerância requer acesso
à informação
4 - A luta contra a intolerância requer uma
tomada de consciência individual
5 - A luta contra a intolerância requer soluções
locais
1995 Ano
das Nações Unidas para a Tolerância...
e depois?
Por iniciativa da UNESCO, as Nações
Unidas decidiram proclamar 1995 -- ano do cinquentenário
das duas organizações -- Ano Internacional da Tolerância.
Os "anos internacionais" são uma ocasião
propícia para suscitar ideias novas, organizar debates
e sensibilizar para a tomada de consciência. Com frequência
dirigem-se a um grupo, a um campo de acção ou a
um tema específicos. O Ano Internacional para a Tolerância
evidencia uma virtude individual que aparece cada vez mais como
uma necessidade política e jurídica para a coexistência
pacífica.
Aceitação e apreço da
diversidade, capacidade de viver e deixar viver os outros, capacidade
de ter as suas próprias convicções aceitando
que os outros tenham as suas, capacidade de gozar dos seus direitos
e liberdades sem infringir os do próximo - a tolerância
foi sempre considerada como uma virtude.
Também é o fundamento da democracia
e dos direitos humanos.
A intolerância nas sociedades multiétnicas,
multireligiosas ou multiculturais conduz à violação
dos Direitos Humanos, à violência e à guerra.
Como conquistar a Tolerância cinquenta
anos após os signatários da Carta das Nações
Unidas terem decidido "praticar a Tolerância e viver em
paz uns com os outros, num espírito de boa vizinhança"
e mais de duzentos anos após Voltaire
[e John Locke (nota do trad.)] ter travado uma batalha filosófica
apaixonada contra a intolerância, o sectarismo e a injustiça
que a legitimava?
O Ano da Tolerância serviu para lançar
e formular novas e velhas ideias assim como para sensibilizar
a opinião pública. Entre as iniciativas individuais
figuram o recurso a métodos de ensino tradicionais e locais
-- como espectáculos de títeres, marionetas para
crianças -- exposições, música e filmes
para dar a conhecer melhor outras culturas,
regiões e modos de vida.
As actividades da UNESCO a favor da tolerância
foram desenvolvidas em zonas em conflito -- por exemplo em Sarajevo,
onde se instalou uma emissora de televisão multiétnica,
NTV99, graças às doações de vários
países europeus -- e em sociedades em situação
de pós-conflito -- projectos de reconciliação
e reconstrução no Burundi, Moçambique e El
Salvador conduziram antigos inimigos a descobrir as necessidades
colectivas e o futuro comum.
As escolas foram lugares privilegiados das
actividades do Ano. A UNESCO editou A TOLERÂNCIA, suporte
da paz, guia didáctico enviado a milhares de estabelecimentos
de ensino no mundo solicitando-lhes comentários e sugestões.
Em muitos países as escolas organizaram debates nas aulas,
concursos de redacção e de desenho, semanas de informação,
festivais e programas de intercâmbios escolares sobre o
tema da Tolerância.
A UNESCO criou um prémio para a promoção
da Tolerância e da não violência e outro para
a literatura infantil ao serviço da tolerância. Durante
o Ano surgiram iniciativas originais por parte de pessoas que
se comprometeram pessoalmente a defender a tolerância colaborando
em campanhas de sensibilização da opinião.
Seis artistas, entre os mais destacados, exprimiram este ideal
por meio de seis bandeiras, símbolos da tolerância;
Pierre Cardin, embaixador de Boa Vontade da UNESCO produziu e
ofereceu a cada país um jogo destas bandeiras para que
sirvam de testemunho intemporal da tolerância a milhões
de seres humanos no mundo.
A 14 de Julho de 1995, Jean-Michel Jarre,
igualmente embaixador de Boa Vontade da UNESCO, atraiu ao seu
concerto pela tolerância milhão e meio de pessoas
e muitos outros milhões puderam segui-lo através
da sua retransmissão. Mais de duzentos concorrentes participaram
no rally de motos de Denver ao Canal do Panamá, organizado
pela BMW numa estrada chamada simbolicamente "Caminho da tolerância".
