LEXICON 

VOCABULÁRIO DE FILOSOFIA  (ou quase...) 
Coordenação de  A.R.Gomes 

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TÉCNICA

I

(do grego technè) significa (1) na Antiguidade (como também na Idade Média, ars = "arte", "habilidade"), toda a realização de coisas sensorialmente perceptíveis ao serviço de uma necessidade ou de uma ideia; denota, por conseguinte, a habilidade ou destreza, tanto para o necessário (produzir coisas) quanto para o belo (tornar visível uma ideia). Derivado desta acepção, o vocábulo "técnica" (2) indica o formal, as regras comunicáveis da dita realização (p. ex., de tocar piano). A técnica (3), em oposição à arte, é a utilização dos recursos e forças da natureza, endereçada a satisfazer às necessidades humanas. Enquanto o ofício manual (a técnica artesanal) se limitou, durante muito tempo, a aplicar meros instrumentos (meios para atuar corporalmente; em sentido estrito: sem aumento da força de trabalho) e as chamadas máquinas de trabalho (ferramentas movidas à mão, com acréscimo de força operativa, p. ex., a cunha, a roldana), a técnica (4) da época moderna (a técnica mecânica) progrediu até chegar a usar máquinas de força (ferramentas movidas por forças naturais, p. ex., máquinas a vapor). Este progresso só se tornou possível, graças a um amplo conhecimento da natureza. Pelo que a técnica (4) pode ser definida como o aproveitamento ordenado dos recursos e forças naturais, baseado no conhecimento da natureza e posto ao serviço da satisfação das necessidades do homem.

Uma filosofia da técnica, como parte da filosofia geral da cultura, não só tem que mostrar a origem e as condições da técnica na natureza, suas disposições, forças e necessidades, como também investigar as multiformes reações da técnica sobre o homem e sobre a estruturação concreta da vida humana no indivíduo e na comunidade. Neste particular, se por um lado se manifesta o poder benéfico da técnica, sem a qual não teria sido possível que a humanidade e sua cultura alcançassem o atual grau de desenvolvimento, por outro lado não se pode desconhecer uma série de consequências indesejáveis, que evidentemente não brotam, em sua totalidade, da essência da técnica, mas, amiúde, de sua defeituosa inserção no domínio global da vida. Em parte necessárias e, em parte, evitáveis ou compensáveis por medida adequadas, são consequências da técnica: a evolução da indústria doméstica para indústria fabril, a desligação do operário do meio familiar, a acumulação de vultuosos capitais, a desigual possibilidade de lucro, o crescimento das grandes cidades, o aumento das necessidades, o afastamento do trabalho para longe da natureza com os concomitantes perigos para a saúde, para a alma e para o Estado. A independência relativamente à técnica ou a subordinação a ela da economia e das restantes esferas da vida (tecnocracia) deve conduzir à superprodução, à escravização do homem pela máquina e à desorganização social. A técnica deve servir, não deve dominar.

(Walter BRUGGER - Dicionário de Filosofia, verbete Técnica [elementos bibliográficos aqui])

 

II

Como a palavra grega technè, «arte», «habilidade», «técnica», da qual derivou, é essencialmente sinónimo de arte, no sentido de habilidade através da qual é possível obter voluntariamente um determinado resultado. Esta habilidade pode derivar quer da experiência vulgar e da imitação, quer do conhecimento de regras de acção codificadas, quer de um saber científico. Diferente da actividade artística propriamente dita, cuja finalidade estética é desinteressada, a técnica visa a utilidade e a eficácia. Fonte e condição do domínio da natureza pelo homem, a técnica é no entanto, e cada vez mais, objecto de numerosas críticas: as suas consequências sobre a vida e a natureza inquietam, pois o seu poder exercer-se-ia em detrimento do homem e do pensamento, e a irreversibilidade dos seus progressos ameaçaria os próprios responsáveis pela sua concepção, que poderiam perder o seu domínio.

Técnica e humanidade

A seguir a numerosos filósofos que, desde Aristóteles, analisaram a dependência estreita e recíproca entre a inteligência do homem e o fabrico de utensílios para transformar a matéria em seu proveito, os especialistas da pré-história (em particular André Leroi-Gourhan, em O Gesto e a palavra) fazem da aptidão para a actividade técnica um critério essencial de humanidade. O fabrico de utensílios supõe efectivamente que se represente mentalmente a acção a consumar, a forma do utensílio mais apropriada à natureza desta acção, a escolha dos materiais mais adaptados, etc. A técnica, tal como a linguagem, é indissociável do pensamento, logo da humanidade. Se o homem faz parte da natureza, as suas relações com ela são assim, desde a origem, mediatizadas por um terceiro termo, o utensílio. O simples uso das suas forças físicas, muito inferiores às dos outros animais, condenava-o a uma morte certa: a invenção destes prolongamentos do seu corpo, os utensílios, não assegura apenas a sua sobrevivência, pois contribui para que se sinta «dono e senhor da natureza» (Descartes).

Discursos contraditórios?

Quase sempre associada ao progresso da humanidade, condição pouco contestada da sua superioridade sobre a natureza, a técnica é no entanto naturalmente e desde há muito tempo, desvalorizada em proveito da actividade intelectual desinteressada, da cultura estética ou literária, da ciência pura. Narrando a vida de Arquimedes (sábio grego do século III a. C.), Plutarco apresenta-o como matemático genial que desprezava mais do que tudo as actividades técnicas, «coisas sem nobreza e vis ofícios». Teria sido «arrastado apesar de contrariado para o banho» (no qual teria sido pronunciado o famoso «Eureka!» na sequência da descoberta do princípio conhecido como o princípio de Arquimedes). Teria concebido as máquinas de guerra extraordinárias que por pouco não permitiram a vitória dos Gregos sobre os Romanos apenas para se divertir um pouco... O estatuto social e económico do trabalho manual na nossa sociedade é ainda muito inferior ao das actividades cuja realização necessita de uma preparação obtida através das formações dominadas pela cultura geral ou científica. Exceptuando alguns casos, os filósofos do século xx, século caracterizado por um crescimento considerável do progresso científico e técnico, pensaram, aliás, pouco na própria técnica, em nome da neutralidade dos utensílios, tratados como simples instrumentos de acção. Se por um lado se interessavam pela inteligência dos sujeitos agindo através da técnica, por outro, quase todos deploravam os seus sentimentos de impotência perante esses utensílios «demasiado» aperfeiçoados que são as mais máquinas. «O utensílio mais sofisticado mantém-se ao serviço da mão, não podendo nem guiá-la nem substituí-la. A máquina mais primitiva guia o trabalho corporal e, eventualmente, substitui-o praticamente» (Hannah Arendt).

Ambivalência do progresso técnico

Formulado desde o século XIX por Karl Marx, o problema é, de facto, a técnica não ser neutra. A técnica, controlada por uma minoria, responsáveis pela sua concepção e proprietários das máquinas que aumentam a eficácia do trabalho humano, ou autores de invenções susceptíveis de competir com a própria natureza, e mesmo de a destruir, pode tornar-se o instrumento do domínio desta minoria sobre a maioria dos seus congéneres, (cf. a crítica marxista da alienação dos trabalhadores manuais). Pensada como uma associação útil entre o homem e a máquina, a técnica pode, pelo contrário, aparecer novamente como instrumento por excelência do domínio racional da natureza pela humanidade: «O homem tem por função ser coordenador e inventor permanente das máquinas que estão à sua volta. Está entre as máquinas que operam com ele», escreve Gilbert Simondon, um dos filósofos contemporâneos que desenvolveu um pensamento positivo do objecto técnico — concebido como mediador entre o género humano e o mundo. A esta segunda figura opõe-se uma terceira atitude, motivada pelas ameaças que, de facto, o progresso técnico fez pesar sobre o equilíbrio da natureza e da própria vida: a inquietude daqueles que vêem no seu «carácter imperioso e conquistador» (Heidegger) uma espécie de essência intrinsecamente perigosa da técnica. Alguns pensadores contemporâneos (como Hans Jonas), chegam mesmo a pensar que a humanidade não sobreviverá a não ser que seja assaltada pelo medo, donde a ideia de uma «ditadura benevolente», susceptível de impor uma nova ética e uma verdadeira política de responsabilidade.

A técnica, depois de durante muito tempo ter incontestavelmente contribuído para a sobrevivência da humanidade, está, ao que parece, em vias de se tornar uma das suas maiores preocupações. Hoje, o controlo do seu futuro passa sem dúvida menos pela invenção de máquinas cada vez mais complexas, do que pelo desenvolvimento de uma reflexão cada vez mais vigilante em relação à técnica.

• TEXTOS-CHAVE: M. Heidegger, «La question de Ia techique» em Essais et conférences; G. Simondon, Du mode d'existence dês objects techniques; H. Jonas, Le principe de responsabilité; J.-P. Séris, La technique.

(Dicionário Prático de Filosofia, verbete Técnica [elementos bibliográficos aqui])

||| Questionamento da cultura científico-tecnológica é o título de um tema da rubrica Saber científico e reflexão filosófica do programa de Introdução à Filosofia do 11º ano (ano lectivo 2001/02)

||| Num dos seus capítulos, o livro A ciência tal qual se faz analisa o tema Para uma história (social) da prova nas ciências e nas técnicas. Reflexões gerais e estudo de dois casos: as experiências de Hertz e a imunização magnética dos navios.

||| "A filosofa é, talvez, a testemunha por excelência de que o desejo de perfeição é constitutivo do homem e de que a técnica — fruto do roubo do fogo divino por Prometeu — constitui um dos veículos possíveis dessa perfeição" (do texto Os Bebés-Proveta e a filosofia).

[Actualização a 02/04/26]
 
mocho, símbolo da Filosofia

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