A Tolerância, o multiculturalismo,
a diversidade universal, o diálogo religioso e cultural
foram temas de debate através de meia centena de encontros
nacionais, regionais e internacionais ao longo do Ano. Previstos
em princípio como fóruns de intercâmbio de
pontos de vista e conhecimentos, estes encontros permitiram reflectir
sobre a definição e as condições da
tolerância, bem como discutir sobre a estratégia,
as orientações para promover a tolerância
e combater o ressurgimento da intolerância nos anos vindouros.
Estes trabalhos tiveram como ponto culminante
a Declaração de princípios sobre a Tolerância,
adoptada e assinada em 16 de Novembro de 1995, dia da celebração
do quinquagésimo aniversário da adopção
da Constituição da UNESCO.
Os signatários da Declaração
afirmam que a tolerância não é só um
princípio moral mas também uma necessidade política
e jurídica para os indivíduos, os grupos e os Estados.
Situando a tolerância em relação aos instrumentos
internacionais que dizem respeito aos direitos humanos e que se
estabeleceram desde há 50 anos, sublinha-se que os Estados
deveriam elaborar, se necessário, novas normas legislativas
com o fim de garantir a igualdade de tratamento e oportunidades
aos diferentes grupos e indivíduos que formam a sociedade.
Além de se comprometerem a promover
a tolerância e a não violência através
de programas educativos, os Estados membros proclamaram o dia
16 de Novembro, Dia Internacional para a Tolerância. A Declaração
submeter-se-á à aprovação da 51ª
reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas
em 1996.
Tolerância:
virtude ameaçada
A proclamação de um Ano
internacional para a Tolerância tinha por objectivo imediato
sensibilizar os políticos e a opinião pública
para os perigos ligados às formas contemporâneas
de intolerância. Desde o final da guerra fria, assiste-se
a um aumento constante de conflitos de origem social, religiosa
e cultural. Com demasiada frequência os referidos conflitos
degeneraram em guerra, frequentemente violaram-se os direitos
humanos e sacrificaram-se muitas vidas.
Que têm em comum o ressurgimento dos
conflitos históricos e dos confrontos armados nos Balcãs
e a recrudescência alarmante de agressões racistas
na Europa Ocidental? Que laços, se é que existem,
unem os grupos extremistas ou os que preconizam a supremacia de
uma raça, onde quer que se encontrem no mundo? Que relação
há entre o genocídio no Ruanda e as guerras protagonizadas
por grupos extremistas religiosos noutros lugares do planeta?
Há alguma relação entre os actos de violência
cometidos contra escritores, jornalistas e artistas num país
e a discriminação que sofrem, noutros, os povos
indígenas?
A única resposta que nos ocorre de
imediato é que a intolerância progride em todas a
partes e mata em grande escala. A intolerância coloca numerosas
questões de índole moral. Sempre foi assim. Mas,
nos anos 90 a intolerância coloca também questões
de carácter político. A intolerância considera-se
cada vez mais uma séria ameaça para a democracia,
a paz e a segurança. O problema preocupa, com razão,
governos e opinião pública. E, contudo, quando se
fala de intolerância, as perguntas são mais numerosas
do que as respostas.
A intolerância tem estado sempre presente
na história humana. Provocou a maioria das guerras, as
perseguições religiosas e as confrontações
ideológicas violentas. É, pois, inerente à
natureza humana? É iniludível? Pode aprender-se
a tolerância? Como é que as democracias podem quebrar
a intolerância sem fragilizar as liberdades
individuais? Como podem estabelecer códigos de comportamento
individuais sem legislar e sem controlar o comportamento dos seus
cidadãos? Como pode instaurar-se um multiculturalismo pacífico?
Estas questões conduziram em
1995 a debates nos quais participaram representantes de governos,
peritos em ciências sociais, juristas, especialistas em
direitos humanos, artistas e muitas outras pessoas. Houve um amplo
consenso e propuseram-se algumas soluções. Porém,
resta ainda muito mais por fazer. Propôs-se convocar uma
cimeira mundial contra o ódio. De quanto tempo dispomos
antes que rebente a nova crise? Enquanto os ponteiros do relógio
giram, ouvimos ressoar as palavras de Wlatko Dizdarevic, chefe
de redacção do jornal multiétnico de Sarajevo,
Oslobodenje: "Em Sarajevo é o próprio conceito
de comunidade multiétnica que se encontra submetido a dura
prova; o nosso destino poderia muito bem ser o seu".
Como fazer
frente à intolerância
1 - A luta contra
a intolerância requer leis:
Todo o Estado tem a responsabilidade de
fortalecer a legislação referente aos direitos humanos,
proibir e castigar os crimes motivados pelo ódio e a discriminação
das minorias independentemente do facto de estes crimes serem cometidos
por representantes do Estado, organizações privadas
ou indivíduos. O Estado deve garantir um acesso equitativo
aos tribunais e aos organismos de defesa dos direitos humanos ou
de mediação para que os cidadãos não
apliquem a sua própria justiça nem recorram à
violência para resolver os seus litígios.
2 - A luta contra
a intolerância requer educação:
As leis são necessárias mas
insuficientes quando se trata de combater a intolerância
nas suas raízes ou atitudes individuais. A intolerância
tem frequentemente origem na ignorância e no medo: medo
do desconhecido, do outro, de outras culturas, nações,
religiões. A intolerância encontra-se também
intimamente ligada a um sentimento exagerado do seu próprio
valor, de orgulho que pode ser
pessoal, nacional ou religioso. Estas noções ensinam-se
e aprendem-se desde a infância; pelo que a educação
para a tolerância deve intensificar-se. É preciso
habituar as crianças, tanto em casa como na escola, a mostrarem-se
mais abertas, curiosas e receptivas.
A educação é um
processo contínuo que se prolonga durante toda a vida;
não começa nem termina na escola. As tentativas
de incutir a tolerância por meio da educação
não terão êxito se não se dirigirem
a todos e em todas as partes: em casa, na escola, no trabalho,
em lugares de diversão e, agora, através das auto-estradas
da informação.
3 - A luta contra
a intolerância requer o acesso à informação:
A intolerância é muito perigosa
quando se usa ao serviço de ambições políticas
e territoriais de um indivíduo ou grupo. Os que incitam ao
ódio começam com frequência por identificar
os alicerces da tolerância na opinião pública
antes de expor argumentos falaciosos, jogando com as estatísticas
e manipulando o público apoiando-se em preconceitos e falsas
informações. O meio mais eficaz para limitar a influência
destes propagadores de ódio é tomar medidas que favoreçam
a liberdade de imprensa e o seu pluralismo, a fim de que os leitores
possam distinguir entre factos e
opiniões.
4 - A luta contra
a intolerância requer uma tomada de consciência individual:
O sectarismo, os estereótipos, os
insultos e as anedotas e gracejos racistas são outros tantos
exemplos de tipos de manifestação individual com que
se encontram confrontadas diariamente numerosas pessoas: incita
as suas vítimas a vingar-se. Para combater a intolerância
devemos dar-nos conta do vínculo que existe entre o nosso
comportamento e o círculo vicioso da desconfiança
e a violência na sociedade. Cada um de nós deveria
começar por se perguntar: Sou tolerante? Tenho estereótipos
em relação a certas pessoas ou grupos? Rejeito os
que são diferentes de mim? Culpo-os das minhas dificuldades?
5 - A luta contra
a intolerância requer soluções locais:
Muitos de nós sabem que os problemas
de amanhã vão mundializar-se cada vez mais, mas poucos
se dão conta de que a solução destes problemas
é local e inclusive individual. Face ao aumento da intolerância
que nos rodeia, não devemos esperar que os governos e as
instituições actuem sós. Todos fazemos parte
integrante da solução. Não deveríamos
sentir-nos impotentes, pois possuímos uma capacidade enorme
de poder. A acção
não violenta é um meio de exercer este poder, o poder
do povo. Os instrumentos da acção não violenta
-- formar um grupo para encarar um problema, organizar uma rede
local, exprimir a sua solidariedade para com as vítimas da
intolerância, detectar e desprestigiar a propaganda odiosa
-- estão à disposição de todos os que
querem acabar com a intolerância, a violência e o ódio.
Selecção de textos e
tradução (e destaques) do texto da Unesco
de Jerónimo
Costa.
Viseu, Janeiro de 2001
Leia ainda
»» Tolerância
(capítulo do Pequeno Tratado das Grandes Virtudes)
»» O verbete Tolerância
do Lexicon (óptima
entrada -- e uma espécie de índice -- para
o tema)
»» O verbete Tolérance
(em francês) do Dicionário filosófico
de Voltaire
»» Limitando a tolerância
(reflexões de um aluno do 12º ano sobre aspectos
da Carta sobre a Tolerância de J. Locke) |
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